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2 CONCEITOS DE BASIL BERNSTEIN

2.3 CAMPOS DE PRODUÇÃO, RECONTEXTUALIZAÇÃO E REPRODUÇÃO

apropriar outros discursos e colocá-los numa relação mútua especial, com vistas à sua transmissão e aquisição seletivas”, dessa forma ele é constituído pela interação de pelo menos três campos: o campo de produção, o campo de recontextualização e o campo de reprodução. No campo de produção são produzidos os outros discursos apropriados pelo discurso pedagógico, no campo de recontextualização esses outros discursos são colocados numa relação mútua especial e no campo de reprodução (no qual ocorrem práticas pedagógicas escolares) busca-se a transmissão e aquisição26 do discurso pedagógico.

No campo de produção são criadas novas ideias e desenvolvidos discursos especializados (como matemática, sociologia, entre outros). Essa criação e desenvolvimento, em geral, surgem em pesquisas de universidades, institutos e escolas politécnicas, ou seja, fora da maior parte do sistema educacional (campo de reprodução). O campo de reprodução pode ser relacionado às salas de aula, principalmente, da Educação Básica. Segundo Bernstein (1996), há uma classificação forte entre o campo de produção e o de reprodução, o que “exige” o desenvolvimento de um campo de recontextualização. Esse transforma o texto (forma de relação social tornada visível, palpável, material, por meio da fala, da escrita, de gestos...) criado no campo de produção para adaptá-lo ao campo de reprodução. Assim, no campo de recontextualização o texto é deslocado do campo de produção e realocado no campo de reprodução, nesse processo ele é modificado, tendo um novo foco, uma nova relação com outros textos, um novo posicionamento ideológico.

Até chegar às salas de aula o texto sofre no mínimo dois tipos de transformações. Segundo Bernstein (1996, p. 92) “a primeira é a transformação do texto dentro do campo

26 Acerca dos conceitos de transmissão e aquisição apresentados por Basil Bernstein, Silva, L. (2013, p. 20)

trouxe que “embora o autor não desenvolva uma definição clara acerca do processo de transmissão e aquisição, entendemos que o processo de transmissão está relacionado à pedagogização do conhecimento, enquanto que o processo de aquisição está relacionado à aprendizagem ou a produção textual dos adquirentes”. Compartilhamos do entendimento dela.

recontextualizador e a segunda é a transformação do texto transformado, no processo pedagógico, na medida em que ele se torna ativo no processo de reprodução dos adquirentes”. Essa primeira transformação pode ser relacionada ao campo de recontextualização oficial – que “inclui os departamentos especializados e as subagências do Estado e as autoridades educacionais locais, juntamente com suas pesquisas e sistemas de inspeção” (BERNSTEIN, 1996, p. 270), ou seja, do qual fazem parte o Ministério de Educação e as Secretarias de Educação – e a uma parte do campo recontextualizador pedagógico. Tal parte inclui universidades e escolas politécnicas (mesmo também constituindo o campo de produção), faculdades de educação e suas pesquisas e “meios especializados de educação, jornais semanais, revistas, etc. e as editoras, juntamente com seus avaliadores e consultores” (BERNSTEIN, 1996, p. 270). A segunda transformação está relacionada ao planejamento das aulas e as especificidades de cada escola, pois

[...] aquilo que é reproduzido nas escolas pode, ele próprio, estar sujeito aos princípios recontextualizadores vindos do contexto específico de uma dada escola e à eficácia do controle externo sobre a reprodução do discurso pedagógico oficial. Além disso, o que é reproduzido pode ser afetado pelas relações de poder do campo recontextualizador entre a escola e o contexto cultural primário do adquirente (família/comunidade/relações no grupo de colegas). A escola pode incluir, como parte de sua prática recontextualizadora, discursos da família, da comunidade, das relações no grupo de colegas do [aluno], para propósitos de controle social, a fim de tornar seu próprio discurso regulativo mais eficaz. Inversamente, a família, a comunidade, as relações no grupo de colegas podem exercer sua própria influência sobre o campo recontextualizador da escola e, dessa forma, afetar a prática dessa última. (BERNSTEIN, 1996, p. 279, alteração nossa)

Ainda sobre o campo de recontextualização, Bernstein (1996, p. 271) estabeleceu que “as principais atividades dos campos recontextualizadores são as de criar, manter, mudar e legitimar o discurso, a transmissão e as práticas organizacionais que regulam os ordenamentos internos do discurso pedagógico”. Assim esse campo é responsável por constituir o “que” e o “como” do discurso pedagógico, dessa forma, nele são decididos os valores da classificação e do enquadramento que estarão presentes na sala de aula. Na Figura 7 apresentamos uma síntese do que foi trazido sobre os campos de produção, recontextualização e reprodução, segundo Bernstein (1996).

