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Foste certa vez Annabel Lee. Tiveste em teus braços uma onda azul. Presa do meteoro, foste um pássaro boiando pelas espumas do mar.

Teu vulto, qual uma sombra distende-se pela distância ao barulho das vagas e dos ventos que zumbem como uma inquieta lira jogada ao encontro dos rochedos e dos pântanos. Teus cabelos, como doces fios de ouro, envolvem-se em tênue névoa ao caminhares pelo vale de minha solidão.

Foste certa vez como Sara. Guiado pelo anjo Rafael, fui teu esposo durante toda a minha vida e expulsei do teu corpo o demônio que te atormentava. Fomos ligados pelo peixe e pelo consentimento de Deus.

Nunca te encontrei realmente. Caminhei por vales e montanhas, desci ao inferno como Orfeu para te buscar e guardei em minha lembrança o mistério que te cerca, qual esfinge batida pela areia do deserto.

Foste por fim uma criança. Eu, antigo sacerdote de Zeus, converti-me ao cristianismo e repudiei os deuses e os mitos que destruíam o meu povo.

Sou filho de Apolo e das Musas, mas morri assassinado pelo ódio de Aglaonice quando explicava o sentido do Deus Único e Eterno. Minha alma seguiu a tua e minha voz foi ouvida pela tempestade quando pronunciei o teu nome.

Como uma criança vives em mim. Guardada pela inocência, qual uma abelha do paraíso, caminhas em silêncio pela noite que tem uma raiz de profunda eternidade.

Sou uma tocha e como uma tocha morrerei. Doce criança de olhos meigos e tristes porque eu te amo mais do que os barcos, mais do que as flores e mais do que o mar?

(O Livro de Tânia, p. 99)

Os mitos sempre foram uma fonte para os poetas de todos os tempos. A relação entre mitologia e poesia opera-se de forma intrínseca. Sabemos pela narrativa do mito que Orfeu, filho de Apolo, desceu ao Hades, o Inferno, onde as chamas são incessantes, para resgatar a sua eterna amada, a mais bela de todas as ninfas, Eurídice.

Orfeu desejou trazê-la para o mundo dos vivos, mas seus planos fracassaram por que ele infringiu uma condição imposta pelos deuses de que durante a travessia não poderia olhar para trás. Orfeu ignorou essa ordem e perdeu Eurídice pela segunda vez.

O poeta Walflan se reconhece nesta imagem triste de Orfeu, como aquele que perde também a sua amada. “Foste certa vez Annabel Lee. Tiveste em teus braços uma onda azul. Presa do meteoro, foste um pássaro boiando pelas espumas do mar”. O poeta ama com a pureza órfica, com a solidão órfica. É um Orfeu trajado de apocalipses e de luas mortas. “Nunca te encontrei realmente. Caminhei por vales e montanhas, desci ao inferno como Orfeu para te buscar e guardei em minha lembrança o mistério que te cerca, qual esfinge batida pela areia do deserto”.

Além de Eurídice, o poeta evoca a figura bíblica de Sara, uma das mulheres do patriarca Abraão, no Antigo Testamento. Ele deseja unir tradições: Eurídice e Sara. Duas mulheres importantes, com seus dramas.

No fim do poema, caracteriza a sua paixão pelo viés da Eternidade, do Silêncio e da Inocência. A paixão como uma tocha que se consome lentamente. “Sou uma tocha e como uma tocha morrerei”.

Croquis de uma experiência monástica

Na década de 60, o poeta Walflan de Queiroz buscou a solidão dos claustros. Quis ser monge. Entra então para um mosteiro. Renúncia. Crepúsculos. Noite fria. Céu estrelado. Orações. As regras. Manhãs de nevoeiro. Itinerário de preces e de cantos. O contato com Deus. O esquecimento de si próprio. Vida espiritual. Devoções. A sabedoria divina. Contemplação.

O monge trapista norte-americano Thomas Merton (2007), uma das leituras de Walflan de Queiroz no mosteiro, afirma que a experiência contemplativa se dá no mais profundo ser espiritual de quem a tem, e é uma experiência da presença pessoal e transcendente de Deus.

A experiência monástica de Walflan é breve e frustrada. “Entrei no Convento Cisterciense de Itaporanga. Fiz votos de noviço e nele tive a experiência cristã suprema de minha vida. Li São Bernardo e decorei a regra de São Paulo”. Ele nos diz que fez “votos de noviço”. O noviço é um iniciante ao isolamento contemplativo, está na fase de experiência em um mosteiro. Isso era a vida que de fato lhe interessava? Por que a busca e depois o abandono? O problema da sua vocação monástica está no cerne de sua vida e de sua obra poética.

