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2. As bases da medicina antroposófica: a fenomenologia de Goethe e a antroposofia de Steiner

2.8. O nascimento da medicina antroposófica e a presença de Ita Wegman

A medicina do final do século XIX e início do século XX se encontrava em um intenso contraste. A racionalidade Medicina Ocidental Contemporânea21, ou Biomedicina, hegemônica e tomada como referencial de verdade e eficácia desde a década de 50 até os dias atuais, estava ainda em vias de construir alguns aspectos fundamentais de sua doutrina médica. Por um lado, grandes avanços já haviam sido empreendidos em sua compreensão dos estados de adoecimento,

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A descrição da racionalidade biomédica foi realizada por CAMARGO JR em dois artigos (1993, 2005) e de forma mais detalhada em sua obra Biomedicina, saber e ciência: uma abordagem crítica (2003).

com o estabelecimento das doenças, isto é, das lesões e disfunções anátomo-fisiológicas, identificadas, inicialmente, nos exames de cadáveres, e que eram associadas posteriormente à narrativa subjetiva e à clínica dos doentes. Duas obras são marcos da construção desta racionalidade. Giovanni Morgagni publicou, em 1761, De sedibus et causis morborum. Neste trabalho, o pai da anatomia patológica associa, em 645 casos, achados anatômicos de necropsia ao quadro clínico dos doentes falecidos. Em 1858, Rudolf Virchow, com o aprimoramento da microscopia, leva esta compreensão ao nível das alterações celulares em Vorlesungen über Zellularpathologie in ihrer Begründung auf physiologischer und pathologischer Gewebelehre22, dando origem à Patologia Celular. A biomedicina se organizou em termos de uma racionalidade que pesquisa as modificações macro e microscópica dos órgãos e tecidos humanos – mais recentemente também as anormalidades bioquímicas, genéticas e moleculares –, como causa principal dos estados de adoecimento, reduzindo estes últimos à disfunção ou lesão física (STEINER, 1999a; CAMARGO JR, 2003).

No entanto, este modelo de saber e prática médica avançou pouco em termos terapêuticos até as primeiras décadas do século XX. Com exceção dos sucessos preventivos na pesquisa e aplicação das vacinas – prática médica pré-moderna, mas cuja justificação científica por Pasteur disseminou de forma mais abrangente seu uso –, a anatomia patológica e a patologia celular quase nada podiam fazer para mudar ou ampliar as possibilidades de tratamento das doenças. Como sintoma desta situação, destacou-se a corrente médica do niilismo terapêutico, que defendia a não- intervenção no transcurso das doenças e que nenhuma terapêutica seria realmente eficaz para interromper sua evolução. A saída deste marasmo para o modelo biomédico só viria a surgir a partir da segunda guerra mundial, quando a penicilina, descoberta por Fleming em 1928, foi testada para o tratamento em ferimentos dos soldados. O sucesso da penicilina inaugurou a era dos antibióticos na biomedicina e, com ela, esta racionalidade pôde finalmente começar a desenvolver seu principal braço terapêutico: os medicamentos químicos industrializados.

No hiato entre os avanços diagnósticos e o atraso terapêutico da medicina científica, outra racionalidade médica ganhara importante espaço na Europa: a homeopatia23. Elaborada por Christian Friedrich Samuel Hahnemann (1755-1843), a homeopatia surge de uma crítica de

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Tradução nossa: Palestras sobre patologia celular na explicação da histologia fisiológica e patológica. 23

Para aprofundamento do tema consultar LUZ (1996, 2004) e Hilton Sarcinelli LUZ, Racionalidades médicas: a

Hahnemann à medicina convencional de sua época, que produzia muita teoria sobre as doenças, mas ofertava péssimas possibilidades de tratamento aos doentes. Baseado no princípio da cura pelo semelhante, Hahnemann desenvolveu, experimentando em si mesmo, e também em pacientes para os quais não havia recurso terapêutico adequado estabelecido, um sistema médico cuja terapêutica utiliza substâncias que provocam em indivíduos sadios reações similares às queixas dos doentes, para o seu próprio tratamento. Estas substâncias não são utilizadas in natura, mas passam por processos manuais – e mecânicos – de diluição e agitação, de forma a fortalecer sua qualidade energética em detrimento da física (‘dinamização’). A homeopatia apresentou resultados terapêuticos, tendo sido adotada por uma quantidade significativa de médicos, a ponto de, nas duas primeiras décadas do século XX rivalizar, em termos quantitativos, de profissionais e de debates (e embates) com a biomedicina, que se desenvolvia no mainstream como científica e materialista (LUZ, 1996).

