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Por que não atendo ao teu apelo? Barco, barco que vens de longe, Por que não vou até onde estás? Barco, barco cruel e maldito Manchado de lama e de lodo, Que equipagem é esta que conduzes? Que carga é esta,

Que bandeira é esta, Que nome tens?

Desces de um rio cautelosamente,

Lutas contra os peles vermelhas enfurecidos. O arco-íris te abriga à sua sombra.

Não posso ir ao teu encontro, Não posso atender ao teu chamado, Sem levar comigo os olhos de Irene.

O eu lírico escuta o chamado do mar na figura do barco personificado. “Barco, barco, que me chamas / Por que não atendo ao teu apelo?” Ele procura, invocando o barco, compreender a aura de mistério que envolve a sua angústia existencial. O barco lhe provoca a sensação do inexprimível, a sensação de sentir o transcendente.

O barco tem a condição de ressonante, pois nele nota-se a ressonância do poema “Le bateu ivre” de Rimbaud. O barco tem vida, tem voz. “Barco, barco cruel e maldito, / Manchado de lama e de lodo”. Surgem os questionamentos quanto à origem dessa embarcação: “Que equipagem é esta que conduzes? / Que carga é esta, / Que bandeira é esta, / Que nome tens? / Desces de um rio cautelosamente, / Lutas contra os peles vermelhas enfurecidos”. O seu barco enfrenta também desafios, palpita de ação: “E lutas contra os peles vermelhas enfurecidos”. A expressão “os peles vermelhas” é a mesma que se encontra no verso de Rimbaud: “Des peaux-rouges criards les avaient pris pour cibles”.

No fim do poema, o lamento sentimental: “Não posso atender ao teu chamado, / Sem levar comigo, os olhos de Irene”. A lembrança da Amada deve acompanhar o eu lírico a onde quer que ele vá. Seus olhos, sua ternura. A perspectiva da Amada em seu imaginário romântico. O tema da viagem adquire outra simbologia como neste poema:

VIAGEM

O navio que viu auroras frias em seus ninhos,

O navio da morte que conduziu tripulações selvagens em oceanos distantes, Este navio que não tem velas brancas, mas bandeiras multicores.

Eu o espero para uma viagem suicida.

Seus versos sugerem um clima de mistério à semelhança do poema anterior. A viagem, le voyage, gera ansiedade, expectativa. As imagens angustiantes determinam de certo modo a visão de mundo do eu lírico que nos fala de um navio que “viu auroras frias”, um “navio da morte”, de “bandeiras multicores”. O navio é a personificação da morte.

O poeta Walflan joga com os elementos: navio, viagem, aventura, mar. Os escritores Edgar Barbosa e Veríssimo de Melo, que saudaram O Tempo da Solidão, observam essa relação na sua poesia. Para Edgar Barbosa, o livro do poeta Walflan de Queiroz representa “um canto do homem vivido em rudes experiências e que, entretanto, não desesperou”. E acrescenta dizendo que “não se dirá que é um livro de pieguismo e de lágrimas”, mas sim um “documento forte da juventude que sofre no espírito a dramaticidade da guerra e nem por isso renunciou à aventura e ao desejo de completar-se”. Por sua vez, Veríssimo de Melo procura imaginar Walflan de Queiroz em sua “primeira noite de aventura no mar” e nos fala da presença desse “quase adolescente” em um velho navio que fazia o percurso entre a América do Sul e o Mar do Caribe. E faz uma comparação engenhosa ao imaginá-lo como um personagem dos contos de Jack London, tendo realizado “o sonho mais acariciado de sua juventude, o maior sonho de todos os jovens do mundo: viajar!”.

Segundo Veríssimo de Melo, Walflan viajou muito. Visitou cidades estranhas, viu mulheres exóticas e, em meio a uma farra, a uma bebedeira, envolveu-se numa briga em algum bordel de Martinica.

As circunstâncias do lugar mencionado por Veríssimo, - Martinica -, um departamento ultramarino francês, que integra o conjunto das Pequenas Antilhas, no mar do Caribe, situado entre as ilhas Dominica, ao norte, e Santa Lúcia, ao sul, permitem ainda que, de forma obscura, a visualização do roteiro dessa viagem do poeta.

É possível que Walflan de Queiroz tenha tirado oficialmente através de um curso de formação a carteira ou um certificado emitido pela Marinha Mercante, no começo dos anos 50, que lhe permitia ingressar nas embarcações de médio e grande porte de acordo com a sua especificidade. Ele pode, por exemplo, ter embarcado em determinados tipos de navio mercante, como pesqueiros, contentores, rebocadores, independente da nacionalidade.

No entanto, não temos dados suficientes e concretos sobre sua viagem, nenhum diário nem mesmo um documento com foto que o identifique como marinheiro mercante. O que se sabe então é o seguinte: uma viagem às Antilhas realmente aconteceu a bordo do cargueiro brasileiro “Goiânia”, em agosto de 1956, como ele mesmo escreveu em depoimento autobiográfico para o poeta Deífilo Gurgel.

No depoimento concedido ao jornalista Gumercindo Saraiva, na matéria de jornal, “Walflan de Queiroz – o poeta sob o olhar de Deus”, Walflan afirmou: “Fui marinheiro e estive nas Antilhas. Ancorei em Buenos Aires, onde errei pela Avenida Corrientes”. Seu relato sobre a sua vida de marinheiro é profundamente lacônico, brusco, informativo, sem muitos detalhes. O momento mais vibrante de sua declaração é quando diz que errou pela Avenida Corrientes, em Buenos Aires. Eis a imagem do errante, do jovem boêmio perdido, caminhando durante o dia ou sob as estrelas da Noite, passando por cafés, teatros, entrando nos bordéis e salões onde se ouve o tango argentino.

No artigo “Morreu Walflan de Queiroz”, assinado por Protásio Melo, por ocasião da sua morte, há um trecho em que temos informações sobre uma viagem:

[...] alistou-se na Marinha Mercante, como moço de bordo (taifeiro), sendo que esse emprego durou pouco. Vindo da Argentina o navio foi diretamente para o Caribe. Lá, num dia de borrasca, o comandante, um

negro das Bahamas, pede um café a Walflan, aos gritos. O nosso poeta se enfurece e respondeu: “Seu moleque, eu sou um intelectual e não vou servir café a um negro torpe como você”. Resultado: Walflan foi demitido na hora e voltou para o Brasil, dormindo toda a noite com um punhal sob o travesseiro com medo de uma vingança do negro.

Protásio Melo nos fala então de um jovem poeta que se alistou na marinha mercante, conseguindo um emprego temporário num navio, trabalhando como taifeiro, “moço de bordo”, serviço que desempenha junto com outros tripulantes, subordinado aos oficiais. Protásio menciona a Argentina, o Caribe, um “negro das Bahamas”, comandante do navio com quem o poeta teria se desentendido no trajeto da viagem. Isso poderia ter-lhe custado à própria vida.

O certo é que as supostas viagens de Walflan de Queiroz pelo Mar do Caribe (Caribbean Sea) renderam-lhe muitas estórias. A aura lendária em torno disso é cultivada por seus contemporâneos. Há rumores de que ele não gostava muito de falar de suas viagens como marinheiro. Mas há os poemas, há a sua imaginação fazendo fronteira com a realidade.

O traço arquetípico e lendário da viagem que se irradia dos poemas em O Tempo da

Solidão revela a capacidade do poeta Walflan de sondar o real numa jornada épica através