Os cistercienses são membros de uma ordem religiosa muito antiga, fundada em Cister, na França, por volta de 1098. Os religiosos desta Ordem seguem as regras de São Bento, seguida também pelos beneditinos, como o próprio nome já sugere. No Dicionário

Histórico de Religiões, escreve Amaral Azevedo (2002, p. 64): “Na concepção beneditina,

o mosteiro é uma família, seus integrantes prestam total obediência ao abade, e o tempo do monge é dividido entre o trabalho (seis horas diárias no verão) e as orações”. No começo dos anos 50, um grupo de monges cistercienses veio para o Brasil, fundando os primeiros conventos em São Paulo e Minas Gerais.

Algumas pistas em relação ao ano em que o poeta Walflan ingressou no mosteiro cisterciense, no interior do Estado de São Paulo, são fornecidas a partir de uma reportagem de jornal. No dia 27 de março de 1965, a Tribuna do Norte, numa seção especial dedicada à literatura, editada pelo jornalista e escritor Nei Leandro de Castro, traz uma grande matéria com o título: “Walflan e Claude, dois poetas da aventura”.

A comparação entre eles se dá pelo espírito de aventura que carregam. São viajantes. Ingressaram na marinha mercante. Viajaram por lugares longínquos. O poeta francês Claude Martin, acadêmico do curso de Medicina, em Paris, aos 26 anos de idade, em busca de aventuras, embarcou em um navio que o deixou na África e, meses depois, sem saber o porquê, veio parar no Porto de Natal.

Em Natal, Claude permaneceu 48 horas, o bastante para descobrir e amar a cidade como o seu mais antigo amante. Nos bares, pela madrugada adentro, revelou um conhecimento espantoso acima de tudo. “Causeur”, discorreu a noite inteira sobre pintura, poesia, filosofia, política, música, etc. Revelou, acima de tudo, a sua grande alma de poeta.

No caso de Walflan de Queiroz, o contexto de sua viagem é outro, suas motivações são diferentes:

Recentemente, guiado de novo pela aventura, Walflan de Queiroz deixou a província. Passou quase um ano viajando pelo Brasil: foi capataz em São Paulo, clochard em Brasília e monge no interior paulista. Após seis meses no mosteiro, como irmão leigo, eis que volta ao porto de origem. Retorna místico, com um misticismo que procura enriquecer com a leitura constante dos românticos alemães: Novalis, Goethe, Heine e Hölderlin, os seus poetas atualmente preferidos.

O que reverbera nessa reportagem é o poeta errante, o andarilho, vagando pelo Brasil, num ritmo irregular, “quase um ano”, que pode ter sido no decorrer de 1964, o ano do Golpe Militar. De capataz a clochard, e “monge no interior paulista”, presumivelmente, em Itaporanga; depois ele decide voltar a Natal, após várias andanças. Passou seis meses em um mosteiro na condição de “irmão leigo”, ou seja, “irmão converso”, que ainda não é um monge, propriamente dito.

Qualquer que seja o mosteiro, a Ordem religiosa, os monges sempre assumem trabalhos no campo ou no interior da Abadia, pois são obrigações comuns às normas monásticas. Orações, silêncio e trabalho. Mas o poeta Walflan não conseguiu, ao que parece, saciar a sua sede divina enclausurado numa rígida ordem. Aborreceu-se um dia e foi embora. Sentiu-se desapontado por não encontrar entre os padres e os monges a paz de espírito. Porém, a sua relação mística com o divino, com o sagrado, estreitou-se. Quer dizer, não provocou um distanciamento, ao contrário, consolidou uma aproximação, que terá desdobramentos na sua poesia.

No dia 29 de novembro de 1965, lança o seu terceiro livro de poemas, O Testamento

de Jó, na Livraria Universitária. Seu livro ocupa um lugar importante no conjunto da sua

obra que até o momento resumia-se em dois títulos: O Tempo da Solidão (1960) e O Livro

de Tânia (1963). A sua importância se deve basicamente à inclinação para os temas

bíblicos.

A repercussão do lançamento d‟O Testamento de Jó pode ser constatada numa nota editorial publicada em 30 de novembro de 1965 na Tribuna do Norte:

POETA OFERECEU A DEUS