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1.5 Temas Cearenses: coronelismo, cangaço e religiosidade

1.5.1 Coronelismo

Perto de nós aqui no Juàzeiro, conheço um camarada que tem fama de “preparado” e se mete a empolar a conversa. Quando os Intendentes passaram a se chamar Prefeitos, um belo dia apareceu-lhe um eleitor e perguntou-lhe:

– Coronéu, como é que os Intendente se chama agora? – “Perfeito”, é “Perfeito”.

– Vamincê continua sendo o “Perfeito”? – “Prefeitamente” ...98

O coronelismo emerge socialmente em concomitância com a perda do poder quase dos proprietários de terra no Ceará. O espaço dos “patrões”, como chama Rodolfo Teófilo, especialmente no fim do período imperial, foi invadido pelos interesses de centralização do poder do Estado nacional. O coronelismo, no Ceará, surgiu juntamente com a negociação dos domínios das oligarquias pecuaristas e algodoeiras e os novos interesses de unificação do País, que datam do fim do século XIX. O rarefeito domínio do Estado nos diversos rincões do País produziram uma relação de reciprocidade entre os domínios locais e a política nacional, especialmente interessada no controle dos sufrágios. Com as negociatas eleitoreiras, as elites estabelecidas se mantiveram autônomas em relação ao seu mando, na mesma proporção em que marcavam seu apoio nas eleições. O conhecido voto de cabestro foi marca mais patente

das relações entre coronéis e os governos estaduais e federais99.

No Ceará, o Estado do “mais encarniçado coronelismo” 100, segundo Oliveira, o

domínio dos donos das fazendas foi um dos temas produzidos nos escritos sobre o espaço. O Ceará, quando inserido por seus literatos no Nordeste, foi fabricado a partir de uma ambigüidade interessante: ao mesmo tempo que reconstrói o espaço cearense com imagens e falas que asseveram a noção de necessidade, de interferência estatal, de miséria, igualmente produz o espaço das tradições e do saudosismo do sertão que estava com suas sociabilidades desfiguradas com a ventilação da Modernidade e a ação de um Estado negligente em relação a uma identidade que teria de ser respeitada. As páginas de Ceará foram compostas entre a necessidade e uma proposta reacionária de preservação. Suas extensões políticas eram a ratificação das imagens que justificavam a emissão de verbas e a produção do fenômeno conhecido como “indústria da seca”, em que tais verbas eram usadas para o sustento das elites 

98 MOTA, Leonardo.. Sertão Alegre: poesia e linguagem do sertão nordestino. 2ª Ed. Fortaleza-CE, Imprensa

Universitária do Ceará, 1965. p. 32.

99 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o Regime Representativo no Brasil. 4ª ed.

São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1978. p. 23-57.

100 OLIVEIRA, Francisco de. Elegia para uma re(li)gião: SUDENE, Nordeste. Planejamento e conflitos de

do Estado, sem negar as sociabilidades que sustentam a dominação dessa elite, sem lhes tirar o direito consuetudinário à terra, sem amolecer as relações entre o coronel e aqueles que lhe dariam suporte para seu mando. Em suma, os autores regionalistas defenderam a noção de que o Estado sustentasse sem interferir nas “sociabilidades regionalistas”, no mando do coronel.

A elite cearense, além de comporem as intelectualidades locais e centrarem em si os interesses econômicos, em obras como A Fome, também foram instituídas como tema, o que foi retomado pelo movimento do Regionalismo Tradicionalista, transformando as elites em uma convenção. No Ceará dos naturalistas, Rodolfo Teófilo foi um dos que mais enunciaram o empobrecimento de tais elites pela seca, falando da ruptura provocada pela estiagem. Depois de 31 anos de pastos para o gado, já que a última seca acontecera em 1845, o estio de 1877 aparece em seu registro como marco da fome, do aparecimento de uma multidão de flagelados, da morte do gado, das tentativas desesperadas e malfadadas para obtenção de água. Sobre os eventos, a visão do intelectual recai sobre o herói de sua narrativa, Manuel de Freitas, filho de uma estirpe tradicional do Ceará, que teve “seus rebanhos dizimados pela fome”.

