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Campo simbólico e relações de gênero na teoria de Pierre Bourdieu

A compreensão da teoria desenvolvida por Bourdieu (2005a) sobre a dominação masculina assume um importante papel para a compreensão minuciosa de como os elementos do passado, que chegam até nós, através da cultura, organizam a nossa percepção do mundo.

Este autor afirma que sua teoria é construtivist struturalism ou structuralist construtivism (1990, p.149), uma vez que para ele existem no mundo social e não apenas nos sistemas simbólicos, representados pela linguagem, mito, etc., estruturas objetivas, cuja existência é independente da consciência e da vontade dos agentes e que são capazes de orientar ou coagir suas práticas e representações. Em oposição a essas estruturas objetivas ele coloca a noção de construtivismo, ao dizer que há,

de um lado, uma gênese social dos esquemas de percepção, pensamento e ação que são constitutivos do que ele chama de habitus e, de outro, das estruturas sociais, em particular do que ele chama de campos e grupos, e particularmente do que se costume chamar de classe sociais (BOURDIEU, 1990, p.149).

Lengermann e Niebrugge-Brantley (2000) afirmam que para Bourdieu é importante incluir na sua sociologia a maneira como as pessoas, baseadas na sua posição no espaço social, percebem e constroem o seu mundo numa percepção e construção que são animadas pelas estruturas. Por isso ele demonstra interesse em investigar a relação entre as estruturas sociais e as estruturas mentais. O núcleo de seu trabalho, e de seu esforço em vincular campos sociais e campo simbólico, está alicerçado em seu conceito de habitus (existe na mente dos agentes), de campo (existe fora das mentes), e no processo dialético que se estabelece entre eles. Para Bourdieu (2005b), ele consiste em predisposições incorporadas que funcionam como esquemas geradores das práticas, ou a matriz, ou origem da série de estruturações e reestruturações presentes nas mais variadas experiências na vida dos agentes. Como afirma Micelli (2005b, p.XLVII),

assim como o habitus adquirido através da inculcação familiar é condição primordial para a estruturação das experiências escolares, o habitus transformado pela ação escolar constitui o princípio de estruturação de todas as experiências ulteriores, incluindo desde a recepção das mensagens produzidas pela indústria cultural até as experiências

profissionais. O objeto para análise não se restringe apenas às práticas dos grupos mas incide sobre os princípios de produção de que são produto, vale dizer o habitus de classe e os princípios de produção de tal ethos, a saber, as condições materiais de existência.

No processo de socialização, os/as agentes vivem uma relação dinâmica entre uma série de representações culturais que a pessoa herda do passado, no processo de socialização, e que são internalizadas como estruturas mentais ou cognitivas (habitus), pelas quais percebem e avaliam a sociedade onde vivem e o pensamento, ou as ações variadas do cotidiano. Essa internalização varia de acordo com a posição que o agente ocupa no mundo; embora, nem todas as pessoas tenham-no inculcado de maneira similar, as que ocupam uma mesma posição, dentro do mundo social, aspiram por assemelhar-se aos demais componentes do seu grupo.

Existe uma vastíssima gama de habitus que se impõe sobre os indivíduos de modo irresistível e que se manifesta em seus gestos, em seus corpos, sem que, na maioria das vezes, a razão e a consciência atuem neste jogo de escolhas. No entanto, para Bourdieu, a possibilidade de escolher não fica totalmente excluída. Tendo rejeitado a visão totalmente estruturalista, que considera os processos sociais como simples reflexos do que as estruturas culturais propõem às respectivas sociedades, elaborou um pensamento no qual articulou tanto as atuações individuais, como aquelas que Lugli chamou de ‘os constrangimentos estruturais’. Procurava, assim, responder como, exatamente, os comportamentos de cada um, com suas inúmeras variações, “vinculam-se às normas e estruturas sociais e, no sentido inverso, como é constituído o poder que as normas e estruturas sociais possuem sobre todos os indivíduos numa dada cultura?” (LUGLI, 2007, p.27).

Bourdieu (1990), ao trabalhar com o conceito de habitus, afirmou que ele faz parte de um sistema que é constituído pela prática e constantemente realiza funções práticas, num processo dialético. Ou seja, a prática tende a lhe dar forma, e ele por sua vez serve para unificar e gerar a prática. Em síntese, este autor o define como “um sistema de esquemas de produção de práticas e um sistema de esquemas de percepção e apreciação das práticas” (BOURDIEU, 1990, p.158).

