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Era uma vez uma margarida. Toda ferida, aborrecida! Percebida entre gérbera ela era aparecida, merecida, a minha preferida. Já me despedi! Ihh! Perdi para sempre o amor! Que dor! Que sabor? Furta cor! Por favor, me espera! Lá na janela vestida toda de amarela, feito flor de maracujá. Já! Não vá! E agora? O que farei sozinha sem minha rainha. Agonia, que fria! Já virou mania!

Não! Não! Não! Era uma vez... Hmm... Era uma vez...

Era uma vez uma menina depenada! Depenada de maneira vil. Seria pela vizinha? Pelas tartarugas marinhas? Não! Acho que não! Quase em extinção! Já sei!

Pelo Planalto Central! Isso! Pela malvadeza da infância! Entre parquinhos do condomínio, apresentações de balé e tristeza de feriado: ela morreu! Quando viva passava o recreio mascando chiclets enquanto olhava para a merenda ressentida: bolo de maçã. Canelas russas, dever para colorir: morreu de nome composto! Cristina Elena! No dia 19 de março ela mascou outra coisa: as silabas afundadas na sua existência composta! Passou um dia inteiro tendo seu desgosto mastigado, indo de um lado para o outro da boca. Sentada na carteira, seu corpo descia e subia em ritmo de agonia! Só durante o dia, perdeu 2 dentes de tanta força que fazia! Acho que morreu e nasceu assim: banguela!

Não! Não!

Era uma vez uma moça feliz! Meu Deus...! Dava medo!

No texto Life-Histories (1984), Vincent Crapanzano enuncia ao citar Langness e Frank, que a história é um modo de explorar a cultura ou parte dela. Para o autor, ao se pensar em um indivíduo típico corre sempre o risco de homogeneização da cultura, o que seria um engano.

A experiência pessoal colabora e muito para a produção de saber, pois revela elementos fundamentais. Neste ponto, encontrar o campo, olhar, ouvir e escrever me permite dizer sem meias palavras que não iniciei esta pesquisa com uma hipótese. Não saberia fazer antes de ouvir, pegar na mão, olhar nos olhas de Miranda, Diana e Lia.

Ao iniciar a escrita do projeto de mestrado em 2017, a escolha do método a ser utilizado no campo foi difícil. O que era sabido é que como mulher com deficiência estava implicada. Assim, escolher o método nunca gastou tanto de mim. Exigiu que me olhasse ao espelho e me descobrisse. Até entender que a interface entre gênero e deficiência está em construção. E se me tornava, às vezes, mais rala, é também porque gastava outras. Gastava cada uma de nós, que tem uma autopercepção de si inacabada, pois no dia em que uma de nós for uma espécie de gente esgotada seremos cadáveres dissecados no balcão da loja. E não recuando frente à dificuldade do método escolhido:

Eu narro e me comprometo enquanto narro, relato a mim mesmo, ofereço um relato de mim mesma a outra pessoa na forma de história que poderia muito bem resumir como e por que sou. Mas meu esforço de resumir a mim mesma fracassa, e fracasse necessariamente, quando o "eu" apresentado na primeira frase como voz narrativa, não pode fazer um relato de como se tornou um "eu" que pode narrar a si mesmo ou narrar esta história em particular. E à medida que crio uma sequência e ligo um evento a outro, [...] até mesmo assinalando certos padrões recorrentes como fundamentais, não comunico meramente algo sobre meu passado, embora não haja dúvidas de que parte do que faço consiste nisso. Eu também enceno o si-mesmo que tento descrever: o "eu" narrativo reconstitui-se a cada momento que é evocado na própria narrativa. Paradoxalmente, essa evocação é um ato performativo e não

narrativo, mesmo quando funciona como ponto de apoio para a narrativa. Em outras palavras, estou fazendo alguma coisa com esse "eu" - elaborando-o e posicionando-o em relação a uma audiência real e imaginária - que não é contar uma história sobre ele, mesmo que "contar" continue sendo parte do que faço. Qual parte desse "contar" corresponde a uma ação sobre o outro, uma nova produção do "eu"? Assim como existe uma ação performativa e alocutária executada por esse "eu", há um limite em que o "eu" pode realmente recontar. Esse "eu" se fala e se articula, e ainda que pareça fundamentar a narrativa que conto, ele é o momento mais infundado da narrativa. A única história que o "eu" não pode contar é a história do seu próprio surgimento como "eu"que além de falar, relata a si mesmo. (BUTLER, 2017a, p. 88-89)

A escolha da história de vida como método de pesquisa implica em "um relato retrospectivo da experiência pessoal de um indivíduo, oral ou escrita, relativo a fatos e acontecimentos que foram significativos e constitutivos de sua experiência vivida" (CHIZZOTTI, 2011, p. 101). E muito da escolha deste método me veio como um recurso que possibilitasse articulações prosaicas sem maiores dificuldade. Neste ponto, envolve uma "maneira de recolar o indivíduo no social e na história: inscrita entre a análise psicológica individual e a dos sistemas socioculturais" (LAVILLE; DIONE, 1999, p. 159).

A história oral relatada por cada uma dessas três mulheres me impactou de diversas maneiras:

Eram vidas balbuciadas que mais pareciam ter saído da minha boca. Mal sabia se eram elas ou eu quem tinha vivido (Diário de Campo, 02 de agosto, 2019)

A escolha da história de vida está relacionada à descoberta do universo que essas três mulheres fazem parte, em que a narrativa de cada uma pôde (re)significar o sentido de deficiência e gênero, a partir de uma experiência que é apenas de Miranda, de Diana e de Lia. Ainda que suas lembranças, e as minhas, seja a lembrança e o presente de muitas outras mulheres. E neste lugar, cada história não possui um único sentido, pois "eu sou minha relação contigo, ambiguamente interpelada e interpelante, entregue a um 'tu' sem o qual não posso existir e do qual dependo para sobreviver" (BUTLER, 2017a, p. 106).

Neste sentido, tal método pretende uma escuta, em que eu estou implicada para além da pesquisa. Enquanto a hipótese se desenvolveu a partir e na relação entre mim e cada uma dessas mulheres. E foi o vínculo e a confiança estabelecida com as meninas (Lia, Miranda e Diana) que permitiram o desenvolvimento deste método e

fundamentalmente deste trabalho (BUTLER; 2017a; SILVA; BARROS; NOGUEIRA; BARROS, 2007; THOMPSON, 1992).