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– MECONTAUMA história, Bela!

– Zip, você já deveria estar dormindo – Bela o repreendeu, guardando a pequena xícara de chá na estante de porcelanas.

Estava ficando tarde, e Madame Samovar ainda tinha muitas tarefas a finalizar, por isso havia pedido para Bela colocar o pequeno Zip para dormir.

– Por favor, Bela, me conta uma história!

A jovem cedeu, pois era impossível dizer não para aquela carinha tão doce.

– Está bem. Que tipo de história você quer que eu conte?

– Nada de contos de fadas. Quero algo diferente – disse Zip. – Quero uma história de verdade. Me conta sobre a sua vila. Como é lá?

Bela inclinou a cabeça.

– Villeneuve? Lá é um lugar pequeno. Tem uma praça, um mercado e uma fonte, assim como todas as outras vilas. Tem também uma igreja com uma pequena coleção de livros. É um lugar tranquilo e muito bonito – ela disse, surpresa ao perceber que estava falando tão bem de Villeneuve e, inclusive, sentindo um pouco de saudade. Afinal, quando morava lá, tudo o que queria era ir embora. – Todo mundo se conhece, e isso às vezes é bom… Outras vezes não é tão bom assim – acrescentou com uma risada.

– Que tipo de pessoas vive lá? – perguntou Zip.

– Bem, tem o Padre Robert, um homem culto que é o pároco e o bibliotecário. E, claro, tem o meu pai. O nome dele é Maurice. Ele faz as caixas de música mais bonitas do mundo. É inteligente e tem uma alma verdadeiramente de artista… – Bela sorriu. – E ele é gentil. Tão gentil.

O coração de Bela se apertou, como sempre acontecia quando falava sobre seu pai, ou mesmo quando pensava nele. Lágrimas brotaram em seus olhos.

Ela teve que desviar o olhar por um segundo para se recompor.

Zip notou sua tristeza.

– Deve sentir falta dele.

– Muita – Bela assentiu.

– Sinto muito, Bela.

– Eu também, Zip. – Determinada a não chorar, mudou de assunto. – Há também um vendedor de flores que sempre tem as flores mais bonitas que você pode imaginar. Uma pescadora com uma língua afiada… Um padeiro. Um verdureiro. E… – Bela fez uma careta. – Gaston.

Zip riu.

– Quem é esse?

– Tudo o que as mulheres querem.

– Mesmo?

– Bem, ele certamente pensa assim.

– Não parece que você sente muita falta dele.

– Nem um pouco – respondeu Bela. – Mas há outra pessoa de quem sinto falta… Agata.

– Quem é ela?

– A pessoa mais corajosa que conheço.

– O que ela fez? – perguntou Zip com os olhos arregalados. – Enfrentou ladrões? Piratas?

– Vou te contar, mas, depois, apagaremos as luzes. Combinado?

– Combinado! – disse Zip.

– Nós tínhamos um vizinho em Villeneuve, seu nome era Rémi – Bela começou. – Quando eu era pequena, seu filho morreu depois de uma febre terrível. Rémi ficou louco de tristeza. Seu cabelo ficou enorme, ele emagreceu, parou de se cuidar, ficou sujo. A dor tornou seus olhos escuros e selvagens.

– Ele parece assustador – disse a xícara, com um arrepio.

– E era mesmo. Ele mantinha todos longe, grunhia se um amigo ou vizinho chegasse muito perto. Sua esposa o deixou e seus pais não conseguiam mais se aproximar dele. Um a um, os camponeses viraram as costas para ele. Apenas Agata se recusou a desistir.

– Quem era ela?

– Uma mulher pobre que todos em Villeneuve conheciam. Um dia, todos estavam na praça, era dia de mercado, e todos falavam sobre Rémi. A maioria não dizia coisas agradáveis, e Agata ficou farta daqueles comentários. Ela raramente falava com alguém na cidade, mas, nesse dia, ela falou.

– “Rémi sempre foi gentil comigo”, ela disse. “Ele me deu comida.

Ofereceu abrigo. Eu falarei com ele.” Todos imploraram para que ela não fosse – explicou Bela.

– “Ele é muito imprevisível!”, disse o prefeito. “É um animal selvagem”, disse o padeiro. “Vai te machucar, sua tola”, disse Gaston, que concluiu:

“Vamos atirar nele e terminar logo com isso”.

– E sabe o que ela disse?

– O quê? – perguntou Zip.

– “O amor não é para os covardes.”

Zip assentiu, digerindo aquela frase.