No entanto, apesar de constituir-se o habitus numa estrutura internalizada, que atua na percepção do mundo e nas decisões dos agentes, esses não respondem mecanicamente às disposições incorporadas e nem às estruturas

externas. Essa é, pois, a diferença entre a posição de Bourdieu e as posições da maioria dos outros pensadores estruturalistas. O habitus ‘atua subliminarmente’ nas decisões das pessoas, que podem, a partir de deliberações conscientes, nortear suas estratégias de atuação no mundo social. Isso, porém, não é fácil de ser percebido, pois, segundo o pensamento de Bourdieu (apud LENGERMANN; NIEBRUGGE-BRANTLEY, 2000, p.503), ele “funciona abaixo do nível da consciência e da linguagem, e além do alcance do escrutínio introspectivo e do controle da vontade”.

Os habitus não se constituiriam fora das estruturas sociais, ou campos sociais, onde o campo simbólico atua para sua constituição. A noção de campo possui um caráter mais relacional do que estrutural, uma vez que Bourdieu o considera como o local onde se processa a rede de relações entre as posições objetivas, situadas nele, que existem separadas da consciência, e a vontade coletiva. Campo é onde a prática faz o jogo dialético entre essas redes de relações, atuando como uma arena de luta. Sua estrutura é que aponta as estratégias mediante as quais os ocupantes de posições buscam, individual ou coletivamente, preservar ou melhorar sua posição, impondo o princípio de hierarquização mais favorável para seus produtos. O campo é como um mercado competitivo no qual se empregam e desdobram vários tipos de capital (econômico, cultural, social, simbólico). As posições dos diversos agentes do campo dependem da quantidade e peso relativos do capital que possuem.

Lengermann e Niebrugge-Brantley (2000) destacam a preocupação de Bourdieu pela relação entre os dois conceitos, que, para ele, operam em duas direções: de um lado o campo que condiciona o habitus, e por outro, o campo que é constituído por ele como algo significativo, com sentido e valor, numa dinâmica relação dialética.

Os ocupantes das posições, que podem ser agentes ou instituições, são constrangidos pela estrutura de campo (artístico, econômico, religioso, ou outros), e sua lógica específica, que é responsável por gerar crenças sobre as coisas importantes no campo.

Para o estudo da dominação masculina, e para demonstrar os processos que são responsáveis pela transformação da historia em natureza, do arbitrário cultural em algo considerado natural, Bourdieu (2005a) valeu-se da já referida pesquisa realizada com os cabilas na Argélia. A partir do contato com esse grupo

social, concretizou-se sua proposta de transformar um complexo exercício de reflexão em uma espécie de experiência de laboratório. Assim, passou a tratar a análise etnográfica das estruturas objetivas e das formas cognitivas dessa população, como instrumento de um trabalho de sócio-análise do inconsciente androcêntrico, “capaz de operar a objetivação das categorias deste inconsciente” (BOURDIEU, 2005a, p.13). Esta foi uma escolha plenamente justificada, tendo em vista que a tradição cultural, que ali se manteve, constitui um modelo da tradição mediterrânea, que está presente em toda a área cultural européia, como comprova a comparação de rituais observados na Cabília com os que foram registrados na França em princípios do século XX. A escolha por este grupo possibilitou-lhe investigar, in loco, um sistema que ainda está em funcionamento e que permaneceu relativamente à margem de reinterpretações semi-eruditas, por não possuírem uma tradição escrita.

A sua pesquisa foi longa, com resultados de grande abrangência, e tem servido para avaliar todo o processo social de constituição e reprodução de representações de gênero, que contribuem fortemente para a formação das identidades generificadas.

Ao escrever sobre a dominação masculina, ele mostra qual foi o papel do aparelho sexualde homens e mulheres para determinar a construção das diferenças sexuais, em tempos remotos, no início da socialização, e que serviu para definir o sexo feminino como inferior, assim como as atividades que vão ser relacionadas às mulheres e por elas exercidas, e o sexo masculino como superior, assim como tudo aquilo que lhe diz respeito. Bourdieu (2005a) constatou que, no universo da sociedade cabila, as diferenças sexuais permanecem imersas no conjunto das oposições presentes na organização de todo o cosmos, e os atributos e atos sexuais se vêem sobrecarregados de determinações antropológicas e cosmológicas.

Este estudo permitiu-lhe estudar como se dá a dissimetria, ao avaliar a forma como foram estruturadas as relações entre homens e mulheres, as quais, convertidas em capital simbólico, continuaram a reproduzir a mesma hierarquia de gênero (homem num patamar superior à mulher na sociedade). Pode assim verificar quando e como começa a dominação masculina, e como se dá a inculcação dessa hierarquia, que acaba impregnando de tal maneira o inconsciente de todos os sujeitos, sem ser percebida, porque ela está afinada com as estruturas objetivas, cenário onde ocorrem as interações responsáveis pela construção dos habitus. Isso

vai longe no tempo e o que continua atuando são representações simbólicas, que penetram, no início da socialização, em nossas estruturas mentais, e que se repetem em nossas interpretações do mundo.