Figura 7: Síntese dos campos de produção, recontextualização e reprodução segundo Bernstein (1996). Fonte: arquivo pessoal.

Bernstein (1998) também discutiu a recontextualização, ele falou sobre a ideologia que é incorporada aos discursos durante esse processo,

quando o discurso se desloca de sua localização original a nova, enquanto discurso pedagógico, produz-se uma transformação. Essa transformação se realiza porque, cada vez que um discurso muda de uma posição a outra, há um espaço em que pode intervir a ideologia. Nenhum discurso de desloca sem que intervenha a ideologia. (BERNSTEIN, 1998, p. 62, tradução nossa)

Essa ideologia (interesses) é a do Estado, quando se trata do campo recontextualizador oficial, e dos pesquisadores, professores e comunidades escolares no campo recontextualizador pedagógico. Bernstein (1998, p. 63) também associou o discurso pedagógico à recontextualização, segundo ele o discurso pedagógico é um princípio recontextualizador e esse princípio se “apropria, recoloca, recentra e relaciona seletivamente outros discursos para estabelecer sua própria ordem”. Dessa forma, segundo ele, o discurso pedagógico nunca é idêntico a nenhum discurso que tenha recontextualizado. Ainda assim, no processo de recontextualização, são selecionadas e apropriadas partes do discurso do campo de produção para serem recolocadas no campo de reprodução (no qual opera o discurso pedagógico).

Bernstein (1996) associou as faculdades de educação ao campo recontextualizador, já Bernstein (1998, p. 144) trouxe que indivíduos que não estão em campos de produção (em geral, as instituições superiores de educação) podem criar ou criam novo conhecimento (tarefa relacionada ao campo de produção), porém a história, o desenvolvimento e o posicionamento desse conhecimento serão diferentes. Sobre isso ele afirmou que “depois que os indivíduos alheios ao campo de produção criam o conhecimento novo, os princípios do campo [de produção] operarão como se esse conhecimento fosse incorporado ao campo.” (BERNSTEIN, 1998, p. 144, tradução nossa).

Entre pesquisas do Grupo ESSA que utilizam os conceitos de campos, Saldanha e Neves (2007) analisaram em que medida exames nacionais do ensino português

condicionavam a recontextualização entre programas (os programas apresentam opções de, por exemplo, textos a serem apropriados, interações pedagógicas e relações entre conhecimentos) e práticas pedagógicas. Elas apresentaram as siglas DRG, DPO e DPR. DRG diz respeito ao discurso regulador geral, “ao discurso oficial do Estado, sendo institucionalizado através de textos legais e administrativos” (SALDANHA; NEVES, 2007, p. 5). No Brasil, um exemplo de DRG é a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, segundo a qual compete ao Estado legislar sobre “educação, cultura, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação;” (BRASIL, 1998, p. 17). O DPO é o discurso pedagógico oficial, ou seja, o DRG após passar pelo campo de recontextualização oficial para ser adaptado ao contexto educacional. Um exemplo de DPO, no Brasil, é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que define “aprendizagens essenciais” que todos os alunos devem desenvolver ao longo da Educação Básica. O DPR significa discurso pedagógico de reprodução e representa o DPO após passar por parte do campo recontextualizador pedagógico, um exemplo de DPR são os livros didáticos.

Saldanha e Neves (2007, p. 5), assim como Bernstein (1996), salientaram que, quando levado para a sala de aula, o DPR sofre “ainda novos processos de recontextualização, consequência da relação que se pode estabelecer entre o contexto da escola/sala de aula e o contexto da família/comunidade”. No entanto, as autoras não nomearam essa terceira recontextualização, que foi identificada como segunda transformação por Bernstein (1996). Após passar por ela, o discurso torna-se parte do campo de reprodução, que tem lugar nas escolas e salas de aula.

Saldanha e Neves (2007) não relacionaram o campo de produção aos discursos (DRG, DPO, DPR) que apresentaram. Acreditamos que esse campo é influenciado pelo DRG e que, junto a esse discurso, passa pelo campo recontextualizador oficial. Na Figura 8 apresentamos, com a inclusão do campo de produção, o caminho percorrido – do discurso regular geral à sala de aula – segundo Saldanha e Neves (2007).

