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3.4 A PESSOA COM CEGUEIRA E A BELEZA: O PODER DAS IMAGENS NA

3.4.3 Caminhos possíveis para o casamento entre a beleza e a cegueira

As perspectivas teóricas e analíticas diante daqueles que são privados desta sensação visual podem nos levar até outros caminhos e questionamentos. Como se manifestariam então as sensações, sentidos e/ou abstrações que comporiam as representações sociais da beleza para as pessoas com cegueira?

Sem a pretensão de encerrar essa inquietação neste momento, haja vista que o questionamento supracitado é nuclear dentro do estudo que ora se apresenta, permitir- se-á vagar por algumas contribuições, que de uma maneira ou outra possam antecipar

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algumas reflexões e entendimentos sobre a beleza e o universo das pessoas com cegueira.

O universo sensível que permite admirar e sentir a beleza e suas formas estéticas, oriunda do mundo das coisas físicas, torna essa percepção possível, principalmente, por meio dos sentidos como a visão e a audição, agentes que auxiliam na “captação” do universo das formas materiais e concretas. E, quando se passa para o mundo das ideias e dos pensamentos, os conceitos que se atribuem à beleza são mais liberais e comportam uma extensão de representações ligadas ao campo dos valores e preceitos morais, intelectuais e artísticos (SOUZA, 2004).

Pode-se, contudo, apresentar outras argumentações que diferem da argumentação supracitada, no sentido de assumir que a beleza e no nosso caso, aquela que é invadida pelas formas físicas, corporais e estéticas, poderia, de alguma maneira, ser sentida, absorvida, objetivada e entendida na esteira de outras sensações, simbolizações e/ou estruturas cujas possibilidades interpretativas e perceptivas seriam outras, a exemplo do tato e da linguagem, alimentando assim as representações do belo. Correia (2007) realizou interessante análise e discussão acerca das sensações, sentidos e sensibilidades impressas nos trabalhos de Evgen Bavcar, filósofo e fotógrafo sueco com cegueira, atendo-se às particularidades do seu fazer artístico e desvelando os caminhos percorridos pelo artista cego para captar, apreender e exteriorizar a beleza e a estética de pessoas, paisagens, objetos e outras formas ao seu redor, a partir das lentes de sua câmera fotográfica. Para tanto, relata que o fotógrafo em seu processo de criação recorre às descrições fornecidas por interlocutores ou quando possível, também utiliza o tato para explorar os contornos, estruturas e espaços, compondo um intrincado quadro de informações e percepções que permitirão deslocar o seu entendimento sobre a compreensão deste mundo físico para uma narrativa imagética.

Quanto à linguagem, entende-se que esta funciona como um sistema simbólico ligado a um determinado grupo social e servindo para a mediação entre o sujeito e o mundo, o cego pode formular conceitos e ordenar suas experiências, categorizando-as conceitualmente em objetos e eventos com os quais entra em contato nas suas realizações concretas e abstratas com o mundo (ORMELEZZI, 2000).

No caso das pessoas com cegueira e sua relação com o corpo do outro, entende- se que a linguagem não apenas permite a definição, explicação ou detalhamento deste corpo que lhe é estranho/externo, mas também o cria; pela linguagem pode-se criar o

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corpo, tendo o poder de nomeá-lo e instituí-lo como belo e/ou bonito (GOELLNER, 2003).

Já o tato constitui um sistema sensorial com características distintas daquelas referidas e inscritas pela visão, permite capturar texturas, temperaturas, formas, proporções e criar relações espaciais com os objetos. A percepção através do tato se dá pelo contato com os objetos ou coisas que permitem uma lógica sequencial de análise para o seu todo, processando-se de maneira lenta e gradual, diferente da visão que pode apreender o objeto todo, simultaneamente e a qualquer distância (BATISTA, 2005).

Assim sendo, num segundo momento, Souza (2004) parece dialogar com outras possibilidades que favoreceriam a percepção da beleza, acaba ampliando a experiência perceptiva do belo, externando que esta sofreria uma interferência incontestável da razão, a qual significaria uma capacidade intelectual de identificar, discriminar e apreender. A razão por sua vez seria influenciada por fenômenos externos e imprevisíveis, obedecendo às múltiplas possibilidades que assumiriam o percurso de vida de cada um, dando aos conceitos individuais e coletivos sobre o belo uma ligação com suas experiências externas.

Poder-se-ia admitir, então, que as concepções, ideias, valores, significados, conceitos que serviriam para a arquitetura de uma dada representação social sobre a beleza seriam acessadas pelas pessoas com cegueira através de sentidos (outros) como o tato e a audição – sendo esta última necessária na captação e processamento da linguagem verbal – além de outros mecanismos salutares na construção e estruturação das representações de um objeto ou fenômeno.

