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Oh! Meu mar sempre desejado e nunca encontrado!

Há uma fonte que me espera para nela eu cantar um hino à solidão. Há uma mulher que me espera para juntos provarmos a inocência de Deus. Meu mar é feito de angústias, de esperanças sem lembranças.

Oh! Meu silêncio!

O poema depura os temas em formação de sua poética, como, por exemplo, o mar, a solidão, a mulher. Pelo ano da publicação deste poema, sabemos que o poeta estava preparando o seu primeiro livro, O Tempo da Solidão.

A metáfora do mar é subjetiva. O “meu mar”, como diz o eu lírico, representa a busca, a procura, condensando a sua angústia, o seu pessimismo. O mar, a fonte e a mulher são os elementos que o poeta aspira. Pelo teor sugestivo das imagens e dos símbolos, evidencia-se principalmente, o aspecto simbolista do poema.

Por outro lado, a textura de seus versos é prosaica e assim parece que atende melhor ao fluxo de seu pensamento. Esse é o seu estilo. Seus versos sem rima, sem métrica alguma, característica de toda a sua poesia.

A “Coluna de B.W.”, como depois passaria a se intitular, no dia 23 de março de 1962, traz uma nota resumida no singelo título “Walflan, o poeta”. Leiamos o que o cronista escreveu:

Walflan de Queiroz é um poeta, no modo de viver e nos versos que escreve. Enquanto o mundo se preocupa com a conferência de Genebra e o Brasil anda acuado com a esfinge Jânio e as incertezas do parlamentarismo, o poeta Walflan vai olhar o mar e depois volta até o centro da cidade, entra no “Cisne”, pede uma cerveja e vai conversando com quem chega sobre poetas norte americanos, de preferência Allan Poe e Hart Crane. [...]

As palavras de Berilo mostram a existência de um poeta integrado ao seu próprio mundo. Walflan de Queiroz é um contemplativo. Seus olhos miram o mar. Seus olhos miram o silêncio, o vazio. Do mar para a confeitaria “Cisne”, antigo bar de boêmios, que não existe mais, ao fim da rua João Pessoa. Uma nova imagem surge dele, bebendo uma cerveja. Na “Cisne”, escreveu Protásio Melo, em tom de galhofa, “se tramavam coisas e até golpes políticos”. Era onde se reunia a “nata da boemia natalense”, escreveu Odilon de Amorim Garcia. Nesse tempo, havia também a sorveteria “Cruzeiro”, o “Acácia Bar” e o “Botijinha”, um bar frequentado por toda sorte de gente.

Não é difícil imaginar que Walflan andava por esses ambientes. Seja lá como for, está bem resumido na frase: “É um poeta, no modo de viver e nos versos que escreve”. Um dado histórico da trama política internacional, como a conferência de Genebra, ou mesmo

até a situação interna no Brasil, presidido por Jânio Quadros, as “incertezas do parlamentarismo”, como forma de governo, enfim nada disso lhe interessa. Temos, portanto, a impressão de alguém que vive em estado permanente de evasão, indiferente ao noticiário da sua época.

No dia 5 de abril de 1962, a “Coluna de B.W.” pede ao poeta Walflan para escrever a respeito do tema “As coisas boas da vida”. Eis, então, a sua carta enviada ao jornal:

Viagem bem feita à Europa ou Estados Unidos; amar a inteligência criadora, as obras de nomes como Shakespeare, Blake, Shelley, Keats, Hart Crane e Rimbaud, e fazer dessa afeição o nosso próprio modo de ver o mundo e compreender a vida; amor e verdade, beleza e sentimentos elevados, para o que necessitamos de encontrar uma Eurídice, a mulher desejada, mesmo que para encontrá-la tenhamos que descer ao inferno, como Orfeu; enfim penso como meu grande amigo Shelley: “Life, like a dome of many – coloured glass, Stains the white radiance of Eternity”.