Figura 8: Discursos apresentados por Saldanha e Neves (2007) + campo de produção. Fonte: arquivo pessoal.

Calado (2007) analisou a recontextualização que ocorria entre documentos curriculares referentes ao ensino de ciências em Portugal (DPO) e manuais escolares27 dessa disciplina (DPR). Um de seus objetivos foi caracterizar o sentido e a extensão da referida recontextualização, para isso ela utilizou instrumentos para caracterizar os documentos e os materiais (em relação a graus de explicitação, complexidade e intradisciplinaridade e valores de classificação e enquadramento) e depois comparou tais caracterizações.

Já Silva, M. (2009) analisou a recontextualização que ocorria entre materiais escolares e a prática pedagógica de dois professores, assim como buscou entender o que levava tais professores a recontextualizar os referidos materiais. Ela também se referiu ao sentido e ao grau de recontextualização e utilizou instrumentos de caracterização em suas análises. Nessas, Silva, M. (2009, p. 322) verificou “que os dois professores recontextualizaram o DPR expresso nos materiais curriculares, embora com sentidos e extensões diferentes” e afirmou que “para tornar mais explícito o processo de recontextualização do DPR, por parte de cada um dos professores, analisaram-se, separadamente, os contextos instrucional e regulador” (SILVA, M., 2009, p. 322).

Silva, M. (2009) observou que um dos professores recontextualizou os materiais curriculares no mesmo sentido desses materiais, por exemplo, no contexto regulador ele enfraqueceu mais o controle da relação professor-alunos do que os materiais indicavam. Assim esse professor recontextualizou os materiais em grau mínimo ou baixo. Já o outro professor recontextualizou os materiais escolares no sentido oposto a eles, ou seja, quando os materiais indicavam o enfraquecimento do controle (enquadramento) ele o fortaleceu, dessa forma, a recontextualização feita por esse professor teve grau elevado.

Sobre as razões que fundamentaram a recontextualização feita pelos dois professores, Silva, M. (2009, p. 390) considerou que:

a proficiência científica dos professores e a valorização atribuída a alguns princípios pedagógicos e ideológicos (ideologias) parecem ter influenciado esta recontextualização; no entanto, o discurso pedagógico oficial, presente nos documentos curriculares oficiais, [...] não se afigurou como potencial factor de recontextualização da mensagem dos materiais curriculares.

O discurso pedagógico oficial (DPO), diferente de Saldanha e Neves (2007) e de Calado (2007) não é nosso foco nesta dissertação. Temos mais semelhanças com a pesquisa de Silva, M. (2009), que observou a recontextualização em práticas pedagógicas e buscou fundamentar as razões dessa recontextualização.

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Segundo Calado (2007, p. 4) “os manuais escolares são a principal fonte de implementação do currículo e que, por sua vez, aqueles são elaborados com base nas indicações dos documentos curriculares, principalmente, com base nas directrizes curriculares específicas da respectiva disciplina [...]”.

Assumimos que o campo de produção é constituído por pesquisas, pois elas produzem novos discursos e conhecimentos, novas ideias e concepções. Dessa forma, no próximo capítulo o campo de produção está relacionado a três concepções de Modelagem Matemática (seção 3.1).

Assumimos como pertencentes ao campo de recontextualização os contextos de Modelagem Matemática na Licenciatura em Matemática (seção 3.2), pois eles ocorreram a partir da recontextualização de concepções e etapas de Modelagem Matemática e dos planos de ensino (objetivos) das disciplinas/projetos/iniciação científica que fizeram parte. Também, essas aulas pertencem ao campo de reprodução, pois são práticas pedagógicas escolares, que contaram com a segunda transformação apresentada por Bernstein (1996), decorrente das vivências dos professores que as ministraram e do controle que foi compartilhado (ou não) com os licenciandos.

Os textos produzidos nas entrevistas, utilizadas para analisar a apropriação de regras de reconhecimento e realização pelos licenciandos (seção 3.3), também fazem parte do campo de recontextualização pedagógica, pois: recontextualizamos a entrevista feita por Saraiva (2016) segundo nosso tema e objetivos, e; consideramos que os textos produzidos pelos licenciandos constituem uma recontextualização, tanto das vivências deles nos cursos de licenciatura, quanto das características e caracterizações escolhidas por eles durante a entrevista.

2.4 CONCEITOS DE BASIL BERNSTEIN E MODELAGEM MATEMÁTICA