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CANÇÕES SEM METRO: INTRADIALOGISMO ENTRE CANÇÕES DO LIVRO E DO PERIÓDICO A GAZETA DA TARDE

No documento Raul Pompéia: jornalismo e prosa poética (páginas 170-172)

3 JORNALISMO E PROSA POÉTICA: ANÁLISE DOS TEXTOS DE A GAZETA DA TARDE

TORMENTA E BONANÇA XL

4 CANÇÕES SEM METRO: INTRADIALOGISMO ENTRE CANÇÕES DO LIVRO E DO PERIÓDICO A GAZETA DA TARDE

A primeira diferença que percebemos entre as canções constantes do livro e as do periódico são as epígrafes que aparecem em quase todos os textos reunidos em livro. Dos oitos textos priorizados para análise no corpus da pesquisa, apenas uma das canções, “Solução”, não traz uma epígrafe. O livro como obra total apresenta uma epígrafe geral e trata-se de um texto de Paul Pierson que diz: “as palavras que compõem o verso não têm em si mesmas nenhuma medida determinada; elas só a apresentam a partir do momento em que são pronunciadas num tempo medido; o que é medido não é, então, o verso, mas o tempo e a ciência da medida, a métrica, tal como a entendemos em seu sentido verdadeiramente geral e científico, pode-se aplicar a toda medida de tempo, qualquer que seja o agente rítmico, dança, canto ou palavra”.

Esse texto vem de um livro publicado na coleção que a escola de Altos Estudos do Ministério de Instrução Pública da França fazia editar e tem a introdução de Gaston Paris, talvez o mais respeitado filósofo europeu de sua época. Paul Pierson morreu alguns anos antes da época literária de Pompéia, aos 29 anos e sua obra, cujo valor consiste apenas em seu sentido instigador, é uma tentativa de identificar as leis que regem a estruturação da expressão natural. A idéia vem da impressão de Pierson de que há um certo ritmo que corresponde a cada uma das expressões que se deseja transmitir. Este ritmo pode ser definido por meio do recurso às leis da composição musical. Segundo aquele pensador, assim, a arte da métrica poderia se transformar em uma ciência.

Essas idéias podem ter sido julgadas importantes por Pompéia, pelo seu caráter de modernidade à época, assim como pela tentativa, comum aos sistemas racionais do século XIX, de reduzir a complexidade geral a algumas linhas simples e elegantes.

As epígrafes mostram o cuidado do autor em sua seleção. Pompéia retirou as epígrafes da bíblia, de alguns poetas medievais, como Dante e Shakespeare, do pintor e alegorista Proud`hon, de Leopardi, Victor Hugo, Heine, Espronceda e dois regionalistas exarcebados (Verdaguer e

Brizeux) e elas servem de suporte para o seu objetivo, a construção de um novo gênero, a prosa poética no Brasil, numa afirmação das contradições e da permanência do cânone ocidental. Nesta primeira canção a épigrafe é do Conde Giácomo Leopardi (1798-1837), escritor italiano, desiludido com o amor e a com a política mergulhou em desolada solidão. Escreveu: A Itália (1918), Poesias líricas (1824-1835), Canto noturno (1831), A Giesta (1836).

1. RUMOR E SILÊNCIO

— Cosi tra questa

Immensitá s’annega il pensier mio; E il maufraga m’e dolce in questo maré.

G. LEOPARDI – L’infinito.“Ouvis, lá abaixo o rumor da cidade, a grita dos homens, o estridor dos carros, o tropel dos ginetes, o fragor das indústrias? Ouvis de outra banda a voz do arvoredo, os pássaros saudando a tarde, pó vento angustiado a harpa cólica das frondes? Ouvis esse clamor ingente que as ondas mandam? É a sinfonia da vida.

Diz-se então que o silêncio é a morte.

Multiplicai esses rumores. Agravai o tumulto industrial dos homens na paz com as perturbações estrepitosas da guerra; reforçai as vozes da floresta e do mar, juntai-lhes a solene toada das catadupas, o pungente mugir dos oceanos lanceados pelo temporal, as explosões elétricas do raio, a crepitação fragorosa dos gelos derrocados pelo sopro da primavera polar, o garganteio monstruoso dos vulcões inflamados; fazei rugir o coro das catástrofes humanas e dos cataclismos geológicos.

Dizei, depois, onde mais intensa é a vida e maior o assombro, se embaixo ou em cima, no zimbório diáfano que a noite vai conquistando agora, na savana imensa onde transita a migração dos dias e viajam as estrelas, onde os meteoros vivem, onde os cometas cruzam-se como espadas fantásticas de arcanjos em guerra – na mansão dos astros e dos sagrado silêncio do infinito?!”.

No uso da sonoridade das palavras e de suas combinações pelas ressonâncias de natureza psicológica que suscitam, o escritor consegue efeitos de evocação musical bem sugestivos. A estrutura das frases expressa tendência para as formas regulares que indicam uma intenção de

produzir cadências métricas e estróficas. As simetrias, os paralelismos e as enumerações provocam uma certa sonoridade compassada, irregular, sugerindo uma atmosfera poética. O ritmo e as medidas silábicas da frase são instrumentos da criação de um clima sutil de ressonâncias líricas. Ao longo de sua produção vai aumentando o elemento musical como recurso técnico que vai trazer a cumplicidade dos sentidos do leitor, conduzindo-o ao universo particular de sua criação, ao movimento lírico em que nasce a idéia no espírito do autor. Por meio de uma variada utilização de valores fônicos das palavras, Pompéia consegue associar significado e som e percebe-se em cada idéia e emoção a correspondência com a melodia e o ritmo dando expressividade à construção inovadora do gênero misto que se propôs desenvolver com sua disciplina e individualidade artística. O poema,”Rumor e silêncio”, aqui, mantém o mesmo título do texto original do periódico. Há o acréscimo da epígrafe (palimpsesto), de Leopardi, extraída de L’infinito, de acordo com o tema que nomeia a quinta parte do livro Canções sem metro. Há a presença de figuras belíssimas e o tema divide-se na antítese Rumor e Silêncio, paradoxalmente correspondentes à vida e à morte. A temática básica em ambas as versões é o questionar: se a vida é mais intensa na eternidade, – “abismo discreto habitado pelos astros e pelo silêncio sagrado do infinito -, ou, na versão em livro, – “na mansão dos astros e do sagrado silêncio do infinito”.

Houve mudança no layout do texto, na pontuação, substituição em nível paradigmático. O resultado é uma linguagem mais sutil, o conteúdo é sempre o mesmo, mas percebe-se que passou por grande processo de burilamento e ele parece mais literário, menos jornalístico, causando menos impacto.

No documento Raul Pompéia: jornalismo e prosa poética (páginas 170-172)