A coluna “Fatos sem fotos”, do jornal Tribuna do Norte, há algum tempo, vinha fazendo um “inquérito literário”, onde o escritor potiguar tinha que responder a seguinte pergunta: “Quais os dez livros, nacionais e estrangeiros, que você indicaria para um rapaz de 18 anos formar a sua biblioteca?” No dia 21 de setembro daquele ano de 1962, foi a vez do poeta Walflan de Queiroz responder a enquete, indicando as seguintes obras:

Estudos Alemães (Tobias Barreto); A Base Física do Espírito (Farias de Brito); Pascal e a Inquietação Moderna (Jackson de Figueiredo); Poesia Completa (Murilo Mendes); A Psicologia da Fé (Padre Leonel Franca); Confiteor (Paulo Setúbal); História da Literatura Brasileira (Sílvio Romero); A Vida de Jesus (Plínio Salgado); Os Sertões (Euclides da Cunha); Poemas (Deolindo Tavares). Estrangeiros: O Coração (De Amicis); Por onde Passam os Anjos (Daniel-Rops); O Fio da Navalha

(Somerset Maugham); Anna Karenina (Tolstói); Os Irmãos Karamazov (Dostoiévsk); O que Jesus Via do Alto da Cruz (Sertillanges); A fonte (Charles Morgan); Judas, o Obscuro (Thomas Hardy); A Morte em Veneza (Thomas Mann); Uma Estação no Inferno (Rimbaud).

A lista que Walflan de Queiroz fornece à coluna recai sobre as suas próprias influências, refletindo as suas próprias leituras. Mostra-se um leitor profícuo, eclético. De Tobias Barreto ao poeta pernambucano Deolindo Tavares, de espírito angustiado, morto prematuramente aos 24 anos, passando por referências que denotam preocupações de toda ordem, místicas e estéticas, como Farias de Brito, o poeta Murilo Mendes, o Padre Leonel Franca, Plínio Salgado, etc. Nas obras estrangeiras mencionadas destaca-se também a heterogeneidade de suas leituras. O gosto pelos romancistas: Tolstói, Dostoiévski, Thomas Hardy, Thomas Mann.

Serenata no Cemitério do Alecrim

Um dos episódios mais obscuros protagonizados pelo poeta Walflan de Queiroz ocorreu por volta de 1948 ou 1949, uma vez que a escassez de documentos dificulta fixar a data com segurança.

Walflan, o estudante boêmio, dionisíaco, egresso do Atheneu, entediado com o marasmo da cidade, acompanhado de alguns amigos, entre 18 e 19 anos, (re)viveu numa certa noite, uma “jornada byroniana” no Cemitério Público do Alecrim, o mais antigo de Natal.

Numa crônica, o então repórter do Diário de Natal, Djalma Maranhão, evoca esse episódio de um modo muito peculiar, escrevendo sobre os intelectuais e os boêmios que afluíam a “esquina famosa”, a Tavares de Lira com a Rua Dr. Barata. No dia 17 de abril de 1949, em seu estilo irônico e envolvente, informa:

[...] Antonio Pinto não é, mas muita gente o considera existencialista. Graças à sua influência, dois jovens de menos de 20 anos, o poeta Joanilo de Paula Rego e o sociólogo (a classificação vai por conta do deputado José Augusto) Walflan Queiroz, fizeram uma serenata no cemitério, declamando versos “a la Castro Alves” aos austeros mausoléus e diante das tumbas rasas, sendo por isso ameaçados de processo como profanadores de lugares sagrados... O sociólogo Walflan é dado a meditações e fica horas seguidas, sombrio e isolado, pensando ou fazendo

que pensa, nas proezas de Zaratrusta, ou assimilando o pessimismo mórbido de Schopenhauer. Pinto e os seus pupilos andaram inventando modas. Não botam açúcar no café com a colher, derramando desleixadamente o açucareiro na xícara. O laço da gravata deles é diferente e mais um mundo de outras coisas semelhantes.

O poeta e crítico literário Antônio Pinto de Medeiros, mencionado na crônica de Djalma Maranhão, foi uma dessas figuras de destaque na imprensa do Estado. Publicou, em vida, dois livros influenciados pela poética de 45, Um Poeta à Toa (1949) e Rio do Vento (1951). Tinha horror a literatos de mentalidade tacanha e provinciana, assinando a coluna “O Santo Ofício”, com o pseudônimo sugestivo de Torquemada, no suplemento literário O

Poti. O escritor Tarcísio Gurgel, em seu livro Informação da Literatura Potiguar, o

chamou de “inquisidor da mediocridade”, reconhecendo a exigência da sua crítica.

Antônio Pinto, sem dúvida, deve ter influenciado os seus “pupilos” através da literatura. A sua influência se deve inicialmente por sua passagem, como professor do Atheneu, onde estudaram Walflan de Queiroz e Joanilo de Paula Rego.

Djalma Maranhão, em sua crônica, diz que Walflan de Queiroz é um “sociólogo”, sendo o termo creditado ao deputado José Augusto. Na verdade, nunca foi sociólogo. Apesar disso, diz que ele e Joanilo andaram declamando versos “a la Castro Alves” diante dos “austeros mausoléus” e “tumbas rasas” do Cemitério do Alecrim.

