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3.4 A PESSOA COM CEGUEIRA E A BELEZA: O PODER DAS IMAGENS NA

3.4.2 O poder das imagens na construção das representações sociais

Poder-se-ia assumir que a representação social de um objeto ou fenômeno ocupou-se como afirma Moscovici (2004) de uma dialética que permitiria a sua ressignificação na base das relações sociais e concomitantemente exercendo influência e controle sobre essas mesmas relações sociais. Portanto, os campos social, cultural e histórico são decisivos para a construção e reconstrução do imaginário e/ou simbólico que se naturaliza nas relações com o outro e com o mundo ao redor.

Moscovici (2004) aponta que além deste saber desenvolvido no cotidiano das relações sociais, produto de uma interação entre fenômenos de comunicação, divulgação e propagação dos conhecimentos e que traduzem os elementos cognitivos deste

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processo de construção das representações sociais, dever-se-ia empregar a mesma atenção a outros aspectos igualmente importantes, estes ligados ao inconsciente, às emoções e afetividades no mecanismo de produção e reprodução das representações sociais.

Garante-se, assim, um novo olhar para as representações coletivas, admitindo que os sujeitos são ativos e dinâmicos; que vem exercendo influência sobre o conhecimento produzido na cotidianidade e na mesma medida em que são modificados cognitiva e afetivamente por uma dada realidade social (MOSCOVICI, 2004).

Contudo, as representações muitas vezes são naturalizadas, admitidas como produto de uma ordem governada por acontecimentos impessoais, quando na verdade acabem sendo alicerçadas e maquinadas objetiva e intencionalmente, refletindo interesses e as estruturas de poder e dominação (moral/física/ideológica/política) no seio das sociedades. Neste sentido, mais do que síntese e/ou diálogo entre pensamentos, reflexões, acontecimentos e informações colhidas nas relações sociais “despreocupadas”, uma representação sobre determinado objeto, pessoa ou fenômeno pode – e na maioria das vezes o é – ser resultado de arquiteturas sorrateiramente objetivadas por interesses de outrem.

As concepções de beleza e as indissociáveis representações sociais da beleza expressam a busca e a necessidade de atender a uma estética corporal pacificada no bojo das vivências e objetivações sociais cotidianas; ter um corpo belo torna-se slogan de uma materialidade consumista que disfarça os interesses sociais, afetivos, políticos e econômicos de uns (poucos) sobre outros (muitos).

Lançando-nos no universo da beleza corporal trazemos à tona a compreensão de que as representações sociais da beleza se valem dos discursos correntes e na mesma medida estes discursos só existem a partir da sua materialização nas e pelas práticas sociais. A exibição visual e figurativa do corpo belo ou belo corpo, massivamente propagada em espaços midiáticos como a televisão/cinema/revistas/internet e que fetichiza a beleza como mercadoria-objeto, implicaria, hipoteticamente, numa construção imagética do belo e a sustentaria no universo simbólico coletivo.

Berger (2006, p. 277) traz uma valiosa contribuição neste sentido, ao destacar que as “academias de vidro que lembram o panóptico de Bentlan, são também templos de consumo onde se vende a todo o momento o corpo perfeito como uma mercadoria, que pode ser comprada por quem puder pagar por todos os aparatos que o sustentam”.

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Canevacci (2001), ao tratar da natureza particular das mercadorias contemporâneas e suas características intrínsecas ligadas a uma valorização de caráter comunicativo, observa que as mercadorias-visuais são, por „essência‟, fantasmáticas. A dimensão visual criaria um valor acrescido entre o corpo desta mercadoria e o consumidor, deixando ser mercadorias emudecidas, uma vez que comunicam, expressam e reforçam uma estética e estilo visual que confere às mercadorias-visuais um status de consumo e destaque na cultura econômica contemporânea. Isso é o que confere um modelo centrado no fetichismo visual que se multiplica na base de uma economia mercadológica pulverizada a partir das comunicações de massa, altamente tecnologizadas e aparamentadas com o que de melhor a ciência pode oferecer.

Moscovici (2004) e Jodelet (2001) apontam que a comunicação de massa, seja por meio de comerciais, propagandas, novelas, programas, filmes, desenhos, jornais, reportagens e outras(os), tornou-se nuclear no processo de interação e interposição que se estabelece no encontro entre ideologia, senso comum e representação, estabelecendo conceitos, sentidos e valores que acabam sendo naturalizados nas relações e objetivações sociais.