Os pródomos de uma calamidade terribilíssima se acentuavam cada vez mais. A energia do fazendeiro posta em campo em favor de sua fortuna, que se aniquilava. As fontes não vertiam uma gota d’água! Os gados mortos urravam à beira dos bebedoiros com um sentimento que comovia! Era necessário rasgar a terra e arrancar água das suas entranhas101.

O narrador de A Fome elege acompanhar a epopéia de Manuel de Freitas, seguir os passos da escrita juntos com os do fazendeiro. Escolhe como exemplo de seu discurso o homem com pouco mais de cinqüenta anos, meditativo, que “sentado em cima de um toro de madeira”, observava o cortejo de esfomeados “com os tons de tristeza, carregando-se até aos matizes na nostalgia, [que] assentavam mal naquela figura máscula”. Narrador e fazendeiro estavam imbricados a fim de descrever o que teria sido 1877. Teófilo quis ver o espaço através do olhar do fazendeiro, seu ícone heróico do devotamento à terra. Com a continuação do estio, Manuel de Freitas não teve privilégios diante da multidão faminta que tinha de caminhar rumo ao litoral, à cidade. A elite cearense apareceu pelo nivelamento entre as classes sociais do fazendeiro e da multidão de famintos. Os usos estratégicos das imagens da seca ainda não tinham ganhado as posteriores proporções que tiveram na no século XX, com o desvio das remessas de verba, no entanto, esse discurso elaborou uma idéia de necessidade 

que não pertencia somente à população, mas também às elites, constituindo-as como igualmente vítimas do estio.

Com Rachel de Queiroz, as imagens da seca, como um evento eminentemente natural, permaneceram, assim como uma noção de uma elite que igualmente seria vítima da seca, obrigada a abandonar suas terras. Embora Rachel de Queiroz pretendesse denunciar os privilégios no acesso a passagens para ir para Fortaleza distribuídas entre os donos das fazendas e suas famílias, enquanto a multidão precisaria enfrentar a viagem a pé, a falência das elites por causa da seca tinha outra conseqüência: significava o momento em que os pobres estavam entregues ao seu destino, sem o apadrinhamento e a proteção de seus patrões, dos coronéis. As elites, então, apareciam como arrimo, que era destituída de sua condição de

protetores dos flagelados graças ao empobrecimento causado pela seca102.

O Quinze foi um dos emblemas de como o Regionalismo Tradicionalista fez uso das imagens das elites na literatura. Na seca, a mazela do sertanejo era primeiramente a falta de água, em seguida, em virtude do empobrecimento, a perda da proteção dos coronéis. Com isso, a utopia dos regionalistas do sertão era a de que coronel pudesse manter seu mando sem empobrecimento, assim como o sertanejo pudesse continuar submisso e protegido ante o potentado. As imagens da seca e das elites foram constituídas na contradição entre denúncia e conservação. Ao que parece, a literatura sobre o sertão assumiu a denúncia dos privilégios que possuem as elites, mas, ao mesmo tempo, seus discursos esvaziam a acusação, transformando

o coronel num protetor dos sertanejos.103

As reações de banditismo e cangaço estavam intimamente ligadas tanto à seca como ao empobrecimento dos coronéis, para Djacir de Menezes. Depois dos bandos formados, esses coronéis perderam o controle de suas antigas tropas. Para o Sociólogo, a psicologia do macho do sertanejo, que remete à violência latente de seus atos, foi bem aproveitada pelos coronéis, ao construírem verdadeiros exércitos vestidos de couro, para defender seus “feudos”. A figura do jagunço, em boa medida, representou o momento em que o homem violento do sertão ganhou armas e aprendeu o manejo do trabuco. Juntamente com a seca, para Menezes, quando os coronéis perderam o controle dos jagunços, a “patologia” do

cangaço emergiu.104



102 QUEIROZ, Rachel. O Quinze. 47ª Ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1991. p. 30 .

103 CORDEIRO, Ivone. Op. cit. p. 132.; LANDIM, Teoberto. Seca: estação do inferno. Fortaleza-CE: Casa José

de Alencar, 1992.

