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RUMOR E SILÊNCIO

No documento Raul Pompéia: jornalismo e prosa poética (páginas 133-139)

3 JORNALISMO E PROSA POÉTICA: ANÁLISE DOS TEXTOS DE A GAZETA DA TARDE

RUMOR E SILÊNCIO

Ouvis, lá abaixo, o rumor da cidade? a grita dos homens, o estridor dos carros, o tropel dos ginetes, o fragor das indústrias?

Ouvis, de outra banda, as vozes da floresta, os pássaros saudando a tarde, o vento despertando as harpas eólicas das frondes? Ouvis esse clamor ingente das ondas que o horizonte nos envia?

Esta é a sinfonia, é a sinfonia da vida. Diz-se então que o silêncio é a morte.

Multiplicai esses rumores.

Agravai o tumulto industrial dos homens na paz, com as perturbações estrepitosas da guerra; reforçai as vozes da floresta e do mar; juntai-lhes a solene toada das catadupas, o pungente mugir dos oceanos lanceados pelo temporal, as explosões elétricas do raio, o medonho troar dos gelos, derrocados pelos primeiros sopros da primavera polar, o garganteio monstruoso dos vulcões inflamados; fazei rugir o coro das catástrofes humanas e os cataclismos geológicos.

Dizei, depois, onde mais intensa é a vida e mais assombrosa, se embaixo, se lá em cima, no zimbório diáfano desse firmamento que a noite vai conquistando agora, na savana imensa onde transitam os rebanhos das estrelas, onde os meteoros vivem, onde os cometas cruzam-se como espadas fantásticas de arcanjos em guerra – neste discreto abismo habitado pelos astros e pelo silêncio sagrado do infinito. (A Gazeta da Tarde. Rio de Janeiro, 21 de janeiro de 1886).

Figura 4: Rumor e Silêncio.

Esse poema foi publicado em A Gazeta da Tarde, em 21 de janeiro de 1886, mas no mesmo número aparecem mais dois poemas do autor “SPES” e “Véritas”, que não constam do

corpus. Na impressão inicial, percebe-se uma série de perguntas dirigidas na segunda pessoal

do plural, a um “vós” interlocutor, questionando os diversos rumores da cidade, da natureza, sucessivamente. A esse rumor o autor denomina como “sinfonia” e o define como “vida”, em contraposição ao silêncio que representa a morte. O oxímoro se apresenta a partir do título deste poema em prosa: Rumor e Silêncio. Na gênese do poema, ele utiliza expressões de rara beleza, “rebanho de estrelas”, “onde os cometas cruzam-se como espadas fantásticas de arcanjos em guerra”; “o medonho troar dos gelos, derrocados pelos primeiros sopros da primavera polar”. O ser anunciação pede que os rumores se multipliquem para preservar a “sinfonia da vida”, mas questiona onde a vida seria intensa, assombrosa, se “em cima “ ou “embaixo”, vida = rumor; morte = silêncio.

O elemento visual está presente em todo o texto, nas descrições que seguem a técnica cinematográfica de exposição seqüencial de imagens. Todavia, aqui também o auditivo tem lugar de destaque, pois a composição fala do “rumor e do silêncio”, signos relacionados contraditoriamente ao ouvido e com a carga semântica mais pesada dentro do texto.

A temática está ligada à inquietação de Pompéia, a busca de uma cosmologia em que o ser de enunciação utiliza elementos externos da realidade para mostrar uma outra realidade metafísica, interior.

A questão da focalização, ou seja, o pessimismo do autor em dialogismo com sua época, identifica a cosmovisão de Pompéia. No entanto, em “Rumor e Silêncio”, ele defende a possibilidade de vida “nesse discreto abismo habitado pelos astros e pelo silêncio sagrado do infinito”. Ou seja, aqui nesta versão jornalística ainda há certa crença espiritual ou metafísica que não aparece mais na versão burilada do livro.

