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1.5 Temas Cearenses: coronelismo, cangaço e religiosidade

1.5.3 Religiosidade

Romeiros, místicos, santos, fanáticos. O espaço cearense foi povoado com páginas que escreveram sobre estes homens. Para Leonardo Mota, a poesia popular, inclusive, era “reflexo do pensar e sentimentos coletivos” e, portanto, “não poderia escapar os temas ou idéias de

religiosidade, tão arraigados na alma de nossa gente”123. Ou mesmo nas palavras de Djacir de

Menezes: “O fanático revela camadas da população de onde provém. Vibra sincrônico com ela. Há correspondência perfeita entre o beato e o bando, que o ouve. As correntes, que se

formam obedecem a determinantes diversos” 124. A religiosidade como tendo raízes na “alma”

do sertanejo, ou como uma vibração sincrônica que desvela a “população” de onde vem, aparece de forma recorrente ao designar o espaço cearense, tanto a Sociologia quanto o Folclore e na Literatura.

Assim como o cangaço, a religiosidade cearense foi vista, por Menezes e Mota, como um aspecto que lhes exercia fascínio. Como já se deve ter percebido, o interesse dessa dupla definiu, em grande medida, os temas que se tornaram regulares para o Ceará. O espaço dos indivíduos tementes a Deus foi produzido nas mais diversas nuanças, desde as rezas de Dona

Inácia para que chovesse no dia de São José, em O Quinze125, até “as manifestações de

delírios místicos”, descritas em O Outro Nordeste, que eram “fatos correntes em populações

primitivas” 126.

Para Djacir de Menezes, o fanático era a manifestação mais fraca da etnogenia legada pelos tapuias aos “celerados” cearenses. O “rosário” era o outro lado do “trabuco”, a face dos medrosos, dos que não tinham coragem de seguir os cangaceiros e, por isso, iam marchando junto com as romarias. Cangaço e fanatismo seriam a ambigüidade da identidade cearense, a 

122 Idem. Sertão Alegre: poesia e linguagem do sertão nordestino. 2ª Ed. Fortaleza-CE, Imprensa Universitária

do Ceará, 1965. p. 54.

123 MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte: poesia e linguagem do sertão nordestino. 3ª Ed. Fortaleza-CE,

Imprensa Universitária do Ceará, 1963. p. 107.

124 MENEZES, Djacir. Op. cit. p. 22.

125 QUEIROZ, Rachel. O Quinze. 47ª Ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1991. p. 32. 126 MENEZES, Djacir. Op. cit. p. 21.

esquizofrenia sertaneja, as duas feições que emergiram na relação entre o caboclo, o coronelismo e a seca.

Dentre os fanáticos, um agente social foi posto em lugar de destaque nos discursos, na

boca dos “cantadores se especializam na discussão e comento da doutrina católica” 127: Padre

Cícero. Em 1890, numa igreja em Juazeiro do Norte, no Ceará, a fervorosa Maria do Araújo foi receber a comunhão das mãos do Padre e, quando a hóstia tocou os seus lábios, “milagrosamente”, transformou-se em sangue. A história espalhou-se como um rastilho de pólvora pelos sertões, alimentando também o fascínio dos “estudiosos da civilização”, interessados nas idiossincrasias do espaço cearense. Padre Cícero tornou-se personagem dos escritos da Sociologia em Djacir de Menezes, do Folclore de Leonardo Mota e da Literatura de Fran Martins, autores que elaboraram diferentes versões sobre quem foi o Padre e sua influência entre os sertanejos. Intelectuais que estabeleciam 1914 como um marco que explicaria seu fascinio, quando um exército de sertanejos, sob a benção de Pe. Cícero, saíu numa campanha de Juazeiro do Norte para Fortaleza a fim de destituir o então Governador Franco Rabelo e dar ao Padre o domínio do Estado, acontecimento conhecido na historiografia cearense como “Sedição de Juazeiro”, em que Juazeiro do Norte se tornou capital do Ceará por um dia.

