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Campo e estatuto disciplinar da Comunicação

CAPÍTULO II – EPISTEMOLOGIA DA COMUNICAÇÃO

1. Os estudos de comunicação

1.1 Conceito, campo e estatuto da Comunicação

1.1.2 Campo e estatuto disciplinar da Comunicação

O próximo passo que pretendemos empregar para melhor circunscrever o termo comunicação e, ao mesmo tempo, seguir na composição de um panorama teórico de partida para nossas reflexões, é identificar as discussões mais atualizadas sobre a constituição da Comunicação: se disciplina, ciência ou campo de estudos. Esses são os estatutos mais comumente encontrados nas produções dos autores brasileiros que se dedicam a discussões epistemológicas e metodológicas da área.

Na bibliografia dedicada ao tema, entende-se que existiria uma hierarquia entre essas acepções: o campo seria a percepção mais inicial e abrangente, com as fundamentações teóricas menos densas e com menos consenso sobre os objetos de estudo; a disciplina seria um estágio mais evoluído, no qual já haveria certo consenso – pelo menos quanto aos objetos de estudo e às teorias de fundo. Já a comunicação como ciência seria o estágio mais completo; ambiente frutífero para o desenvolvimento de pesquisas, partindo de pressupostos ou teorias gerais, com uma consistente bibliografia e referencial teórico vasto, bem como clareza nas questões epistemológicas e metodológicas. Considerando o atual estágio das discussões teóricas da comunicação, muitos autores consideram essa última posição utópica. Para os que investem na sua defesa tratam a comunicação como uma ciência em seu estado de afirmação, ou seja, em vias de se fazer.

Uma dificuldade que encontramos ao principiar essa discussão é que não fica claro de onde essa ”classificação” parte e quais foram os parâmetros para tal divisão. Por mais que haja um esforço de localização histórica dos momentos em que os termos teriam seu uso mais frequente, não se discute se essa classificação seria válida. Em outros momentos, observa-se

ainda que os pesquisadores, ou não fazem distinção dessas três vias, sendo indiferentes a qualquer hierarquia entre elas, ou alegam que é perda de tempo discutir qualquer diferenciação neste sentido. Feitas essas ressalvas, com as dificuldades que elas nos colocam para avançar sobre a adequação dos termos, podemos buscar entender essas divisões pelas contribuições dos autores.

Tiago Quiroga entende que “somente após o surgimento de diversos modos e suportes de um determinado tipo de comunicar, seguido pela consolidação de práticas de ensino e reflexão dedicadas a pensar o fenômeno, é que começa, então, a germinar a necessidade de se fundar uma ciência da comunicação” (2010, p. 140). Para o autor, é a globalização – como ápice de um processo de desenvolvimento histórico – que coloca a necessidade de elaboração de uma episteme comunicacional na ordem do dia. Contudo, uma das problemáticas centrais, hoje, na constituição de um saber comunicacional é, justamente, o “vácuo entre o que seria sua caracterização, enquanto círculo de estudos e sua possível constituição como disciplina na ordem do saber” (QUIROGA, 2010, p. 148).

Martino, por sua vez, observa que a Comunicação Social oscila entre os estatutos campo e ciência há muito tempo, dividindo as opiniões dos estudiosos. Ao atribuir-lhe, inicialmente, o crivo de ciência, o autor justifica que se trata de uma posição mais coerente, pois a epistemologia se aplica melhor ao estudo de disciplinas científicas e, além disso, considera que essa

também seja uma postura mais vantajosa, pois se sob o crivo da crítica ela não puder ser sustentada, ainda assim não seria inteiramente vão gerar elementos para situar a Comunicação em relação ao espaço científico, tal como fazem outros saberes já citados” (MARTINO, 2001, p. 63).

