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Com o objetivo de suceder o movimento artístico de 1922, na década de 1930, os primeiros surtos do modernismo apareceram no Ceará. Literatos que insistiam em permanecer no Estado, mesmo sem campo editorial para seus escritos, tornavam suas linhas públicas num dos cadernos do jornal O Povo, querendo se mostrar atualizados com relação aos movimentos vanguardistas de repercussão nacional. Mário Sobreira de Andrade é exemplo da tentativa de imitação das agitações paulistas. Ao assinar seus poemas, retirava seu nome do meio, usando apenas Mário de Andrade e entre parênteses (do Norte), finalização que às vezes esquecia, usufruindo da providencial coincidência com o nome de Mário de Andrade, esse outro, do sul.

brazil cheio de sóis tropicais dos meios-dias, ouça agora a voz da gente do ceará – que tem sua mesma idade

e você ainda não conhece bem...79

No concernente à produção da espacialidade cearense, os discursos não passaram da busca por ornamentos modernistas para a afirmação da temática da seca, como na literatura naturalista. O poema Inverno, de Antônio Garrido, pseudônimo de Demócrito Rocha, a chuva aparece como ordenador do espaço que antes haveria sofrido com a seca. “Chove no sertão”, nas “lagoas de aço do Ceará”, chuva que servia para “lavar o sangue dos caminhos”, para “alvejar os esqueletos / das novilhas que morreram de sede”. Além de branquear ossadas e lavar toda a tragédia, a chuva também serve “para apagar nas caatingas / o rastro de Lampião”, alegoria que quer explicar o cangaço com base nas causas naturais e, mais uma

vez, reforçar a lógica naturalista na qual o banditismo foi tratado como causado pela seca80.

O Ceará continuou para nossos primeiros modernistas o lugar das “ondas de poeiras”, em que a chuva e a água seguem os tempos dos nascimentos e renascimentos da terra “onde o 

78 Idem, ibidem. p. 83.

79 Mário de Andrade (do Norte) apud AZEVEDO, Sânzio de. Modernismo na Poesia Cearense: primeiros

tempos. Fortaleza-CE, Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 1995. p. 37.

80 Antônio Garrido apud AZEVEDO, Sânzio de. Modernismo na Poesia Cearense: primeiros tempos. Fortaleza-

mapa mostra mil milhões de rios/ e riachos - /e só aparece água (quando aparece) / de nove

em nove meses”81; ou mesmo a água levada pela seca seria como a hemorragia para o corpo

do Ceará, “o rio Jaguaribe é uma artéria aberta / por onde escorre / e se perde / o sangue do Ceará”. Água, sangue, “toda a hemoglobina / na sístole dos invernos / vão perder-se no mar” temendo o “aneurisma dos açudes”.

E o pobre e doente – o Ceará – anemiado esquelético pedinte e desnutrido – - a vasta rede capular a queimar-se na soalheira é o gigante com a artéria aberta

resistindo e morrendo resistindo e morrendo resistindo e morrendo

morrendo e resistindo ...82

A seca retoma as reticências que já tinha para os naturalistas, os três pontos que constroem uma tragédia recorrente e permanente ao espaço. “Morrendo e resistindo”, o Ceará continuaria, para esses literatos, em todas as épocas, mas resistindo juntamente com a natureza que dá a chuva e revitaliza as células do espaço.

As células mirradas do Ceará

-quando o Céu lhes dá a injeção de soro dos aguaceiros –

as células mirradas do Ceará intumescem o protoplasma (com os seus capulhos de algodão) e nucleiam-se de verde

- é a cromatina dos roçados do sertão ...83

As imagens de decadência da seca produzidas sobre o Norte são retomadas nas intermitências que deixam florescer o algodão ou o ressecam. O Ceará seria, notadamente para esses autores, resultado de sua natureza que faz sangrar aquilo que nele se planta. O apego estético dessas primeiras letras do modernismo cearense, a atenção dada aos jogos de linguagem, as brincadeiras com as metáforas, parecem ignorar a dimensão política da poesia, nunca perdida de vista nem pelos naturalistas. O movimento modernista paulista, que se

produziu atualizando e negando o naturalismo84, quando foi retomado no Ceará,

convencionou falar da seca por meio da chuva, enuncia a natureza cearense com matizes 

81 Mário de Andrade (do Norte) apud AZEVEDO, Sânzio de. Modernismo na Poesia Cearense: primeiros

tempos. Fortaleza-CE, Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 1995. p. 37.