– Agata implorou por um pouco de queijo e um pão a um comerciante, e foi até a casa de Rémi. Eu a segui até o portão da casa dele e a observei enquanto ela caminhava pelo quintal. Quando a viu, ele se aproximou dela com uma forquilha, gritando para que saísse de sua casa. Senti tanto medo por ela.

– E o que você fez? – perguntou Zip.

– Implorei para que ela voltasse, mas Agata não me deu atenção. Foi até Rémi e disse: “Seu filho foi gentil e bom. É assim que você honra sua memória?”.

– Rémi ficou imóvel. Jogou a forquilha no chão. “Meu filho!”, ele disse, chorando. “Meu filho… Meu garotinho! A morte o tirou de mim!” Suas pernas cederam e ele caiu de joelhos no chão, impotente em seu desespero. Agata sentou-se ao lado dele e lhe deu o pão e o queijo que levara. “Ouça-me, Rémi”, ela disse. “A morte ganha apenas se você deixar.” Rémi balançou a cabeça. Lágrimas corriam por seu rosto. “Como posso vencer a morte, Agata?”, ele lhe perguntou. “Não posso dar vida. Eu não sou Deus.” Agata riu.

“Você acha que é a vida que vence a morte? Pois não é. É o amor. A vida é frágil. A vida acaba. Mas o amor? O amor vive para sempre”, ela disse. Rémi, então, começou a chorar como uma criança. A partir desse dia, pouco a pouco, ele voltou para o convívio de todos. O amor o trouxe de volta.

Zip ficou em silêncio por um momento. E, então, disse:

– Você está certa, Bela. Agata é muito corajosa.

– Muito – a moça concordou, inclinando-se para o armário e dando um beijo na pequena xícara. – Agora, hora de dormir. Boa noite, Zip.

Ela começou a fechar a porta do armário, mas, quando estava quase fechando, Zip a chamou novamente.

– Bela?

– Vá dormir, Zip – Bela respondeu.

– Ele é como Rémi.

– Quem?

– O mestre. Ele é do jeito que é porque também sente muita dor.

Bela parou, impressionada com a percepção daquela criança.

– Quer saber de uma coisa, Zip? – ela perguntou.

Ele assentiu.

– Você iria gostar de Agata. Muito. E ela, de você.

Zip sorriu e fechou os olhos. Bela fechou a porta do armário. Deu boa-noite à Madame Samovar, acendeu uma vela e saiu da cozinha. Estava cansada depois de ter patinado o dia todo e pronta para ir para a cama.

A jovem caminhou pelo corredor principal até as escadas. O castelo sempre parecia mais escuro e mais triste para ela a essa hora da noite. Sabia que corredores menores saíam do principal e havia explorado alguns recintos aos quais esses outros corredores levavam. Em um deles, havia uma mesa sobre a qual se encontravam convites selados e endereçados, mas nunca enviados. Em outro, prata fina e porcelana estavam guardadas em armários para serem usadas em festas que nunca aconteceram. Descobriu os vestidos mais bonitos guardados em baús. Um cavalo de balanço com uma pequena sela de couro.

Um pequeno conjunto de arco e flechas.

O castelo tinha um ar de abandono, de ruínas. Naquela noite, porém, essa tristeza parecia mais pesada do que nunca.

Este lugar precisava de uma Agata, Bela pensou.

Lembrou-se da maneira como Rémi olhou para Agata quando ela se aproximou dele. Lembrou-se de seus olhos, tão cheios de dor. Havia visto a mesma dor nos olhos da Fera. Ele era melhor em esconder sua dor do que Rémi, mas, em alguns momentos, ela transparecia.

Bela se perguntou se algum dia ele falaria sobre isso. O desejo de saber mais sobre ele e de descobrir por que ela estava ali era forte, mas estremeceu ao se lembrar do que havia acontecido na última vez que tentara descobrir tais informações. Lembrou-se da Fera gritando, furioso, na ala oeste, do passeio selvagem pelos bosques, dos lobos.

Ela e a Fera haviam passado mais tempo juntos desde aquela noite terrível.

Ele havia lhe dado sua incrível biblioteca de presente. Eles haviam patinado e estavam se conhecendo um pouco mais. Talvez também estivessem aprendendo a confiar um no outro.

Mas haveria confiança suficiente para ele falar sobre seu doloroso passado?

Será que ela já tinha tido essa chance? Bela não sabia.

Ela chegou até a escada que levava aos andares superiores do castelo e ao seu quarto e, durante a subida, se perguntou se conseguiria ser tão corajosa quanto Agata.