Rudolf Steiner desenvolveu as bases de sua proposta para a medicina neste contexto de disputa entre a medicina científica emergente, abundante do ponto de vista diagnóstico, mas frágil do ponto de vista terapêutico, e a homeopatia, com um grande número de adeptos, mas já fortemente interpelada quanto à eficácia e validade científica. Não por acaso, encontraremos elementos de ambas as racionalidades na proposta antroposófica, modificados por Steiner, e também acrescidos de novidades sustentadas por sua cosmovisão – Weltanschauung – original.

O primeiro ciclo de palestras de Steiner sobre medicina ocorreu em Praga em 1911, quando ainda era membro da Sociedade Teosófica. Intitulou-se Fisiologia Oculta (2007) e versou sobre uma compreensão das funções do organismo humano (sensações, circulação, sanguínea, respiração, digestão) como resultado da atuação de processos espirituais cósmicos, oriundos da atuação dos sete planetas – Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno – que se consolidam nos órgãos principais do corpo humano – respectivamente, cérebro, pulmão, rins, coração, vesícula biliar, fígado e baço. No caso humano, esses processos estão em função da expressão de uma força que nos é peculiar: o Eu humano. Neste ciclo, Steiner também abordou o corpo físico humano como expressão de uma dualidade, representada por pólos, sistema nervoso e sistema digestivo, equilibrados pelo sistema circulatório.

Steiner levou cerca de nove anos para voltar a se pronunciar publicamente sobre temas relacionados à Medicina. Justifica seu silêncio devido à sua decisão de só se posicionar sobre campos específicos da atividade humana, à medida que surgissem pessoas que fossem ao mesmo

tempo envolvidas com um dado campo na sociedade, estivessem interessadas em ouvi-lo, e dispostas a colocar suas sugestões em prática (SELG, 2005, p. 24, 25).

Devido à solicitação de médicos e médicas da Sociedade Antroposófica, em 1920, Steiner realizou o primeiro ciclo, com vinte palestras voltadas especificamente para este público, denominado Ciência Espiritual e Medicina (1999a). Seguiram-se mais cursos em 1921, 1922, 1923 e 1924. Nestes cursos, Steiner não só avançou sobre sua compreensão dos processos de adoecimento, aprimorando suas categorias de análise dos três sistemas (neurossensorial, rítmico e metabólico) e quatro corpos (físico, etérico, astral e Eu), como indicou diversas propostas terapêuticas. Além disso, nos cursos de 1924, dedicou especial atenção a sugestões para o caminho meditativo e espiritual dos médicos e médicas.

Quanto à realização prática da ampliação da arte médica que Steiner propunha, alguns obstáculos surgiram. Um círculo mais próximo de médicos conseguiu fundar, a partir de doações, o Instituto Clínico-terapêutico de Stuttgart em 1920. Porém, em 1923, após o incêndio do primeiro Goetheanum, em sua re-fundação do movimento antroposófico, Steiner fez uma dura avaliação do que o grupo de médicos havia realizado até então. Este momento é descrito por Peter Selg, importante médico e pesquisador da história do movimento antroposófico:

Por anos, talvez decênios, ele esperou desses médicos o trabalho científico central, além da exposição pública, o Vademecum, e aos olhos de Steiner, nada tinha acontecido e um tempo precioso se passara numa inatividade fatal. Hoje, quando se lê a respeito do encontro médico de 31 de janeiro de 1923, fica-se admirado que Ludwick Noll, Friedrich Hussemann e Felix Peiper ainda tivessem coragem para um trabalho posterior em conjunto, apesar das palavras tão duras e claras de Rudolf Steiner (SELG, 2005, p. 43-44).

