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1.5 Temas Cearenses: coronelismo, cangaço e religiosidade

1.5.2 Cangaço

Segundo Teoberto Landim, a palavra cangaço foi etimologicamente formada pela analogia com “canga”, peça de madeira que une dois bois pelo lombo. A comparação era a de

que, se a canga não saía do lombo do boi, o rifle também não saía do ombro do cangaceiro113.

Dentre os autores com quem trabalhamos, nenhum se deteve mais sobre o cangaço do que Djacir de Menezes. A imagem do homem que não se distanciava da arma, que “dormiam de

trabuco à mão,”114 seduziu as aspirações de Djacir de Menezes.

Djacir de Menezes separa dois tipos de cangaceiro, o “clânico ou agrário” e o “político”. O primeiro, dos tempos coloniais, agregados dos fazendeiros, nas “lutas cruentas” pela posse de terra. O segundo, dos tempos republicanos, que tinha sua emergência juntamente com os “coronéis sertanejos, dominando os municípios, influindo nas eleições,

tendo as urnas como motivo central das competições” 115:

As lutas das famílias poderosas exigem a transformação das fazendas em verdadeiros feudos armados. Ao começar a delinear-se melhor a fisionomia de nossa carta política, os municípios, ao tempo do Império, estão em poder de sátrapas municipais. O “coronelismo político” da República, aparece de início, rodeado de



110 Idem, ibidem. p. 96. 111 Idem, ibidem. p. 97. 112 Idem, ibidem. p. 98.

113 LANDIM, Teoberto. Op. cit. p. 172. 114 MENEZES, Djacir de. Op. cit. p. 73. 115 Idem, ibidem. p. 23.

tropas singulares, com vestes de couro e rifles. As rixas que ensangüentam o solo da Província deslocam-se: visam à conquista nas urnas116.

Djacir de Menezes constuiu o cangaceiro como um “desajustado” 117, assim como o

fanatismo era o resultado da relação entre a esquizofrenia etnogênica do sertanejo com o acirramento da seca. O cangaço, para Djacir de Menezes, estava entre a natureza e a sociedade. A primeira, na “etnogenia” especialmente legada pelos índios tapuias, os

“xantodermos bravios”118, que introduziam as fortes características masculinas no sertanejo,

tendo como desdobramentos a tendência para a violência. Por outro lado, com a experiência social do coronelismo político, o sertanejo, bronco por natureza, habituou-se a viver armado. A seca não aparece como última instância que explicava o fenômeno do cangaço, mas como fator que acirrava tendências legadas pela Biologia e pela História.

A leitura naturalizada das causas do cangaço, no entanto mediada pela idéia de etnogenia, igualmente retira a responsabilidade das relações sociais em que o cangaço se produziu. O armamento dado pelos coronéis foi um fator que se relacionou com os determinantes biológicos e que era “o instrumento inconsciente de uma vingança bruta e cega,

a agir indefinida e estupidamente contra ‘qualquer coisa’ má” 119. O cangaço não nasce da

escolha pelo crime, mas como uma ação inconsciente de homens que, dentro do cadinho de suas determinações, emergem sob o áspero véu da violência. Com os conceitos de “inconsciência” e de “latência”, Djacir de Menezes produziu estratégias de naturalização do cangaço, como constituído por homens perdidos na obscuridade de suas mentes, que não compreendem as motivações de seus atos. O forte e violento cangaceiro foi aproximado ao indivíduo “primitivo”, que a razão e a ciência não tocou, e, com isso, era papel das “mentes da civilização” promover a inclusão dos homens que matam pelo hábito de matar. Sem dúvida, esse ser atoleimado fabricado por Menezes era um sonho de qualquer cientista apaixonado pelos conceitos de bárbaro e selvagem, uma criança ainda à espera de quem lhes ensinasse o certo e o errado.

De modo algum, essa é a mesma visão partilhada por Leonardo Mota. Contou ao Folclorista o cel. Raimundo Souto, “chefe político de Trairi”, que havia visto “numa casa de campo do alto sertão”, pelos idos de 1888, em que estava presente o chefe do Estado Henrique D’Ávila, uma cena que “deixou de queixo caído”. Um brinde entre o político e dois 

116 Idem, ibidem. p. 73. 117 Idem, ibidem. p. 20. 118 Idem, ibidem. p.73. 119 Idem, ibidem. p. 11.

cangaceiros que estavam na casa, José Antônio do Fechado e José Tibiba. O político dizia que esperava “daqueles ‘dois valorosos sertanejos’ todo esforço pela vitória do Govêrno numa eleição que se iria ferir proximamente”. E Tibiba respondeu ao chefe de Estado que “não sabia falar, mas tinha uma pontaria segura! O Gôverno podia ficar certo de que a eleição estava mais do que no bolso... O que era preciso era um pouco de ‘erva’ (e esfregou o polegar

no indicador, num gesto expressivo)”.120

Em Mota, os discursos que fabricaram o cangaceiro construíram-no próximos aos mecanismos usados pelas oligarquias municipais nos período de eleição. O cangaceiro era custeado pelo Estado. O fascínio que esta figura exercia no folclorista, então, estava mediado por esses signos do indivíduo que se habituou a matar, mas que age também por interesses e negociações. Para o autor, o folclore colaborava na compreensão do cangaceiro, pois pelas falas sertanejas, podia construir os traços de uma “psicologia coletiva”: “O folclore não pode deixar de abranger em suas pesquisas o estudo do cangaceirismo, estudo este, aliás, que, por sua complexidade, está a reclamar um novo Euclides, não adstrito à crônica exclusiva de uma

campanha singular”121.

Leonardo Mota estava reclamando “um novo Euclides”, que, diferentemente daquele de Os Sertões, fosse capaz de compreender a “complexidade” do cangaço, estabelecendo os elos com a “cultura popular”. Para ele, somente saindo da “crônica”, dos escritos que se detinham a descrever o cotidiano, era possível o entendimento dos estratos singulares que compuseram a psique do cangaceiro. A mira dos cronistas, que percebia a rotina desses sertanejos, para Mota, somente possibilitava entrever sua aparência. A noção de “psicologia coletiva” usada pelo Folclorista traduz a idéia de cultura popular como um fator determinante e, portanto, tida como fixa. Embora a “fala do povo” se molde aos contextos, ao mesmo tempo, percebeu-a como contendo aspectos fixos, que diziam respeito ao lado imemorial da cultura, a um núcleo sólido, no qual se encontravam as justificativas das experiências do cangaço.

A noção de “psicologia coletiva” buscava especialmente responder o porquê da glorificação do cangaceiro entre os cantores populares, em que, Lampião, por exemplo, foi soerguido à posição de herói da inversão, como forma da justiça do pobre contra o rico, dos explorados contra o Governo:



120MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte: poesia e linguagem do sertão nordestino. 3ª Ed. Fortaleza-CE,

Imprensa Universitária do Ceará, 1963. p. 217-8.

Lampião está sendo o inspirador de toda a vasta literatura de cordel. Os cantadores reforçam-lhe os feitos hediondos e êle próprio canta, em côro com os seus sequazes, os versos que o glorificam e que não são da sua autoria, mas traduzem a ironia coletiva ante a impotência dos Governos122.

Entre heróis e bandidos, o cangaço torna-se um tema regular na produção do espaço cearense, um símbolo produzido entre falas na história.