A influência do jornalismo, nesta composição transdisciplinar, pode ser percebida no modelo piramidal (VIVALDI, 1979): introdução do texto, desenvolvimento e culminação final. As canções de Pompéia apresentam, ainda, certo nível narrativo, que é próprio do jornalismo e aqui coexiste com o nível poético. Neste exemplo percebe-se a originalidade do autor que compõe a introdução, que tem a função narrativa, com perguntas e respostas, usando pronomes e

verbos na segunda pessoa do plural, recurso erudito e ao mesmo tempo dinâmico, devido à coexistência da função fático-referencial com a função poética, que neste texto, especificamente, tem uma dimensão persuasiva, ocupando um espaço híbrido não apenas relativo à forma da prosa poética, mas também transdisciplinar, relativo ao jornalismo e à literatura.

Em relação a essa linguagem jornalística, Pompéia, com seu talento literário e espírito de poeta não poderia ocupar na imprensa o papel de um periodista comum, que apenas se ativesse à informação, de acordo com as regras de sua época. Ele produziu textos mais originais, em exercício prático da forma, cujo aprimoramento ele perseguiu, burilando suas as Canções sem

metro a cada publicação, em periódicos diversos e ao longo de sua vida. Neste texto, por

exemplo, ele expõe o reflexo do mundo, traduzidos pela cor, pela luz e pelo ruído que o eu poético canta.

Pompéia manteve sua liberdade expressiva de escritor, com seu instinto periodístico, que exige condições especiais de sensibilidade junto à observação, sabendo ver e sabendo deixar ver, na construção de sua prosa poética com enfoque realista subjetivo e nuances impressionistas. Assim ele se manteve em segundo plano, mantendo certa impessoalidade, conforme o exige a linguagem jornalística, mas exercitando a criação de uma forma inovadora.

O autor tampouco se submeteu às limitações de temas, dando vazão à sua sensibilidade aguçada e ao sexto sentido profissional, expressando a sua cosmovisão e questionando infinitamente, por meio de sua linguagem. Seu objetivo foi o compartilhar das informações que ele detinha, por meio das técnicas de composição: as invariantes, o gênero inovador, sob a forma de prosa poética, a temática ligada à cosmogonia, o estilo, de acordo com o objetivo, a tentativa de expressão do mundo externo, como reflexo de seu mundo interior, em integração metafísica com a realidade.

Remetendo-nos aos traços gerais da teoria visual do impressionismo, proposta por Francastel (1974 apud RIBEIRO, 2001). Podemos perceber vários exemplos neste texto. Primeiramente a questão do espaço e a perspectiva da profundidade. Alonso (1977, p.112

apud RIBEIRO, 2001) diz que o texto verbal impressionista apresenta uma espécie de

abandono da ordem lógica da frase e Ribeiro fez a aplicação e o reconhecimento dessas categorias da teoria visual do impressionismo em O Ateneu. Gandelman (1986, p.1910 apud

RIBEIRO, 2001) acrescenta que o impressionismo constitui a hipóstase do olhar pousado sobre a tela, em nível microscópico e que somente o recuo desse olhar do receptor–leitor é capaz de recriar o olhar do artista que atribui sentido ao que percebe e que se encontrava velado entre as chamadas manchas de impressão. Estes recursos são percebidos também na leitura de as Canções sem metro que além de seu hibridismo no gênero e no modo, apresentam grande influência impressionista e técnicas de criação ligadas às artes visuais, porque o autor constrói um tipo de texto que implica leitura mais participativa para a sua compreensão. A experiência inovadora do poeta Pompéia trouxe grande contribuição à imprensa periódica, à semelhança de Poe, que o influenciou indiretamente por meio de Baudelaire.

Depois, há a questão da análise das situações e da atração pela animação. E, por último, a substituição do objetivo pelo subjetivo. “Dizei, depois, onde mais intensa é a vida e mais assombrosa, se embaixo, se lá em cima, no zimbório diáfano desse firmamento que a noite vai conquistando agora, na savana imensa onde transitam os rebanhos das estrelas, onde os meteoros vivem, onde os cometas cruzam-se como espadas fantásticas de arcanjos em guerra – neste discreto abismo habitado pelos astros e pelo silêncio sagrado do infinito”.

Analisando as canções de Pompéia, podemos perceber a prioridade por certa limitação vocabular, cuja intenção é a ênfase nas antíteses “em cima” X “embaixo” e nos oxímoros constantes, “rumor e silêncio,” na construção dos sintagmas. A língua usada é a erudita e os símbolos estão sempre presentes: vida = rumor; morte = silêncio.