Visível também a referência um tanto sarcástica do jornalista ao afirmar que Walflan “é dado a meditações”, permanecendo horas “sombrio e isolado”, e ainda “pensando ou fazendo que pensa, nas proezas de Zaratrusta, ou assimilando o pessimismo mórbido de Schopenhauer”. O seu olhar descritivo aponta ainda para o modo como se

comportavam nos cafés e se vestiam os jovens poetas sob a tutela de Antônio Pinto de Medeiros.

A serenata, com algumas variações de natureza polêmica, é amplamente confirmada também por outras fontes. O jornalista Woden Madruga, por exemplo, relatou o fato ou a versão que ouviu falar, que chegou até ele pelos jornais e, ao seu estilo, resume boa parte dessa faceta pessoal de Walflan de Queiroz com seus colegas, especialmente, com Joanilo de Paula Rego. Ouçamos:

Três ou quatro jovens daqui de Natal pularam o muro do Cemitério do Alecrim e fizeram uma serenata no túmulo da filha de Januário Cicco: Walflan de Queiroz, Joanilo de Paula Rego, Nabor Pires de Azevedo Maia, e tinha outro que eu não sei. Ninguém sabe de quem foi a ideia. Eles foram presos. Essa história é um fato real e gerou um processo que está na Justiça. A Tribuna do Norte, eu não sei de que época, publicou trechos desse processo.

À primeira vista não se trata de um relato definitivo. O jornalista Woden Madruga menciona o nome de Nabor Pires de Azevedo Maia ao lado dos poetas Walflan de Queiroz e Joanilo de Paula Rego. Informa ainda que a serenata foi dedicada para a filha5 de Januário Cicco.

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Yvette Simões Cicco (13. 11. 1911 – 03. 02. 1937). Era a única filha do casal Januário Cicco e Izabel Simões Cicco. A sua morte trágica e precoce, aos 25 anos de idade, provocou uma grande comoção na cidade. Os jornais da época lhe prestaram vários tributos. A escritora e poetisa Palmira Wanderley publicou o seu necrológio no jornal A República. Descreve uma menina pura, virgem de “olhos claros”, com sua “alma de noiva”, cuja fisionomia “delicada e franzina como uma flor de Sombra”, sonhou “com a capela branca do noivado”.

O jornalista Ticiano Duarte diz que foi “uma farra que eles fizeram no cemitério”, uma “noite de boemia”, para “o túmulo da filha de doutor Januário Cicco”, resultando em um grande mal-entendido, pois foram acusados de profanadores de sepultura e por conta disso “abriu-se um processo”, e “eles foram processados”. Ticiano Duarte complementa: “Joanilo era muito amigo de Walflan!”

Veremos através da entrevista esclarecedora de Joanilo de Paula Rego os motivos que levaram à sua prisão e à de seus companheiros. Veremos também de quem partiu a ideia para fazer essa serenata.

“Walflan sempre caladão, esquisito, muito reflexivo e pensador”, recorda-se de imediato Joanilo, já octogenário, com os olhos reluzentes, os longos cabelos brancos, cuidadosamente penteados de lado, recostado ao travesseiro, sem camisa, bem à vontade, balançando-se numa rede, em seu quarto, que é o seu santuário, pois confessa ser ali o seu lugar preferido do apartamento onde mora com a esposa, a fotógrafa Lolita Rego, que fez história no ramo da fotografia social em Natal. Walflan representa para ele a recordação de uma grande amizade desde tempos do Atheneu.

Ele era como um personagem desgarrado de um céu, de um paraíso e que estava curtindo uma pena aqui na Terra. Ele transmitia logo essa impressão. Ele era místico, solitário, introvertido e amava o mistério, a transcendência, o que é eterno, o que é permanente, o que é transitório. Ele ia como um equilibrista no fio da navalha. E isso intrigava a maioria dos amigos que não sentiam o problema dele. E poucos o entendiam. Ele, então, se aproximou de mim por que pensou que eu iria entendê-lo. E realmente nós nos entendemos muito bem durante muito tempo. Conversávamos todos os assuntos, discutíamos as matérias do curso e trocávamos idéias sobre o Existencialismo. Conversávamos muito sobre isso. Éramos, neste ponto, sartreanos.

