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2. As bases da medicina antroposófica: a fenomenologia de Goethe e a antroposofia de Steiner

2.7. Iluminismo e romantismo: as paradoxais raízes filosóficas da antroposofia

Neste trabalho, discute-se a hipótese de o pensamento filosófico inicial de Steiner ser influenciado por três tradições filosóficas, em tensão no seu lugar histórico e geográfico, tentando ao mesmo tempo estabelecer um diálogo entre elas: o idealismo alemão e o cientificismo empírico

(herdeiros do iluminismo), e o romantismo (doutrina filosófica reativa ao iluminismo). Dentro dos objetivos limitados deste capítulo, não se pretende de forma alguma aprofundar os multifacetados e polêmicos aspectos de nenhuma dessas três doutrinas filosóficas, muito menos nas variações que assumem no pensamento dos vários autores da época. Propomo-nos perceber como alguns de seus traços principais, até mesmo quando antagônicos, conseguem caber na proposta filosófica de Steiner, sem criar rótulos óbvios para o fundador da antroposofia.

2.7.1. O iluminismo e idealismo alemães

O iluminismo se caracteriza como o movimento filosófico, com fortes desdobramentos culturais e políticos, que, ao longo do século XVIII defendeu a possibilidade de o ser humano alcançar um pleno e livre progresso individual e social, sem dependência ou subordinação a fatores externos, tendo como principal instrumento para isso a própria razão humana. Deste fundamento, decorrem dois corolários ideológicos importantes: (1) a atribuição aos homens da condição de sujeitos autônomos, individuais e iguais entre si, capazes de decidir o próprio destino (um uso unilateral deste corolário pode resultar em individualismo) e (2) a relação com o mundo como universo a ser explorado com segurança e propriedade pela razão humana, ao organizar as informações obtidas pela experiência sensível, para permitir um melhor controle do mundo exterior, passivo de se tornar objeto de conhecimento (universalismo, racionalismo e cientificismo). (LUZ, 2004; DUARTE, 2004; MAYOS, 2004).

O filósofo alemão mais importante na tematização da racionalidade moderna, Immanuel Kant, sem negar a centralidade da universalidade da razão, teve papel crucial no final do iluminismo ao postular ao limites do conhecimento humano. Em sua pesquisa filosófica, o único ponto de sustentação reflexiva que Kant encontrou foi a própria razão, o sujeito cognoscente se desdobrando sobre si mesmo. Neste sentido, na insuperada disputa filosófica entre idealistas versus materialistas, racionalistas versus empiristas, Kant conseguiu fundar uma nova proposta de idealismo, o idealismo transcendental. Todas as informações do mundo exterior que nos chegam são filtradas pelos nossos instrumentos cognitivos, os sentidos e a razão, o que nos impede de falar incondicionalmente, sobre uma correspondência perfeita entre nossas impressões mentais e a realidade concreta. Não podemos ter garantia última sobre o real, mas podemos ter certezas sobre nossa razão, único objeto que se apresenta desnudo à nossa consciência. Kant construiu, assim, as

bases de um idealismo reflexivo sobre o próprio universo interior do homem. Seus principais sucessores no aprofundamento desta reflexão foram Fichte e Schelling, que, mesmo ao discordarem em alguns aspectos do pai da filosofia crítica, mantiveram esta preocupação em se debruçar sobre a dimensão subjetiva da experiência humana (LANZ, 1985; STEINER, 1985b).

O pensamento destes três autores é apresentado freqüentemente como o alicerce do idealismo alemão, que teve outros representantes, sendo Hegel o mais importante deles. As tendências no idealismo alemão, ao longo do século XIX, variaram entre uma vertente transcendental, kantiana, voltada para a reflexão sobre o sujeito e o conhecimento, ou uma compreensão absoluta da idéia, do espírito e seu desdobramento presente em toda realidade, como proposto por Hegel (STEINER, 1973).

Como se insere o pensamento de Steiner nesta mainstream da filosofia alemã do século XIX? Primeiramente, como vimos, Steiner defende a necessidade e a possibilidade de o homem chegar à verdade sobre si mesmo e sobre o mundo, sem depender de ajuda externa, mas através de um processo reflexivo interno que tem como base o próprio pensar (STEINER, 2000). O filósofo de Kraljevec entendia que o ser humano, em culturas antigas, pôde atingir uma vida sábia e plena, com a revelação passiva do conhecimento dos segredos do universo oferecida por seres superiores de caráter espiritual.