82 Paulo Sarasate apud AZEVEDO, Sânzio de. Modernismo na Poesia Cearense: primeiros tempos. Fortaleza-

CE, Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 1995. p. 56-7.

83 Idem, ibidem.

84 Sobre a desnaturalização do olhar no Movimento Modernista, ver: ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz. O

Engenho Anti-Moderno: a invenção do Nordeste e outras artes. Campinas-SP, Unicamp, Tese (Doutorado) em História. 1993. p. 35.

fundados em um olhar mais natural do que a dos próprios naturalistas. Se Rodolfo Teófilo quis falar da seca, para chamar atenção do Governo Federal para investimentos que mitigassem o fenômeno, os modernistas pensaram a chuva como única saída para a seca, sendo assim irrevogavelmente natural tanto a causa da tragédia cearense como a solução; o que lava a terra da desventura, o que alimenta as “células mirradas” do solo seco é a chuva. Pouco adiantam os açudes que rompem como aneurismas, a “injeção de soro” que revitaliza o solo, somente poderia vir dos céus, da mesma “espada de um Deus que te [do Ceará] feriu / a carótida”85.

Rachel de Queiroz, nascida em 1910, tinha quatro anos na seca de 1915, acontecimento do qual tratou em seu primeiro romance, O Quinze. No momento em que escreveu o livro, ainda participava dos movimentos modernistas, no Ceará, com o pseudônimo de Rita de Queluz. Assim como os modernistas cearenses, a autora ainda produz

o espaço centrando sua narrativa na retirada do sertanejo fugindo do estio86. Sem dúvida, as

páginas de O Quinze foram as mais famosas, ao instituir a imagem de Ceará na literatura moderna. Como a própria autora afirmou, na época, “tinha fixação pela seca”. O romance se inspira no discurso naturalista, no entanto, repetindo a crueza com que as imagens sobre a

seca no Ceará foram produzidas por Rodolfo Teófilo87.

Depois de sua saída do Ceará, começou a pensar uma literatura em que a questão da seca não apagasse o homem. Desse período, é famoso seu artigo sobre o livro Aves de Arribação (1919), de Antônio Sales, em que enaltece o romance por não tratar da temática da seca: “É um livro que, passado todo no interior do Ceará, não diz uma palavra sobre seca! As paisagens que descreve são sempre as verdades campinas, os riachos correndo, os tabuleiros

em flor. Nada do Ceará esquelético e faminto, o Ceará das secas e dos retirantes” 88. Para a

autora, Antônio Sales era, no período, sua maior referência, especialmente na produção de

João Miguel89(1932), não fala de seca, tratando do sertanejo que sofre com as mudanças dos

códigos de leis, antes discricionários, e, no momento, sob a égide do delegado. Nos livros posteriores, a imagem da seca foi costurada com as tomadas do cangaço, ou do fanático, o que nos leva a crer da proximidade que a autora quis para os seus livros com a obra de Djacir de Menezes, ao falar sobre o sertão. Em Rachel de Queiroz, o espaço do sertão foi traçado nas 

85 Idem, ibidem, p. 57.

86 QUEIROZ, Rachel. O Quinze. 47ª Ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1991.

87 Idem. Entrevista. “As três Raquéis”. In. Revista Caderno de Literatura Brasileira, n. 4, setembro de 1997. p.

22.