As mercadorias-visuais são na verdade sujeitos, devem ter suas anatomias entendidas numa perspectiva antropológica. Tem uma individualidade própria, com idade, formas e possibilidades outras (muitas), nascem, amadurecem, envelhecem, morrem. Possuem inúmeras simbolizações, mutações, nomes, parentescos, ramificações, uma biografia própria (CANEVACCI, 2001).

Nesta perspectiva, admitir-se-ia a beleza como uma qualidade, exigindo que ladeie nossa existência para que possamos atender a esse culto por ser belo, por andar na companhia da beleza, enamorar-se com a beleza e dela não estar desacompanhado. A beleza deixaria de ser adjetivada para gozar de um substantivo que anula o sujeito, fazendo dele a própria mercadoria-matéria-beleza.

Portanto, pode-se pensar da seguinte maneira:

Qual seria o significado desta coisa inútil sem a qual não podemos passar? Reza o ditado popular que uma imagem vale mais do que mil palavras! Em uma cultura, com cada vez mais telas e menos páginas, as imagens passam a constituir, por si só, a realidade (...) A imagem toma o lugar do sujeito e, sem perspectiva de si mesmo, haverá identidade possível? (NOVAES, 2005, p.10)

Ainda sobre o poder da publicidade identifica-se que esta requer um grande arsenal de imagens da cultura visual para impor aos espectadores/consumidores

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produtos, objetos e modelos de vida, renovando-se e ressignificando-se ao longo dos tempos; já que as pessoas e seus hábitos/vontades/desejos modificam-se constantemente, as técnicas de comunicação, informação, linguagem visual, oral e escrita referentes à publicidade transformam-se na mesma proporção.

Para pontuar o exposto, Canevacci (2001, p. 158), ao descrever a figura corporal e estética da “nova” dona-de-casa em um comercial de TV, observou que sua

Imagem televisiva, não é mais a costumeira “mãe-de-familia”, modesta no vestir, o corpo em fase declinante, as expressões conciliatórias e prontas a maravilhar-se: agora ela é jovem, elegante, magra, atraente, inserida numa família nuclear otimamente definida em sentido sociológico.

Torna-se urgente a compreensão de que a linguagem e o discurso em defesa de um ideal de beleza corporal, marca a realidade social ou pensamento vigente (o qual a partir das novas ferramentas de disseminação/propagação/expansão de comunicação e informação na contemporaneidade tomou proporções astronômicas), que “perambulou” pela história e espaços/relações sociais incontáveis associando-se às construções imagéticas (SOUZA, 2004).

Desta maneira, as diversas imagens da beleza formuladas ao longo dos tempos se sobrepuseram para que pudéssemos chegar ao que se admite atualmente como belo, harmônico, sensível aos olhos.

Isso explicaria o esforço humano em transferir os pensamentos, ideias e discursos sobre a beleza ou sobre aquilo que se acreditava ser belo para o plano material e estético das formas, contornos, dimensões e composições físicas dos corpos, que por sua vez eram representados nas produções artísticas como pinturas e esculturas.

Os artistas imprimem em suas obras ou feitos artísticos, os estereótipos que transitam na coletividade e na cultura em um período histórico distinto. Tome-se, por exemplo, as imagens retratando as deficiências, consolidando atitudes sociais frente às mesmas e estabelecendo um espaço iconográfico de escrita e leitura através dos sentidos visuais (GILMAN, 1994 apud REILY, 2008).

Umberto Eco, em seu livro “História da Beleza”, logo no inicio da obra expõe que os motivos que o levaram a utilizar obras de artes para retratar o fenômeno da beleza ao longo das culturas e períodos históricos devem-se ao fato de que foram os artistas “que nos contaram através dos séculos o que eles consideravam belo e que nos

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deixaram seus exemplos” (ECO, 2010, p.12), que possivelmente refletiam os pensamentos, ideias e valores da sociedade e cultura vigente.