Após esta crise, uma mulher assume lugar central na história do movimento médico antroposófico: a médica Ita Wegman. Wegman nasceu em Java, na Indonésia, em 1876, quando esta era colônia holandesa. Mudou-se para Holanda aos 14 anos e já havia conhecido a teosofia no Oriente. Formou-se primeiro em treinamento ginástico e massagem e, em 1902, mudou-se para Berlim para aprofundar seus estudos. Na capital alemã, acompanhou algumas palestras do secretário geral da recém fundada seção local da Sociedade Teosófica. Em correspondências que estabeleceu com Steiner e Marie Von Sivers, foi estimulada a cursar medicina, conselho que aceitou, matriculando-se na escola médica de Zurique em 1905. Permaneceu nesta cidade até

1920, onde ainda realizou uma especialização em ginecologia. Seu contato com Steiner se manteve ao longo de todos estes anos, via correspondência, sendo reforçado por alguns encontros pessoais, como no Congresso da Sociedade Teosófica, em Munique, 1907.

Em 1921, apoiada por Steiner, mas sem tanto destaque quanto o grupo de Stuttgart, inaugura uma clínica antroposófica em Arlesheim, Suíça. O fundador da antroposofia visitou algumas vezes a clínica de Wegman e fez diversas sugestões terapêuticas através de respostas a descrições de casos clínicos enviadas por ela. A partir de 1923, Steiner passa a fazer palestras abertas ao público em geral sobre a ampliação da arte de curar na proposta antroposófica e começa a tomar a clínica de Ita como referência prática de suas propostas. Wegman teve uma intensa aproximação de Steiner nos últimos meses de sua vida. Puderam conversar diversas vezes e Steiner descreveu em cartas pessoais um reconhecimento especial, espiritual, da importância de Ita Wegman para o futuro da Sociedade Antroposófica. Considerou-a um exemplo vivo do que chamava de coragem de curar, descrita por Selg como resultante de um processo de metamorfose interior, em que uma firme vontade do curador é capaz de ativar “a vontade terapêutica do destino ou carma – uma força cristianizada que se coloca totalmente a serviço da superação da doença, que assume tudo sob responsabilidade, num sentido espiritual” (SELG, 2005, p.37). Entre 1923 e 1924, ocorreu uma grande troca de correspondências ente os dois, com orientações para o aprofundamento meditativo de Wegman e visitas frequentes de Steiner à clinica de Arlesheim.

Wegman se tornou médica pessoal de Steiner, cuidando intensamente de seu mestre em seus últimos meses de vida. Em fins de 1924, Steiner se afastou da atividade pública e se recolheu em seu atelier em Dornach, sob a atenção da amiga. Antes de morrer, delegou a Ita Wegman a direção da seção médica da Sociedade Antroposófica, que seria responsável pelo desenvolvimento da medicina antroposófica e da pedagogia curativa. A epígrafe que inicia o livro de Selg talvez seja a melhor síntese para expressar a importância do espírito de Ita Wegman nos rumos do movimento antroposófico até os dias atuais: “Ita Wegman não é só um gênio impulsionador da Antroposofia, mas um gênio curador da arte de curar antroposófica. Seu ser contém inspiração, coragem, grandeza.” (EMMICHOVEN apud SELG, 2005, p. 5).

A publicação em co-autoria do livro Elementos fundamentais para uma Ampliação da arte de curar (2007) foi concretizada por Wegman após a morte de Steiner, em setembro de 1925, sendo considerado, até o presente, como um texto essencial para o estudo da perspectiva antroposófica sobre a saúde, o adoecimento e a terapêutica. Desde então, numa trajetória de

aproximadamente noventa anos, cujo aprofundamento exaure as capacidades do presente capítulo, a medicina antroposófica se expandiu para diversos países do mundo ocidental e, mais recentemente, para o oriente, chegando inclusive à Índia e às Filipinas.

Ao longo deste capítulo, ensaiamos apresentar de forma breve as principais características do contexto sócio-cultural em que surge a antroposofia e a medicina antroposófica. Além disso, traçamos uma descrição das formas particulares que estas características assumiram no percurso de vida e no pensamento de seu fundador, Rudolf Steiner, apresentando-o como filho e criador de seu tempo e lugar. Não fez parte desta contextualização sócio-histórica da medicina antroposófica avaliar, seja do ponto de vista ético ou científico, a veracidade das pesquisas de Steiner ou de sua obra. Pelo contrário, rastrearam-se subsídios para possibilitar uma análise objetiva e ampla das complexidades e especificidades do saber médico antroposófico. Entendemos que esta prévia contextualização possibilita um olhar hermenêutico para a medicina antroposófica, na medida em que foi feito um esforço para encontrar as raízes culturais e algumas motivações pessoais que tornaram possíveis a emergência desta racionalidade médica.