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2. As bases da medicina antroposófica: a fenomenologia de Goethe e a antroposofia de Steiner

2.2. O espiritual na aurora da era das máquinas

Neste contexto, associavam-se, então, o avanço científico, uma “maquinarização” do mundo e, ao mesmo tempo, uma profunda busca de sentido para a própria existência. Assim, as mudanças não deixaram de afetar o lugar das religiões e do sagrado na vida européia deste período. Um dos efeitos das Luzes do século XVII e XVIII foi sem dúvida uma lenta e paulatina retirada das questões metafísicas do foco principal da filosofia e da ciência. Deus e os mistérios espirituais tiveram seu espaço bastante restringido ao lugar da fé e das religiões. Mesmo este espaço passava por profundas transformações. O movimento da Reforma havia originado uma modalidade de prática religiosa que tinha implicações mais éticas e econômicas, do que o aprofundamento em debates e polêmicas acerca dos atributos do mundo espiritual (WEBER, 2003).

Em meio a esta cinzenta reverberação da racionalidade moderna, em nenhum momento, deve ser assinalado, deixaram de existir na Europa correntes de movimentos ditos esotéricos, em que conhecimentos místicos – isto é, de acesso a uma realidade espiritual, sobrenatural, postulada como entremeando e conduzindo, ao mesmo tempo, a realidade material – eram preservados e

repassados por um grupo seleto de pessoas que atravessavam um processo dito de iniciação. Este processo era árduo, exigente, permitindo a poucos indivíduos ascender a este tipo de conhecimento. Como exemplo de grupos importantes com estas características, temos a maçonaria e a fraternidade rosa-cruz.

No século XIX, também, obtém grande repercussão na Europa, o fenômeno das mesas girantes, em que pessoas de todas as classes sociais se reuniam para assistir ao movimento de mesas e grandes objetos sem causas físicas aparentes. Outras manifestações de mediunidade, como a psicografia – redação de comunicados de pessoas mortas às vivas –, haviam também movimentado variados círculos sociais ao seu redor. No acompanhamento destas manifestações do mundo espiritual, nos anos de 1850, o pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, quem assumiu mais tarde o pseudônimo de Allan Kardec, se deparou com sua própria atividade mediúnica e, dado sua forte formação filosófica, decidiu sistematizar um conjunto de saberes que integrasse filosofia, ciência e religião, o espiritismo. Apesar de o materialismo assumir aos poucos um lugar hegemônico no modus vivendi social europeu tardo-oitocentista, é possível observar reações espiritualistas que apontaram ao mesmo tempo para um diálogo com a ciência e a filosofia e até evitavam entrar em choque ou negar os resultados destas.

Este foi o tipo de solo social condicionante do “aparecimento de seitas religiosas independentes em escala nunca vista desde o século XVII”, que Peter Washington descreveu em seu livro O babuíno de Madame Blavatsky: místicos, médiuns e a invenção do guru ocidental (WASHINGTON, 2000, p.19). Este pesquisador aponta alguns motivos para este fenômeno, próprio das inquietações do final do século XIX. O primeiro seria uma tentativa de salvar o espiritual do declínio das igrejas cristãs, o que implicava a busca de novas autoridades espirituais, com carisma suficiente para mobilizar a fé órfã de discípulos à espera de novas lideranças e de novas experiências religiosas.

O segundo motivo se refere à busca derradeira de “uma única chave que resolvesse os mistérios do universo”, um “desejo de encontrar a unidade na diversidade” típicos do século XIX, que permeou além das manifestações religiosas, também a ciência e a filosofia. Não estranhamente, muitos destes líderes seguiram a tendência de afirmar sua visão espiritual como ciência. É o caso de Mary Baker Eddy, que funda a Ciência Cristã, do espírita inglês Daniel Dunglas Home, e do fundador da doutrina dos complementos naturais, Thomas Lake Harris. Por último, Washington destaca, neste período, uma virada progressiva do Ocidente para o Oriente,

com a recepção de influências do budismo e do hinduísmo, tanto na ciência quanto na filosofia, como em Schopenhauer e Nietzsche. O clímax nesta tendência de orientalização entre os novos líderes espirituais se encontra, sem dúvida, em Helena Blavatsky (1831-1891) e sua Sociedade Teosófica (WASHINGTON, 2000).

Blavatsky, de nacionalidade russa, aponta para o Oriente, especialmente a Índia, o Himalaia e o Tibete, como locais de iniciação, e sede dos grandes conhecimentos espirituais. Após um casamento frustrado, narra que realizou diversas peregrinações nestas terras em busca das respostas para os grandes dilemas da humanidade. Em seguida a este período iniciático, mudou-se para os Estados Unidos em 1872. Começou sua atividade pública inicialmente aproximando-se do espiritismo, mas rapidamente passou a propor grupos de estudos sobre outras fontes esotéricas, como hermetismo, cabala e rosacrucianismo. Em 1875, fundou uma iniciativa própria de pesquisa e evolução espiritual, a Sociedade Teosófica. Blavatsky ganhou notoriedade por realizar apresentações de seus poderes paranormais (adivinhação de pensamentos, previsão de eventos, materialização de objetos, produção de sons). A fundadora da teosofia moderna morou ainda na Índia e passou os últimos anos de sua vida em Londres. Sua vida foi marcada por inúmeras polêmicas e acusações de fraudes envolvendo a veracidade de suas demonstrações de poderes paranormais, e das cartas pelas quais intermediava correspondência de terceiros com seus mestres orientais. Para Washington, Blavatsky é um ícone deste movimento de espiritualização esotérica do fim do século XIX. Uma característica importante deste fenômeno foi o caráter misterioso e de autopromoção que os indivíduos, líderes destas iniciativas neo-religiosas, assumiam (WASHINGTON, 2000) 15.

É neste cadinho histórico-cultural, que se insere a história da antroposofia e de seu fundador, Rudolf Steiner.