88 Idem. “Orelha”. In: SALES, Antônio. Aves de Arribação. Fortaleza-CE: Editora Livro Técnico, 2006. 89 Idem. João Miguel. São Paulo, Siciliano, 1992.

dualidades entre a saudade e a tradição e a denúncia, figurando seus escritos entre aquilo que deve ser conservado e o que deve ser mudado. Sua conhecida escrita dolorosa fala da dor de deixar, de desprender-se do espaço. Embora tenha participado do Partido Comunista, sua literatura foi apoiada numa óptica oligárquica; uma defesa das elites do Estado não é velada

em sua obra. 90

Da mesma geração de Queiroz, nascido em 1910, na cidade de Iguatu, Fran Martins elegeu Juazeiro do Norte como espaço para fabricar os símbolos que constituem o espaço cearense. Na literatura, o folclorista Leonardo Mota escolheu Fran Martins como seu continuador, o que deixa claro ao prefaciar o primeiro livro de Martins, Manipueira. A defesa de Leonardo Mota sobre o novo literato, que na época contava com 21 anos, foi a de que, assim como o folclorista, “foi ao sertão, viu, observou e escreveu”, o que “documenta a

honestidade e benemerência do esforço, concretizado nestas primícias coroáveis” 91. Como já

foi dito, Mota defendia a posição de que as imagens detratoras do sertão cearense foram elaboradas por pessoas que imaginaram o sertão dos gabinetes, sem conhecer o espaço, nem muito menos o sertanejo.

O livro de Fran Martins, como o autor anunciou, teve o “intuito de demonstrar que, no Ceará, além do ‘ciclo da seca’, existem várias fontes literárias dignas de exploração”. Martins dialoga com Mota, à medida que tenta desvirtuar a imagem da seca como central nas narrativas naturalistas, assim como a do homem lido unicamente como fruto de estio. Em seus livros, demonstrou peculiar interesse pela figura do romeiro que ia até Juazeiro do Norte para obter as benção de Pe. Cícero. O título do livro de contos, Manipueira, foi explicado pelo autor como sendo uma analogia do que seria esse tipo cearense. “Mas, afinal, o que vem a ser manipueira?” O autor explicou:

Os habitantes do sertão dão esse nome a um líquido que escorre da mandioca na preparação da farinha.

É alva, parece saborosa. Todavia, os que a vêem (sic), pela primeira vez, fazem dela um conceito errôneo, pois a ‘manipueira’ não corresponde, em realidade, à impressão deliciosa que no começo suscita. Ingerindo, verifica-se se por demais perigosa, envenenando ou embriagando completamente92.

Foi como o líquido que sai da mandioca que Martins pensou o “romeiro juazeirense”. Como a manipueira, “o romeiro, à primeira vista, engana, causando até piedade”; no entanto, 

90ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz. O Engenho Anti-Moderno: a invenção do Nordeste e outras artes.

Campinas-SP, Unicamp, Tese de Doutorado em História. 1993. p. 141-2.

91 MARTINS, Fran. Manipueira: contos do Juazeiro do Padre Cícero. 2ª ed. Fortaleza-CE, UFC, Casa José de

Alencar, 1999. p. IV-V.

“penetrando-lhe” é que, para Martins, “descobre-se que o aspecto pacífico e mendigo encerra uma alma insidiosa, cheia de crenças e superstições, capaz de matar pelo patrão que paga uma ninharia, ou morrer por uma sílaba dubidativa saída, inadvertidamente, dos lábios de Pe.

Cícero”93. Fran Martins, a fim de negar a fala que retratou o sertanejo como miserável e

indolente, retoma o discurso de Mota, que separa aparência e essência do sertanejo.

Fran Martins agencia para a literatura os mesmos temas que fizeram o folclore do sertão. Embora não centrando sua narrativa na seca, seus cenários foram os escaldantes, seus sertanejos de um devotamento que beira o fanatismo, especialmente em relação a Pe. Cícero. Ainda o Ceará seria o espaço discricionário, de um sertanejo violento, aos mandos desse coronel, disposto o tudo para manter sua honra. Mesmo assim, em Manipueira, percebeu esse espaço pelo saudosismo que foi mostrado logo no prólogo, de título “Para que modificar?”

E estas páginas traduzem a alma rústica daquele povo, quando ele, esquecido, julgava ter tudo na figura do Padrinho – que importa a transcorrência de alguns anos?

Para que modificar? Para que modificar? 94

Pergunta o Romancista: para que mudar aquelas almas; para que interferir? Os temas da necessidade se misturam com os da conservação da cultura desses homens “bárbaros”, entre a violência e a devoção a Padre Cícero.