Joanilo de Paula Rego cursou Direito em Alagoas. E lá conheceu o poeta Lêdo Ivo. Com a voz grave e pausada, prossegue:

Walflan tinha um ídolo literário que era Jean Arthur Rimbaud. Então, eu descobri por acaso um verso, um soneto de um amigo meu, Lêdo Ivo, da Faculdade de Direito de Alagoas, - nós fomos contemporâneos da mesma turma, - que era outro louco por Rimbaud! Ele tem um soneto que a gente gostava muito de declamar, eu e Walflan. Começava, assim, o primeiro quarteto: “Por um campo fantástico me vou / brutalmente pisando sobre flores / e nos meus ombros vai perdendo as cores / o paletó de Jean Arthur Rimbaud”6. O Lêdo Ivo também tem um poema que Walflan gostava muito e eu também. Fui eu que encaminhei. É a “Valsa fúnebre de Hermengarda”. Muito bonita e a gente gostava muito de declamar.

A poesia carregada de pathos e de existencialismo interessa a Walflan, o “anjo desgarrado da turma de Rimbaud”, como Joanilo costumava chamá-lo:

Eu dizia muito isso pra aperrear ele, eu dizia: “Você é um anjo que baixou do céu na Terra e perdeu o transporte pra voltar e está aqui alucinado, procurando caminhos como voltar à sua origem. Você é uma figura que veio de outro planeta, de outro hemisfério!” Ele sempre me convidava para a gente ter conversas delirantes, trazia um tema para a gente desenvolver no Grande Ponto, conversando ali naqueles bancos, até tarde da noite. Ele ia mais cedo para casa, porque ia para o refúgio, para a meditação. Ele sempre foi muito cristão, muito espiritualista. Ele vivia mais para o pensamento.

Da noite em que foram ao cemitério, Joanilo lembra-se com detalhes de como tudo aconteceu. Estava ele, José Geraldo Bezerra, Nabor Pires de Azevedo Maia e Walflan de Queiroz, recém saídos da adolescência, sofrendo do tédio que deixa os corações vazios. A

melancolia, pura expressão do desencanto com o mundo, invade o espírito desses rapazes. Surgiu, então, a ideia de Walflan:

Estou cansado da mediocridade da vida, das futilidades, vamos hoje para uma noitada diferente. Vamos ao cemitério prestar uma homenagem a todas as mulheres lindas que morreram virgens, puras, não se contaminaram com as maldades do mundo.

Joanilo conta-nos que estas foram as palavras de Walflan para os seus companheiros, que a princípio não hesitaram em participar da aventura byroniana. Tomaram o bonde e desceram no bairro do Alecrim. Ficaram por lá zanzando, até perto da meia-noite, quando decidiram caminhar em direção ao cemitério. Diante do muro, que era até razoavelmente baixo, Nabor Pires, receoso, a tempo desistiu. Não pulou o muro. E voltou para casa. Joanilo, então, anota a ausência de outro colega de sessões literárias, que era João Batista Pinto, e faz um comentário interessante: “João Batista não foi porque naquela noite ele não se encontrou com a gente, senão teria ido no lugar de Nabor!”

O cemitério está quieto, sereno. Os poetas olham para os túmulos e tumbas, ficam imaginando coisas, querem sentir a emoção mais antiga, talvez a mais forte do ser humano, que é o medo da morte. Querem vencer esse medo estimulados pelos ares noturnos, pela inspiração sepulcral.

Entramos no cemitério à meia-noite! Eu, Walflan e José Geraldo Bezerra. Quando entramos no cemitério, aquele silêncio, aquela coisa de meia- noite, aquela meia luz e a gente perto da escuridão. Aí, Walflan chegou e disse gritando: “Estou vendo demônios, estou vendo demônios, aqui só

têm demônios!” Eu disse: “Que é isso Walflan!” Ele me apontou para uns aguadores, uns funcionários do cemitério que ficam aguando os túmulos todas as noites. Aguando para as rosas nascerem, crescerem perfumadas. Ele disse: “Vamos embora que eu estou vendo demônios!” Eu disse: “É não, Walflan! Deixe eu ver melhor!” Aí, me aproximei. Eram os aguadores das plantas. Eram negros, todos pretos, vestidos só com o calção preto, sem camisa, sem nada! Pareciam nus à meia noite! Walflan disse: “São os cães, são os cães, cada um é o cão!” Até que eles se aproximaram da gente e interpelaram: “O que é que vocês estão fazendo aqui? É proibido!” Eu disse: “Nós sabemos, nós estamos apenas olhando e sentindo a inspiração do silêncio, da morte, da transubstanciação”. E os homens ficaram todos olhando pra gente sem entender! E disseram: “Esperem aí, vocês agora não podem sair mais não! Temos de passar ali”.