Vera França questiona se “o elenco de estudos que compõem o que chamamos de teoria ou teorias da comunicação pode começar a ser visto como uma nova disciplina ou campo científico particular”. E, em oposição às perspectivas anteriores de Tiago Quiroga e Martino, a constatação da autora é de que não alcançamos tal estatuto, pois ainda não teríamos constituído uma tradição de estudos capaz de “estabelecer um objeto próprio e métodos específicos de abordagem” (FRANÇA, 2010, p. 50). E mais: a autora situa a comunicação como um domínio

ou espaço interdisciplinar, pois o “pequeno patrimônio de conhecimentos específicos sobre a comunicação” trazem a marca de suas disciplinas de origem (FRANÇA, 2010, p. 50).

Com uma abordagem particular, Braga (2001) considera ocioso o debate sobre o estatuto acadêmico do campo da comunicação e destaca que o mais importante

é a constatação inarredável, na presente situação histórico-social, da objetivação de um espaço de estudos, reflexões e pesquisa percebidos largamente como relevantes, espaço este que, ao ser nomeado pelo termo “Comunicação” ou pela expressão “Comunicação Social”, encontra forte consenso quanto ao de que se está falando – ainda que o contorno e a organização interna desse espaço estejam longe de ser consensuais (BRAGA, 2001, p. 11)

Para Maria Immacolata (2006), a origem de campos de estudos – como a Comunicação – está na conjunção de dois fatores, sendo o primeiro “um movimento interno da própria ciência, que é de convergência e de sobreposição de conteúdos e metodologias, e que se faz notar de forma crescente no desenvolvimento histórico recente das Ciências Sociais” e o segundo que seriam as circunstâncias de rupturas históricas, que constituem ambiente propício para a contestação das estruturas epistemológicas vigentes. Para a autora, hoje, a circunstância histórica característica é aquilo que se convencionou chamar de “processo de globalização” e é ele que instaura a centralidade da Comunicação nos processos sociais (LOPES, 2006, p. 16). Aqui percebemos uma aproximação com o posicionamento anteriormente apresentado por Tiago Quiroga, de que a globalização seria esse processo que realmente ‘põe em destaque’ os fenômenos comunicacionais e é responsável pelo aumento do interesse em seu conhecimento, alcance e fatores de influência. Consideramos essa perspectiva de fato importante, de forma que haverá um momento no capítulo 4 para analisarmos especificamente a globalização.

Com intuito de detalhar as formas de classificação que a área recebe, Martino (2006) identifica duas acepções de campo: a mais corrente importa a noção de campo da sociologia, baseada em Bourdieu, na qual a discussão se concentra na ação dos agentes sociais na construção dos valores institucionais de certa atividade social. A segunda, entendida pelo autor como a mais relevante, seria a noção de campo em termos epistemológicos, que tem sua fundamentação em teorias e na forma como essas articulam e constroem os objetos de estudo e, dessa forma,

contribuem para a constituição de um domínio do conhecimento humano – em nosso caso, um saber comunicacional (MARTINO, 2006, p. 36).

Podemos complementar com a observação de que, ao abordar a comunicação como um campo de estudos, duas são as características a ele atribuídas de início e sobre as quais percebemos uma concentração do debate: a diversidade das abordagens possíveis e a sua pretensa natureza interdisciplinar. Sobre o primeiro aspecto, o da excessiva amplitude e diversidade do ‘campo’, conforme anteriormente abordado, é válido complementar que, para Martino, tal representação existe praticamente desde o início da tentativa de fundação de uma ciência da comunicação, no começo do século passado, devido às diferentes matrizes teóricas que animavam os primeiros experimentos voltados para os processos comunicacionais. Para ele, as dificuldades encontradas para uma representação mais precisa da área levou a um

certo consenso construído em torno da ideia de diversidade do campo, mas principalmente porque, abordado sem distanciamento crítico, sem uma investigação da significação teórica disso que aparecia como uma evidência irrefutável, essa interpretação resultará num excessivo alargamento do círculo das iniciativas de fundação da “ciência da comunicação” e da extensão mesma do domínio de conhecimento (retórica, cibernética, semiótica, linguística), pouco afeito a precisões (MARTINO, 2006, p.37).

Sobre a outra característica muitas vezes atribuída ao campo da comunicação, dedicaremos um item específico para discussão.