Das observações junto aos cabilas, surgiram os questionamentos: Qual é o significado da mulher neste tipo de sociedade e o que ela significa para o processo de acumulação de capital social na família? No vai e vem de suas observações, ele constatou que a aquisição do capital social e do capital simbólico11 constitui, de certo modo, a única forma possível de acumulação de capital nestas sociedades primitivas e que as mulheres representam valores que são necessários conservar ao abrigo da ofensa e da suspeita. Ao analisar a relação das mulheres na economia das trocas simbólicas, ele afirma que elas representam valores que

investidos nas trocas, podem produzir alianças, isto é, capital social e aliados prestigiosos, isto é, capital simbólico. Na medida em que o valor dessas alianças, e portanto o lucro simbólico que elas podem trazer, depende, por um lado, do valor simbólico das mulheres disponíveis para a troca, isto é, de sua reputação e sobretudo de sua castidade-constituída em medida fetichista da reputação masculina e, portanto, do capital simbólico de toda a linhagem, a honra dos irmãos e dos pais, que leva a uma vigilância tão cerrada, quase paranóica, quanto a dos esposos, é uma forma de lucro bem-compreendida (BOURDIEU, 2005a, p.59).

O peso determinante do que Bourdieu chama de economia de bens simbólicos, que organiza toda a percepção do mundo social, através do princípio da divisão fundamental, é decorrente de sua imposição “a todo o universo social e não só à economia da reprodução biológica” (BOURDIEU, 2005a, p.59). As disposições incorporadas são inseparáveis das estruturas que as produzem e as reproduzem, tendo o seu fundamento na estrutura do mercado de bens simbólicos.

A divisão sexual está inscrita, pois, de um lado, na divisão das atividades produtivas, associadas à idéia de trabalho, e por outro, mais amplamente, na divisão do trabalho de manutenção do capital social e do capital simbólico, capital esse que atribui aos homens o monopólio de todas as atividades sociais e públicas, com aptidões e propensão para executar as tarefas constitutivas do senso de honra, e reduz a mulher ao estado de objeto de troca. Vemos, portanto, que é na lógica da

11 Capital simbólico: poderes e direitos duradouros sobre as pessoas.”Os homens produzem signos

e os trocam ativamente como parceiros - adversários unidos por uma relação essencial de igualdade na honra, condição mesma de uma troca que pode produzir a desigualdade na honra, isto é, a dominação [...]” (BOURDIEU, 2005a, p.58).

economia de trocas simbólicas, resultado simbólico da construção social das relações de parentesco e do casamento, que reside a explicação do primado concedido à masculinidade na hierarquia cultural. As mulheres têm ali determinado o que Bourdieu (2005a) chama de ‘estatuto social de objeto de troca’, definido segundo os interesses masculinos e que contribui para a reprodução do capital simbólico que coloca o homem no topo da hierarquia.

Os costumes antigos que negociavam as filhas mulheres em casamentos arranjados, visando lucros ou aquisição de poder, deixando-as totalmente fora de qualquer decisão, negando-lhes o direito de serem sujeitos da aliança que se instaurava através delas, reduziram-nas à condição de objeto, ou melhor dizendo, segundo Bourdieu, de instrumentos simbólicos, passando a valer como signos fiduciários, uma vez que “ficam reduzidas à condição de instrumentos de produção e reprodução do capital simbólico e social” (BOURDIEU, 2005a, p.56).

Segundo Bourdieu (2000, p.8), a tradição neo-kantiana considera que os diferentes universos simbólicos, como mitos, língua, arte, ciência, são “instrumentos de conhecimento e de construção do mundo dos objetos ‘como formas simbólicas’”. O poder simbólico atua na construção da realidade e tende a estabelecer uma ordem do conhecimento, que expressa o sentido imediato do mundo e, sobretudo, do mundo social. Os símbolos atuam como instrumentos da integração social, possibilitando que haja consenso “acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração ‘lógica’ é a condição da integração ‘moral’” (BOURDIEU, 2000, p.10).

Os sistemas simbólicos, enquanto instrumentos estruturados (no social) e estruturantes (nas mentes), cumprem funções políticas de imposição como também de legitimação da dominação, que tem por finalidade garantir o domínio de uma determinada classe, bem como reforçar a sua própria força nas relações de força que as fundamentam, contribuindo, dessa forma, “para a domesticação dos dominados”, segundo expressão de Weber (BOURDIEU, 2000, p.11).