A presença daqueles jovens no cemitério à meia noite despertou o interesse dos funcionários e a vigilância foi então avisada de que havia um grupo de “saqueadores”, de “vagabundos”, perambulando entre os túmulos. Como o jazigo da família Cicco era à época um dos mais suntuosos, guardava relíquias da filha e da mulher de Januário Cicco, o chefe dos trabalhadores, após abordá-los, decidiu telefonar para o Dr. Januário Cicco, médico respeitado na cidade, formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, dizendo-lhe que tinha ladrões no cemitério, tentando violar o túmulo de sua saudosa filha.

A alusão de que eles teriam profanado o túmulo de Yvette Cicco não passa na verdade de aleivosia, porque nada disso aconteceu. Porém, o Dr. Januário, “para mostrar zelo”, deu queixa na polícia e um inquérito veio a ser instaurado.

Walflan, Joanilo e José Geraldo foram presos naquela conturbada madrugada, mas logo liberados, já pela manhã bem cedo, na delegacia do Alecrim, após prestarem seus depoimentos e o advogado José Nicodemos ter impetrado um habeas corpus.

Joanilo de Paula Rego, como um tímido anjo, tão cheio de vida, retoma sua narrativa:

Quando foi para abrir o inquérito verificaram que eu era adjunto de promotor, portanto, um auxiliar da justiça, um membro da justiça, que não podia ser processado pela justiça comum. Tinha que ser uma justiça especial. O processo foi para o Tribunal de Justiça e isso arrastou os outros. Os jornais anunciaram tudo. E eu publiquei na época uma balada, chamada “Balada da Rua dos Mortos”. Eu poderei, que a memória já está muito fraca, tentar lembrar, assim, mais ou menos o que era. Dizia: “Em noite deserta banhada de lua, querendo fugir da vida comum fomos ao cemitério fazer uma visita à rua dos mortos. Pisei lajes brancas molhadas de frio. Ouvi o gemido do vento nas cruzes. A noite que era mais negra na rua dos mortos. Beijei nos meus braços o corpo sem vida de todas as virgens que puras qual lírios morreram de amor e foram plantadas vestidas de flores na rua dos mortos”.

De fato, muitas informações controvertidas e desencontradas foram anunciadas nos jornais de Natal, como o mito de que eles teriam violado o túmulo de Yvette Cicco, conforme já foi dito. Joanilo de Paula Rego recorda sem nenhum rancor: “Eles nos chamaram pela imprensa de baba defuntos”.

A serenata proposta pelo poeta Walflan de Queiroz não era exclusivamente para Yvette, mas “para todas as mulheres lindas que morreram virgens, puras, não se contaminaram com as maldades do mundo”. No auge da polêmica nos jornais, Joanilo escreveu e publicou, em resposta às acusações levianas de que ele e seus amigos teriam profanado o mausoléu da família Cicco, o poema “Balada da Rua dos Mortos”. Os versos desse poema de inspiração sepulcral foram declamados por ele durante a nossa entrevista. “Pisei lajes brancas molhadas de frio” ou este trecho “Ouvi o gemido do vento nas cruzes” e mais ainda “Beijei nos meus braços o corpo sem vida de todas as virgens...”, são imagens que tem a força da poesia concebida através da beleza que reside nas coisas fúnebres.

Atualmente, o Cemitério do Alecrim está muito diferente do final da década de 40, quando Walflan de Queiroz, Joanilo de Paula Rego e José Geraldo Bezerra, perdidos na nostalgia e na solidão dos sepulcros, caminharam por suas ruas, espreitando as cruzes, declamando poemas à beira dos jazigos.

Embora seus muros sejam altos, a impressão que se tem é de um velho cemitério mal conservado. Túmulos sujos, sepulturas obscurecidas pelo tempo, capelas e velas que arderam na noite anterior. Anjos chorando, anjos partidos. Santos de cabeças decepadas: Santo Antônio, Santo Expedito, São Jorge, São Miguel Arcanjo. A solidão dos Anjos e dos Santos. Lousas de mármore, nomes e esplêndidos jazigos em quadras muito próximas. Gavetas encaixadas, lado a lado, nas paredes. Ali, logo perto do portão principal, um grupo de mulheres contemplam um Cristo de metal numa grande tumba.

Nesse cemitério, repousam figuras importantes do Rio Grande do Norte. Foi um dia