“O progressivo desnudamento do corpo (...) o que nada mais é do que a exaltação da beleza física em si” (PEREIRA, 2000, p. 80), uma beleza corporal cada vez mais à mostra, particularmente, em terras tupiniquins onde prevalecem as falácias de que em país tropical as pessoas devem expor seus corpos, colocá-los em evidência, esconde um modelo narcísico de contemplação e veneração do corpo, de um corpo tratado como marca ou insígnia que confere um elevado nível de reconhecimento e

status social.

Desta feita, faz-se necessária a compreensão de que passamos por um período histórico-social em que

Aumenta progressivamente a quantidade de espelhos, bem como do prazer de neles buscar nosso reflexo, ansiando por ver o corpo desabrochar. As roupas diminuem e exibir o corpo passa a ser tão importante quanto conquistá-lo.

103 (...) O corpo, se espetaculariza; e o espetáculo corporifica-se, está inscrito no corpo e ao mesmo tempo, comanda-o. Nosso corpo já não é mais o corpo coberto da modernidade e sim o corpo desnudo, espetacularizado. Roupas menores e mais justas, bem como a nudez invadem não só o mundo privado das nossas entrevistadas, mas o público, estão estampadas em outdoors, comerciais, novelas e outros produtos (BERGER, 2006, p. 277).

Neste sentido, a pessoa com cegueira ao se valer exclusivamente do tato e das suas experimentações poderá ter uma representação do corpo dificultada já que se restringirá apenas ao contato do seu próprio corpo para traçar paralelos e similaridades que o levem a representar os corpos de outrem. Representar a beleza na materialidade do corpo também será dificultoso pelas mesmas razões, acrescido do fato de que os modelos sociais hegemônicos de beleza amplamente difundidos e alojados no imaginário coletivo, principalmente, pela informação visual propagada pelos veículos midiáticos, não poderá ser apreendido espontaneamente.

Complementarmente, Laplane e Batista (2003) advertem que alguns conceitos e conhecimentos não são possíveis de ser aprendidos, descobertos ou ensinados pelo tato por configurarem situação em que o toque seria proibido ou pouco convencional, como é o caso do corpo ou de algumas partes dele, isto pensado na relação com o corpo do outro, aquele que é diferente e deveria ser entendido.

Uma menina cega, por exemplo, sem um trabalho dirigido e/ou intervenção de outra(s) pessoa(s), podendo ser realizado através da linguagem/discurso/conceitos, modelos/miniaturas ou contato direto com o corpo de um menino, dificilmente conseguiria abstrair a imagem e a constituição corporal e estrutural do sexo oposto.

Lebedeff (1994, p. 31) enuncia algumas dificuldades encontradas pelo cego para representar o corpo do outro e identifica como é nebuloso e instigante o campo das representações sociais de beleza no universo da pessoa com cegueira, indagando que

A anatomia de seu próprio corpo é muito fácil, mas e a anatomia do sexo oposto? Como o ocorre o conhecimento do corpo do outro, se o toque é proibido na nossa cultura? E sedução, se a paquera se dá pelo olhar? Será que a sexualidade do cego é uma sexualidade sem estética, sem altos nem baixos, gordos ou magros, não importa a cor dos olhos?

Revela-se que as formas e aspectos físicos que configuram a beleza, a unidade e a riqueza corporal, não se curvam apenas sobre o adestramento e a moldagem dos corpos de acordo com um padrão estético dominante, que os escraviza e penitencia,

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mas, e, majestosamente, enriquecem toda a existência humana e os relacionamentos sociais e afetivos.

Se de um lado percebe-se que “o corpo do outro para o cego é um mistério que só é desvendado na experiência sexual, principalmente para os que não têm irmãos de outro sexo, pois até tocar no sexo oposto, a pessoa com deficiência visual não tem a mínima ideia de como ele se configure” (LEBEDEFF, 1994, p.32); de outro, temos um cego que segundo Ormelezzi (2000) constrói suas imagens e conceitos a partir da experiência não apenas tátil, mas também auditiva e olfativa inter-relacionadas com a linguagem e discurso das pessoas com quem interagem e/ou integram seu universo social e relacional/afetivo.

Como ressaltado anteriormente, sem a pretensão de esgotarmos os questionamentos, saberes e conhecimentos que se estabelecem na cotidianidade e nas relações socioafetivas das pessoas com cegueira quando do estreitamento com o universo sensível e das representações sociais de beleza, espera-se que as contribuições e argumentações apresentadas, embora tenham abraçado hipóteses, realidades empíricas e estudos diversos, sirvam para apontar caminhos profícuos e desmistificadores para as temáticas apresentadas.

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