Na era moderna, numa compreensão evolutiva da trajetória da humanidade, Steiner propôs que o homem deve ter a difícil tarefa de atingir este nível de conhecimento, por seus próprios esforços, de forma consciente. Este é um caminho a ser trilhado por cada homem individualmente, parte de uma escolha pessoal e intransferível. Ao mesmo tempo, é o único caminho que pode sustentar uma vida social saudável e de progresso cultural. Ele resulta de uso adequado das faculdades cognitivas humanas, que podem ser exercitadas para se atingir níveis cada vez mais complexos e plenos de conhecimento do próprio ser humano e de todo o cosmos (STEINER, 2000). Tomando estes pressupostos básicos do pensamento de Steiner, podemos perceber como aspectos importantes dos principais elementos ideológicos do iluminismo - individualismo, racionalismo e universalismo – estão presentes em sua proposição filosófica.

Quanto ao idealismo alemão, Steiner pode ser situado em oposição e, ao mesmo tempo, em filiação a esta corrente. A primeira classificação, que ele mesmo dá à sua abordagem filosófica, é de idealismo objetivo (STEINER, 2006, p. 86). Em Filosofia da Liberdade (2000), Steiner propõe, de forma semelhante a Kant, que o pensamento se dirija a si mesmo (pensar o pensar), mas,

distinto deste último, ele sugere que não se dirija a uma crítica da razão, mas a uma contemplação do conteúdo do pensamento, das idéias, como realidades objetivas. Ou seja, usando o pensamento como órgão de percepção, ele pode nos apresentar o mundo subjetivo com a mesma objetividade, no sentido de segurança, firmeza, verdade – correspondência com a realidade – com que os sentidos nos apresentam o mundo material. Steiner não vê sustentação numa posição de subvalorização do universo subjetivo, em comparação com as experiências propiciadas pelos sentidos. Pelo contrário, o primeiro grupo de percepções, pensamentos e idéias, ordenam e revelam a dimensão espiritual e essencial do segundo, as impressões físicas. Valorizar o subjetivo não significa neste pensamento uma incapacidade de alcançar um conhecimento pleno e seguro, ou uma limitação do conhecimento humano a um estado de parcialidade, mas pelo contrário: é o único caminho para se chegar corretamente à verdade do mundo e do homem. O idealismo de Rudolf Steiner nem se esgota no espírito humano, como em Kant, nem se dilui completamente na história, como em Hegel. É através da consciência humana que o mundo pode se revelar de forma mais plena e verdadeira (STEINER, 1973).

2.7.2 Influências do Romantismo

A partir da análise realizada acerca das fundamentais contribuições da obra científica de Goethe à reflexão filosófica de Steiner, pode-se dizer que a influência do romantismo na sua obra se deve principalmente a quão romântico foi o pensamento goetheano. Segundo Duarte (2004), o romantismo se caracteriza como um movimento artístico e filosófico surgido no final do século XVIII de forma reativa ao iluminismo. Situou-se, ao longo do século XIX, como contraponto aos ideais iluministas, mas, como tal, acaba sempre englobado pelo individualismo e pelo universalismo, que o ultrapassam e determinam. Este antropólogo brasileiro aponta seis dimensões constituintes do romantismo: totalidade, diferença, fluxo, ênfase na pulsão (Trieb), ênfase na experiência e compreensão.

A totalidade é a resposta do romantismo ao individualismo iluminista. No lugar de enfatizar a presença de partes, de componentes fragmentados da realidade, encontra-se o reconhecimento de uma totalidade (homem-natureza; homens entre si em um povo) que foi quebrada com o advento da civilização. Esta pode ser recuperada de várias formas, como no resgate de particularidades que identificam um povo, uma cultura (totalidades coletivas humanas)

ou no próprio amor romântico. Esta dimensão de totalidade é atribuída não só às culturas, mas também aos organismos vivos e às obras de arte, por exemplo. Por ser uma totalidade em si, cada fenômeno apresenta particularidades, diferenças que o tornam único e singular. Ao invés de colocar num mesmo patamar entes, indivíduos e povos, o romantismo se preocupará com estabelecer quais são essas diferenças, hierarquizando-as ao atribuir diferentes valores a cada uma delas (DUARTE, 2004; MAYOS, 2004).

Esta totalidade também não se apresenta de maneira fechada, última, segura, controlável (como se busca no universalismo), mas em fluxo permanente. Este fluxo é resultado de uma busca constante – “eterna” – de cada unidade desta totalidade de expressar, de forma cada vez mais intensa, a sua particularidade. Adaptando a famosa expressão nietzscheana: tornando-se cada vez mais o que se é (ênfase na pulsão).

Ao desejar reintegrar o sujeito ao mundo, o romantismo valoriza a experiência, não como o cientificismo tende a fazer – padronizando, igualando ao máximo possível as experiências sensíveis –, mas recusa uma objetividade externa universalizável. Reconhece um entranhamento inevitável entre subjetividade e mundo externo, que não pode ser extirpado do processo de conhecimento (ênfase na experiência e compreensão).