Para Leonardo Mota e Fran Martins, o coronelismo não era um fenômeno homogêneo. O Folclorista, inclusive, narrou as disputas entre as famílias dos sertões, marcando a noção

das elites cearenses como fragmentadas105. Para Fran Martins, ainda havia dois tipos de

coronel: um, que se constituiu com base nas relações com a terra e com os homens cearenses, cujo mando foi a marca das tradições que compõem esse espaço, e outro, o coronel burguês, enriquecido pelo comércio. Sobre essas duas imagens, Martins pintou o primeiro como “generoso”, que, se manda matar alguém, era porque fazia parte do quadro dos costumes, enquanto o segundo, o burguês, estava vinculado ao estupro das “moças pobres”, das quais se

aproveitavam em troca de comida.106

Com exceção dos livros de Fran Martins, em todos os outros, o coronelismo foi fabricado em relação à crítica do roubo das verbas destinadas ao combate à seca e , ao mesmo tempo, como monumento da tradição cearense. O coronel era o amigo, o monarca bondoso, representante de uma autêntica identidade cearense, mesmo quando os discursos criticavam a roubalheira da elite, os seus privilégios em relação ao dinheiro público. Como último exemplo dessa regularidade, citamos Eduardo Campos, escritor regionalista, que em seu livro O Parceiro Só, escrevia sobre as “mazelas” surgidas juntamente com o aparecimento da IFOCS e que eram “nefastas à região”. Fala de um “coronelismo de empreiteiros fantasmas, ganhando açudes que simplesmente não existiram e estradas que nada mais eram do que

picadas apressadamente abertas no mato”.107 No mais das páginas, os órgãos governamentais

aparecem, em palavras elogiosas, salientando que estes “a cada estiagem mais dolorosa”

agiriam no “o socorro às vítimas”.108 O referido paradoxo no tratamento do coronel fica

patente, especialmente ao falar do “Poder Legislativo”, no Ceará, este que, inclusive, havia

sido pouco estudado e discutido por nós, não obstante seu desempenho vinculado principalmente aos nossos anseios de efetivação do trato das preocupações partidárias, expressivas da própria problemática comunitária, mesmo quando as decisões parecem correr mais ao sabor de interesses personalísticos, individuais, do que pelos de inspiração grupal109.

O paradoxo entre denunciar e salvaguardar os interesses personalísticos diante das obras contra as secas é ilustrativo de como esses autores engolem as críticas das roubalheiras 

105 MOTA, Leonardo. Sertão Alegre: poesia e linguagem do sertão nordestino. 2ª Ed. Fortaleza-CE, Imprensa

Universitária do Ceará, 1965. p. 28

106 MARTINS, Fran. Op. cit. p.12.

107CAMPOS, Eduardo. O Parceiro Só: estudos do Ceará e do Nordeste. Fortaleza – CE, UFC, Casa José de

Alencar, 2000. p. 16.

108 Idem, ibidem. p. 29. 109 Idem, ibidem. p. 95.

da seca pelas elites e, ao mesmo tempo, elas aparecem como preocupadas com a “problemática comunitária”. O coronel era aquele que vinha nos lembrar ainda de “nossa

vocação agrária”, da terra cujo dono se estabeleceu pelo “grito e posse”. 110 Segundo Campos,

não se poderia ter idéia clara dos membros do Legislativo cearense, descendentes dos posseiros, sem ter a “compreensão da verdadeira identidade parental”, na qual “ o fazendeiro que se tornou rico e dono de poder”, “entidade de mando no topo da hierarquia hinterlândica,

ancorada na caatinga enfornalhada, onde praticamente se enfeuda”.111 O patriarca cearense,

assim como os participantes de sua estirpe que ocupam as cadeiras do Legislativo, era aquele que estava sempre “disposto a vender caro a sua vida e a acudir a quem se valesse da sua

participação”.112