Para Leonardo Mota, Juazeiro do Norte tornou-se, desde o Pe. Cícero, o centro religioso dos sertões. “A lendária cidade de Pe. Cícero Romão Batista” e “da qual o cantador João Mendes de Oliveira disse que era o ‘nosso Jerusalém’”, espaço no Ceará de onde se retiraria “muita coisa digna para ser vista e apreciada por quem se interessa pelos estudos do

assunto popular” 128. Nos seus “sertões alegres”, o Folclorista interessou-se pelos festejos

nesse lugar em que a miserabilidade sertaneja pareceu transmutar-se em fausto. Na cidade dos romeiros, “ninguém ignora que a população (...) é, em grande parte, adventícia”. “As levas de romeiros sucedem diàriamente” sendo “anunciadas as respectivas chegadas pelo espoucar dos foguetes”. Este espaço nos sertões do Ceará era um lugar em que o Nordeste se encontrava, vindo nos paus-de-araras, especialmente de Alagoas. A imagem de pobreza do sertanejo não lhe parece condizente ao pipocar dos fogos de artifício, pois “a pirotecnia em Juazeiro era



127MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte: poesia e linguagem do sertão nordestino. 3ª Ed. Fortaleza-CE,

Imprensa Universitária do Ceará, 1963. p. 107.

128Idem. Sertão Alegre: poesia e linguagem do sertão nordestino. 2ª Ed. Fortaleza-CE, Imprensa Universitária do

tanta”, que, segundo o Folclorista, “se fôsse multados, como em Fortaleza, os que soltam

foguetes, o município pagaria em pouco tempo, a divida externa do Estado...”129

Em Manipueira, Fran Martins descreve o homem que “ficava, todos os dias, à porta do Padre Cícero” com “olhos pequeninos, volvidos sempre para o chão, e murmurando, lentamente, as ave-marias e padre-nossos do longo e sebento rosário de contas de coco que lhe pendia das mãos calosas e imundas”:

Algumas pessoas sentiam-se, no íntimo condoídas, ao vê-lo, roto e esquelético, implorando ao sacerdote uma esmolinha “pelo amor de Deus”. João Luis confundia- se com a multidão prosternada diante da residência do Patriarca, pois os outros também estampavam no rosto o mesmo ar de quem espera terminar os seus dias cristãmente, sem ligar importância aos acasos da sorte nem às exigências do destino130.

Em Manipueira, João Luís era um dos romeiros que montavam vigilância na entrada da casa de Pe. Cícero, e foi contratado pelo coronel Zeferino para fazer um “serviço”. “Acabada a novena”, continuou ajoelhado, “era um velho costume, nos dias de fazer um

‘servicinho’ ... Um terço por alma daquele que vai morrer” 131. Com as preces finadas, foi à

procura de uma “faca enferrujada”, que pôs na cintura. “A noite era do escuro”, o homem de aparencia miserável transvestia-se no que ninguém poderia imaginar, os lados escuros do sertanejo, revelados somente às escondidas. Escolhia a noite para o “trato”, justamente para que a vítima não o reconhecesse e, assim, não repetir o que acontecera quando foi matar um tal Zeca Lopes, “que até a última hora lhe pediu, pelo amor de Deus, não fizesse aquilo com um pobre pai de seis filhinhos”. As páginas que estavam acostumadas a conhecer os homens nos dias abrasadores de sol começaram com Fran Martins a ser marcadas com a noite, com o que se escondem dos olhos comuns, na aparente miserabilidade que instiga pena.

O romeiro assassino não conhecia bem sua vítima, Pedro Vicente, o padeiro, e não gostava de matar desconhecido, que pode dar dois trabalhos: o de tirar a vida da pessoa errada e ter de trabalhar ainda uma segunda noite. “Só transigira por se tratar do coronel”, não poderia faltar com aquele que “dava-lhe de preferência todos os ganhos”. Montou uma emboscada, estava à espera da vítima. Como tinha o sono leve, resolveu tirar um cochilo, “enquanto se aproximava a hora de passar a vítima”. Chamou por Pedro Vicente, para ter certeza que era o homem certo que chegara. Quando o homem perguntou quem era, “o



129 Idem, ibidem. p. 29.

130 MARTINS, Fran. Op. cit. p. 23. 131 Idem, ibidem. p. 26.

romeiro respondeu com uma facada que atravessou lado o lado, o largo peito do padeiro”132. Depois do “serviço pronto”, “reencetou, com satisfação, o sono beatifico principiado na ‘espera’”. Na manhã seguinte, sem vestígio de sangue, estava à “porta de Pe. Cícero”. Enquanto se mantinha de joelhos, a rede com o corpo de Pedro Vicente passou para o enterro. “O romeiro não se moveu do lugar, continuando a merecer olhares de piedade e esmolas por parte da multidão que afluía para ver o corpo do finado”. Naquele dia, rezou mais um terço, para a “alma da mulher de Pedro Vicente, caso ela falecesse ao saber do assassinato

misterioso do marido”133.