Reily (2008) valendo-se de esforços nesta trilha de pensamento procurou demonstrar quais eram as representações sociais e históricas sobre a figura do músico cego baseando-se em obras de artes cunhadas ao longo dos séculos, acreditando-se que essas produções artísticas e culturais contêm uma infinidade de símbolos, elementos e códigos que expressam as concepções sociais de uma determinada época e as vicissitudes sobre a figura daquele que era cego e músico.

Souza (2004, p. 31-32) amplia essa análise ao argumentar que

O cinema e as revistas também criam imagens da beleza com partes ideais de corpos. Atualmente, as revistas voltadas para o público masculino, a exemplo de Playboy, exibem em suas páginas corpos considerados perfeitos. No entanto, é sabido do grande público que esses corpos são devidamente maquiados, “cirurgiados” para esconder imperfeições aqui e acolá, e que essas mesmas imagens são retocadas com o auxílio do computador quando outros recursos não conseguem camuflar as “imperfeições” imaginárias. Tal ideia denuncia o efeito das interpretações que os sujeitos fazem dos fatos, que regidas por produções específicas, aparecem como sendo universais. No imaginário, constrói-se desde tempos longínquos uma idealização de belo que nunca se coadunou com a realidade dos corpos que circulam por aí, pois o modelo torna-se a exceção daquele ideal. Porém, todos são interpelados pelos sentidos de uma beleza ideal, e ao longo do tempo têm-na perseguido, mesmo sabendo-se impossível atingi-la.

Quando levada para o campo material da formosura e da estética corporal, os estudos sobre beleza e corpo tornam-se intrigantes, apreendendo que o universo do belo aprisiona e escraviza as pessoas em corpos fracionados, segmentados e cobrados incessantemente, reduzindo essas mesmas pessoas a um belo par de pernas, glúteos e seios (no caso da mulher) e a um belo par de braços e peitorais (no caso do homem); perdem-se com isso as identidades, que em tempos (outros) distantes marcavam fortemente a realidade social, afetiva, cultural, histórica e política da existência humana. Esse fracionamento do corpo na perspectiva de uma exaltação de determinadas partes do corpo e o seu subsequente remapeamento a partir da valorização estética e hierárquica dos segmentos corporais permite que

(...) alguns ganhem maior expressividade, como por exemplo, a bunda, uma das partes convexas do baixo corporal (...) que historicamente se afirma a partir de uma perspectiva machista e simplificadora, decalcada que é na crônica de exaltação estética do corpo feminino, não se reduz apenas ao mundo das mulheres. O remapeamento e a supressão de áreas proibidas e não proibidas, a valorização e a erotização da topografia do corpo masculino pela

100 mulher quebram tabus e criam uma espécie de espaço de exaltação do físico belo – o culto ao corpo – comum aos dois sexos (PEREIRA, 2000, p.81).

Nas palavras de Berger (2006, p. 4) “graças à supremacia das imagens, instalou- se a tirania da perfeição física. Hoje todas querem ser magras, leves e turbinadas”.

Ainda, este mesmo autor, traz importantes contribuições a respeito do “poder” das imagens na arquitetura simbólica e representacional de um modelo ideal de beleza, ao imprimir que

o poder da imagem é algo incontestável e passível de apreensão imediata. A imagem toca diretamente os sentidos, é imediatamente captada não só pelo olhar, mas também pela emoção e pela razão. Ela sugere uma variedade de coisas que só com dificuldade uma outra forma de apreensão do real e do imaginário percebe e transmite, além de ter um grande poder de síntese. Uma só imagem condensa uma série de elementos e diz muito sobre a percepção do real que a pessoa que a registrou ou criou possui (BERGER, 2006, p. 119).

Mesmo vivendo em tempos de aparente “democracia e diversidade desta beleza” (VIGARELLO, 2006), ao propagar e propagandear um padrão de beleza que se alastra através de outdoors, novelas, internet, desenhos, filmes, seriados, revistas, jornais, comerciais, corroborando para a validação, naturalização e legitimação de uma beleza que é subjetivada nas representações sociais, os diversos veículos midiáticos e seus advogados objetivam e alicerçam suas técnicas/ações/estratégias, principalmente, a partir do campo visual. Assim sendo, poder-se-ia entender que essas representações sociais de beleza, então, hipoteticamente, diferenciar-se-iam daquelas oriundas de grupos e/ou pessoas que foram privadas desta sensação visual e imagética.

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