As diferentes classes e frações de classes, de gênero, de raça, de etnia, estão envolvidas nessa luta propriamente simbólica que tem a finalidade de impor uma definição do mundo social que se conforme com seus interesses.

Embora não se tenha a consciência do habitus, e de seu funcionamento, ele se manifesta na maioria de nossas atividades práticas, seja na de comer, escrever, caminhar, falar, pensar, agir, em resumo, em todas as atividades.

Para melhor entendermos o que ocorre não podemos esquecer que o princípio da visão dominante não está claramente visível nas nossas mentes. Na verdade, ele manifesta-se como “um sistema de estruturas duradouramente inscritas nas coisas e nos corpos” (BOURDIEU, 2005a, p.64), imperceptíveis para nós, o que o caracteriza como manifestação da ‘violência simbólica’12. Esta violência não reside nas consciências e sim nas disposições modeladas pelas estruturas de dominação que as produzem. Por isso é importante que se esteja atento para não considerar que a violência simbólica seja uma violência meramente espiritual, sem efeitos reais, a exemplo do conceito de simbólico como oposto do real. A teoria da economia de bens simbólicos tem servido para mostrar que a experiência subjetiva das relações de dominação manifesta-se na objetividade.

Estas representações sobre homens e mulheres são atitudes e posições semelhantes, que se reproduzem em diferentes contextos e épocas. Até as mulheres mais educadas, intelectualizadas, repetem posturas, que se assemelham às posturas de mulheres em nível de vida de sociedades arcaicas, como a sociedade cabila.

Embora Bourdieu (2005a, 2005b) seja incisivo em suas afirmações quanto ao poder simbólico, colocando homens e mulheres, presos indelevelmente à violência simbólica, abre um pequeno espaço para comportamentos decorrentes de análises racionais dos fatos. As disposições incorporadas atuam na percepção do mundo e nas decisões do agente, porém, sem determiná-las, como já foi visto. Ele considera que, a partir das disposições incorporadas, deve ser levada em conta a possibilidade de que homens e mulheres, ancorados em fatos reais, a partir de deliberações conscientes, norteiem suas estratégias de atuação no mundo social.

Buscando entender todo o processo de construção de uma história de gênero, em seu amplo espectro, considerei necessário realizar a retomada até séculos anteriores (XVII, XVIII, XIX), nos quais foram modificados e rompidos

12 “A violência simbólica não se processa senão através de um ato de conhecimento e de

desconhecimento prático, ato este que se efetiva aquém da consciência e da vontade e que confere seu ‘poder hipnótico’ a todas as suas manifestações, injunções, sugestões, seduções, ameaças, censuras, ordens ou chamadas à ordem. Mas uma relação de dominação que só funciona por meio dessa cumplicidade de tendências depende, profundamente, para sua perpetuação ou para sua transformação, da perpetuação ou da transformação das estruturas de que tais disposições são resultantes (particularmente da estrutura de um mercado de bens simbólicos cuja lei fundamental é que as mulheres nele são tratadas como objetos que circulam de baixo para cima)” (BOURDIEU,2005a, p.55).

parâmetros que haviam marcado a sociedade ocidental durante milênios. A mudança de concepção em relação à constituição da sexualidade dos homens e das mulheres levou a sociedade a desvincular-se de uma tradição antiga que lidava com o senso da cosmologia sexualizada. Cosmologia que trabalhava com o princípio da inferioridade e da exclusão da mulher, ratificada pelo sistema mítico-ritual, que o tornou ‘o princípio de divisão de todo o universo’ (BOURDIEU, 2005a), e que não era determinada pelas diferenças sexuais. Temos, então, o que Bourdieu denominou de dissimetria fundamental, instaurada entre homens e mulheres, em épocas remotas, a partir de realidades objetivas e que situava o sujeito ou agente (homem) de um lado, e do outro, o objeto, ou instrumento (mulher).

Apesar da mudança de avaliação em relação ao sexo, esta dissimetria mantém-se

presente no terreno das trocas simbólicas, nas relações de produção e reprodução do capital simbólico, cujo dispositivo central é o mercado matrimonial, que estão na base de toda a ordem social: as mulheres só podem aí ser vistas como objetos, ou melhor, como símbolos cujo sentido se constitui fora delas e cuja função é contribuir para a perpetuação ou o aumento do capital simbólico em poder dos homens (BOURDIEU, 2005a, p.55).