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O regime da capacidade jurídica da pessoa com deficiência no Código

A teoria das incapacidades surgiu no Brasil através de Augusto Teixeira de Freitas, no Esboço do Código Civil (1860-1865), que mais tarde sofreu alterações significativas pela obra de Clóvis Beviláqua. Freitas, ainda no século XIX, se preocupava com a dificuldade relativa ao conceito de capacidade, apresentado em países europeus, como por exemplo, o Projeto do Código Civil Português de Visconde de Seabra (CARVALHO, 2013).

Em 1859 Freitas foi contratado pelo Governo Imperial para escrita do Projeto de Código Civil, e provocado pelos debates com Seabra, apresentou uma complexa teoria das incapacidades, sem precedentes em obras europeias, por meio do Esboço do Código

Civil (1860-1865). O Esboço constituiu uma louvável sistematização técnica. Contudo,

tal dispositivo não foi finalizado como Projeto de Código Civil brasileiro, em razão de divergências políticas (CARVALHO, 2013).

Deste modo, passando por elaborações fracassadas dos projetos de Nabuco Araújo, Joaquim Felício dos Santos, Antônio Coelho Rodrigues, em 1899 foi contratado outro projeto, o de Clóvis Beviláqua, que se tornou o primeiro Código Civil Brasileiro em 1º de janeiro de 1916. Beviláqua alterou a distinção de Freitas entre incapacidade de fato absoluta e incapacidade de fato relativa referida à abrangência, passando, o novo Código a estabelecê-la sobre a intensidade (CARVALHO, 2013, 2016). Ou seja, em Freitas os absolutamente incapazes não podiam praticar nenhum ato da vida civil, e os relativamente incapazes, não podiam praticar pessoalmente certos atos da vida civil. Em Beviláqua, por outro lado, os absolutamente incapazes, de modo presumido, não possuíam discernimento para prática dos atos civis, enquanto os relativamente incapazes possuíam discernimento reduzido (CARVALHO, 2016, p. 24-25). Quanto à capacidade de direito, o Código Civil de 1916 adotou um conceito que se equipara ao de personalidade jurídica (CARVALHO, 2016).

Segundo Ivan Gustavo Trindade (2016), o Código Civil de 1916 "prelecionava que todos os ramos do Direito Civil fossem analisados sob o espeque das relações patrimoniais. Até mesmo o Direito de Família, que em tese seria desvinculado dessa perspectiva materialista, não estava desvencilhado do espírito patrimonialista" (TRINDADE, 2016, p. 17). No entanto, as relações sociais, passaram a exigir uma abordagem das capacidades para além das questões patrimoniais e individualista, isto é,

se tornou fundamental certas referências relativas à personalidade das pessoas, o que ganha maior enfoque com a Constituição Federal de 1988:

A Constituição da República seria promulgada em 5 de outubro de 1988, representado um divisor de águas também na história do direito privado brasileiro. Nela, os direitos de personalidade ganharam verdadeira cláusula geral, a de proteção e promoção da dignidade da pessoa humana. Nela, consagrou-se o princípio da pluralidade de formas de família, o da igualdade jurídica dos cônjuges, o da igualdade jurídica de todos os filhos. Nela, a função social da propriedade e, como consequência, dos contratos, ganhou contornos precisos e ousados. Foram criadas novas categorias de usucapião, com requisitos mais flexíveis e prazos menores. A proteção do consumidor passou a ser tratada como um dos fundamentos da ordem econômica (ROBERTO, 2003, p. 84).

No Código Civil de 2002, todavia, não se abandonou as premissas materialistas, nem priorizou uma abordagem humanizada no tratamento dos incapazes (DINIZ, 2014, p. 160; TRINDADE, 2016). Portanto, a codificação manteve o esquema de capacidades com as características configuradas por Beviláqua, trazendo entre as hipóteses de incapacidade de fato, na versão original do novo Código (CC/2002): os absolutamente incapazes para os atos da vida civil (art. 3º, "II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos" e "III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade"); e os relativamente incapazes para os atos (art. 4º "II - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo") (BRASIL, 2002).

Neste ponto, importa compreender a diferença entre capacidade de direito e capacidade de fato ou exercício, que circundam a capacidade jurídica, sendo assim definidas por Simone Eberle:

Enquanto a capacidade de direito representa um corolário lógico da personalidade, apresentando-se, por isso, em todos os entes a que a lei reconheça ou atribua personificação, a capacidade de fato, por sua vez justamente por ser noção afeta ao plano da efetivação dos direitos, pode ser negada àquelas pessoas em quem o legislador não vislumbre a maturidade ou o discernimento necessário à realização das escolhas autônomas (EBERLE, 2006, p. 108).

A capacidade de direito está disposta no art. 1º do Código Civil de 2002 ("Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil") e está vinculada à ideia de pessoa, sendo um conceito sem possibilidade de gradações. Este é o posicionamento da doutrina majoritária, que entende a capacidade de direito como derivação da personalidade jurídica, não sendo possível a limitação ou cerceamento da capacidade de direito (LARA; PEREIRA, 2016). Aqui, para José Fernando Simão, "retirar da pessoa humana a capacidade de direito significaria conduzi-la ao estado de objeto da relação jurídica e,

portanto, cometer-se-ia grave afronta à dignidade da pessoa humana, que constitui fundamento da República" (2008, p. 20).

Por outro lado, para Brunello Stancioli "a capacidade de fato pode ser vista como a autonomia da vontade com vestes dogmáticas, do amparo legal. Ela, então, retira-se do campo meramente ético, vinculando-se ao Direito" (1999, p. 38). Assim, segundo a versão original do CC/2002, uma pessoa sem compreensão não pode exercer os atos de sua vontade de maneira autônoma, gerando uma incapacidade absoluta que necessita de uma representação. Caso o incapaz praticasse algum ato, este seria nulo, não podendo ser convalidado (art. 166 CC/2002). Em contra partida, uma pessoa com parcial consciência sobre os atos possuía uma incapacidade relativa, que seria suprida pela assistência. E em situação de praticar ato que deve ser assistido, aplicava-se anulabilidade, podendo o ato ser convalidado pelo assistente (art. 171 CC/2002) (MENEZES, 2016, p. 574).

Entretanto, a distinção entre capacidade de direito e de fato perde o sentido frente a questões existenciais, como relativas ao direito de personalidade que assegura a dignidade humana. Neste sentido, a partir da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006), e outros tratados internacionais, surge uma necessidade ainda maior em colocar no mesmo lugar a capacidade de direito e de fato das pessoas com deficiência, o que será apresentado nos próximos pontos.

3.2. Normas e Tratados Internacionais de impacto no sentido de deficiência e