O nome do conto foi o que deu título ao livro, Manipueira. Como Leonardo Mota, Fran Martins usou da ironia para distinguir aparência de essência. Sob o capuz miserável do sertanejo, um homem complexo em relações e formas de pensamento se esconde, uma psicologia rica e cheia de contradições, quase incompreensível ao indivíduo da “civilização”. Diferentemente da repetida formula da “epopéia da retirada”, tão iterada pelos escritores naturalistas, assim como em O Quinze, de Rachel de Queiroz, Fran Martins não usou da seca para pensar o aparecimento do fanático. A religiosidade do sertanejo dizia respeito, como nas palavras de Leonardo Mota, a uma “psicologia coletiva”.

Esse sertão que fascinou Mota pela alegria, e Martins pela devoção, foi o mesmo que delumbrou Menezes pela loucura. Para Menezes, Pe. Cícero de Juazeiro foi um homem que “oscilou nas fronteiras da anormalidade sem acentuar-se nitidamente no sentido agudo das paranóias religiosas, como os doentes, que repontam no seio das populações fanatizadas”. O Pe. Cícero de Menezes não era louco, afinal, “as tendências místicas, que manifestam no Seminário de Fortaleza (...) não se pronunciam em psicoses, que definem dentro do quadro clínico dos delírios místicos”. Não se poderia dizer o mesmo da população sertaneja, já que “o espírito supersticioso das massas rurais começa a modelá-lo; e sua psicologia de sertanejo, criado no mesmo ambiente e dos mesmos troncos das mesmas gentes que povoam o Cariri,

reflete a própria mentalidade matuta” 134. Para Djacir de Menezes, Pe. Cícero foi um ícone

feito pelo sertanejo e pela personalidade que reconhecia como anormal. Sobre o milagre da Beata Maria do Araújo, escreveu que:

A psicologia mórbida inclui no seu quadro clínico as manifestações milagrosas, e suas vítimas se enquadram nos domínios da patologia mental. Nas populações incultas, verificam-se, fàcilmente, alterações cenestésicas de licantropias, a loucura 

132 Idem, ibidem. p. 27. 133 Idem, ibidem. p. 28.

pela crença em bruxedos, as psicopatias que Wahl chamou de delírios arcaicos,cujas manifestações os estudiosos surpreendem em grupos sociais mais afastados do globo135.

O milagre se tornou em Menezes “alterações cenestésicas (sic) de licantropia”, ou mesmo “delírios arcaicos” das populações incultas do Ceará. O fanatismo foi retomado como signo do delírio cearense, da patologia dos homens. Alegria, devoção e loucura, faces conexas dos olhares que produziram a religiosidade como símbolo cearense e, ao mesmo tempo, expressão das ambiguidades despontam as identidades.

Nada do eterno e inquestionável, nada do sólido concreto das palavras, mas a balbúrdia que produzia um tema sobre o espaço. Emblemas contraditórios, palavras devastadas nas aporias, entre a detração e o fascínio, os símbolos de Ceará se tornam humanos e temporais, deixam de ser naturais, para se tornarem históricos. Tanto as falas que produzem o cangaceiro como herói, ou como bandido; o fanático como inocente ou insano; a seca como marca do povo cearense em seu ascetismo e na sua sabedoria, ou a que se refere ao indivíduo desmilingüido pela fome; estratégias que instituíram uma regularidade de símbolos, de objetos, inventando a identidade cearense. Nas décadas de 1950 e 1970, estas temáticas serão retomadas como matérias de expressão dos discursos que produziam a crise dos símbolos cearenses, entre as quais estará a alegoria produzida por José Alcides Pinto, o que será tratado no próximo capítulo.





SEGUNDO CAPÍTULO: Anoitece o Sertão: José Alcides Pinto e a crise

dos símbolos do Ceará