É possível distinguir duas tendências dentro deste movimento filosófico. A primeira, Duarte denominou de Romantismo da Luz e se configura numa perspectiva mais afirmativa, de um reconhecimento da importância da ciência, enquanto “um saber leigo sistemático”. Defendia uma integração racional possível entre homem e natureza e a importância das universidades e de laboratórios de pesquisa. É desta tendência que surgiu a filosofia da natureza, a Naturphilosophie alemã. A segunda, o Romantismo da Sombra, propõe uma substituição total da racionalidade pela intuição, a Anschauung. Questionava qualquer aproximação de diálogo com o iluminismo e ficou mais latente nas expressões artísticas e políticas do romantismo. Como exemplos destas tendências, Duarte indicou as posturas de Novalis e Goethe:

Pode-se lembrar a esse respeito a contraposição entre as famosas e supostas últimas palavras de Goethe no leito de morte: “Mais luz!”, e o título da obra mais famosa de Novalis: “Hinos à noite”. Parecem bem exemplificar essa oposição a que me refiro e que marcará profundamente o destino do pensamento romântico e da cultura ocidental moderna. (DUARTE, 2004, p.12).

Esta análise em tendências visa a situar melhor a influência do romantismo de Goethe no pensamento de Steiner. Vale ressaltar que a consulta à autobiografia do filósofo de Kraljevec nos permite inferir que, em seu percurso reflexivo, se encontra primeiro o contato com Kant e Fichte (STEINER, 2006, p. 45 e 54). Suas posições, mais próximas do segundo do que do primeiro, são contra a restrição das experiências subjetivas ao lugar de representações mentais, e propõem-se a atribuir-lhes valor objetivo, sobretudo em referência ao desvelamento do mundo exterior e do estudo do ser humano.

É neste ponto que o encontro com a pesquisa científica de Goethe, voltada para o reconhecimento dos fenômenos primordiais – presentes na Natureza, mas visíveis apenas aos “olhos do espírito” – foi a grande inspiração e alicerce para que Steiner pudesse começar a elaborar o seu próprio método filosófico e científico. O fundador da Antroposofia considerou necessário dar um passo além de Goethe e aplicar esta pesquisa dos fenômenos últimos constituintes da realidade ao estudo do próprio universo do pensamento humano. Esta tarefa foi empreendida em A Filosofia da Liberdade (2000).

Vale ressaltar, no entanto, que a produção de Steiner não se reduziu apenas à teoria, à reflexão, nem mesmo ao lugar da ciência. Ainda em sua juventude, viveu o clima de efervescência de debates culturais e filosóficos em cafés e residências de personagens famosos da Viena do fim do século XIX – como a poetisa Maria Eugenie della Grazie – regados a conversas, música e recitação de poesias. Depois de incorporar publicamente as questões esotéricas ao seu caminho como filósofo, escreveu e dirigiu a apresentação de quatro peças de teatro, voltadas à temática da iniciação esotérica, e elaborou, em parceria com a bailarina Lory Smits, uma nova proposta de expressão artística corporal, a Euritmia (WILSON, 1988).

Tomando todas estas características, Steiner pode ser situado muito mais próximo do que Duarte denominou de Romantismo da Luz. Ele não se afasta dos ideais iluministas, especialmente da necessidade do homem encontrar seu caminho de liberdade individual e de progresso social, fundamentado em um uso adequado da razão com validade empiricamente comprovada. Ele reveste estes ideais com outros traços como a totalidade, o fluxo, a diferença e a ênfase na experiência.

2.7.3 Uma ciência positivista?

Por último, algumas breves considerações sobre a questão da presença do cientificismo empírico. Especialmente, quando nos aproximamos dos apontamentos de Steiner sobre um tema como a medicina – por exemplo, em Fisiologia e Terapia (STEINER, 2009) –, é notória a defesa do autor de uma postura científica diante da realidade. Ele a entendeu inclusive como a confirmação prática, pelo próprio método científico tradicional materialista, de suas afirmações. Steiner apontou que, se suas observações não haviam sido ainda comprovadas pela ciência materialista, isto se devia justamente à parcialidade deste método, e elas o seriam algum dia (STEINER, 2009, p.150-151).

A antroposofia é apresentada como ciência espiritual. Toma-se como referência para isso a capacidade que a ciência materialista tem de oferecer a experiência de segurança, certeza, eficácia e aplicação universal de seus resultados e conseqüências práticas. Segundo ele, uma adequada aproximação do mundo subjetivo, espiritual, oferecerá esta mesma experiência, e não a sensação de que se está lidando com algo incompreensível, imprevisível ou incomensurável. Precisamos apenas do método apropriado e é isso que Steiner tenta desenvolver com a antroposofia (STEINER, 1994).

Ao mesmo tempo, não podemos associá-lo ao positivismo, no que este último apresenta de busca de explicações causais, empírico-indutivas (da parte ao todo) da realidade. O método de Steiner é analógico e empírico, graças à possibilidade de uma empiria espiritual, que lhe foi propiciada por Goethe.