A repetição também faz parte do processo estilístico. Neste primeiro poema podemos mencionar a repetição de verbos, a preferência pela segunda pessoa do plural: ouvis; ouvis; multiplicai; agravai; reforçai; juntai-lhes; fazei; dizei. Ainda a repetição do advérbio: “onde mais intensa é a vida (...); “onde os cometas cruzam-se (...)”.

Percebe-se também eloqüência expressiva que provoca multiplicidade de planos e ressonâncias, por exemplo, o poema em prosa “Rumor e Silêncio” está dividido em três partes em seus sete pequenos parágrafos, o rumor citadino, o rumor da natureza e o “discreto abismo habitado pelos astros e pelo silêncio sagrado do infinito”. Nas duas primeiras partes o rumor se apresenta como símbolo da vida na matéria. No final do texto apresenta-se a vida ideal, vida

iluminada, fatasticamente bela e silenciosamente intensa. A retórica apresentada é concisa, sóbria e de expressão concentrada.

Mas se tomar por ângulo a totalidade das imagens, percebemos que todas foram criadas a partir de diferentes imagens-suporte, ligadas ao rumor e ao silêncio, sobre as quais elementos picturais diversos foram acrescidos. O resultado da reunião destes elementos díspares é a criação de imagens oníricas, cuja leitura se faz no plano simbólico e, de acordo com o texto que as acompanha: “onde os meteoros vivem, onde os cometas cruzam-se como espadas fantásticas de arcanjos em guerra – neste discreto abismo habitado pelos astros e pelo silêncio sagrado do infinito”.

Portanto, o diálogo com o texto torna-se fundamental, pois um confere sentido ao outro. A exemplo dos impressionistas, o uso das construções nominais está sempre presente, “as vozes da floresta e do mar” e o “rumor e silêncio”.

Podemos, assim, observar a originalidade de Pompéia na construção de um novo gênero híbrido – a sua prosa poética. Sua visão completa da realidade parece estar regida pela contraposição de elementos antípodas, de valores antinômicos diversos, das idéias às sensações, do físico ao metafísico. Conseqüentemente, as suas representações artísticas tendem a se resolverem na expressão, por meio de estranhamento e oposições. Podem ser comprovadas as manifestações nas alianças verbais básicas do estilo, em que prevalece o oxímoro, em todas as suas formas, e o mundo do abstrato e do concreto se apresentam em constante polaridade. Esse transitar de seu espírito, que busca a síntese em movimento constante entre a realidade e a fantasia, do abstrato ao concreto, do lírico ao grotesco é uma característica do latino americano. Países em construção influenciam o artista. Além disso, as antítese ou oposições,”vida “ e “morte”, “rumor” e “silêncio”, “guerra” e “paz”, “embaixo” e “em cima”, entre tantas outras, como vimos, emprestam maior relevo às idéias e à seleção vocabular do autor.

Como vimos, Pompéia utilizou em sua linguagem poética, as associações verbais, os temas oníricos, as metáforas e os jogos de palavras, como técnicas para captar e dar forma às imagens poéticas e interiores, desenvolvendo seus textos ligados ao jornalismo e à literatura. Chamo a atenção para o fato de o fato de que neste texto o visual se mescla ao auditivo

hiperbólico, de acordo com o oxímoro: “rumor e silêncio”, nesta relação de contradição dialética em que um não existiria sem o outro.

Nas formas variantes, desenvolveu a sua poética ímpar, rica em símbolos e em imagens, com o ritmo peculiar à sua visão de mundo: “onde os cometas cruzam-se como espadas fantásticas de arcanjos em guerra – neste discreto abismo habitado pelos astros e pelo silêncio sagrado do infinito”.

O periodismo, segundo Vivaldi (1979) é algo muito mais que a técnica, as fórmulas, o trabalho e a habilidade. Constitui também arte e inspiração, assim como conhecimento de mundo e dos homens, por meio da psicologia e da filosofia aliadas a uma cultura sólida como no caso de Pompéia.

No documento Raul Pompéia: jornalismo e prosa poética (páginas 133-139)