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No capítulo XXII de “O Capital” (“Transformação da mais-valia em capital”), Marx desenvolve sua exposição discorrendo, após discursar sobre a acumulação simples no capítulo XXI, a respeito da acumulação ampliada. Ao discorrer sobre a acumulação simples, de caráter mais abstrato, Marx pressupunha ser toda a mais-valia consumida improdutivamente pelo capitalista, sendo o processo de produção repetido na mesma escala, enquanto que, ao discursar sobre a acumulação ampliada, de caráter mais concreto, pressupõe a mais-valia consumida produtivamente pelo capitalista, sendo o processo de produção, desse modo, ampliado pelo processo de reprodução48. Neste capítulo, retomando parte de sua exposição presente no capítulo anterior, Marx explicita como o direito de propriedade privada transmuta-se em seu oposto, explicitando, desse modo, mais uma vez, a importância da perspectiva teórica totalizante para a compreensão de seu objeto, ou seja, do “modo de produção capitalista”.

No capítulo II de “O Capital”, o qual se atém à análise da esfera do mercado, Marx afirmava que reconhecem os homens o atributo de serem “proprietários privados” de mercadorias, ou, outras palavras, de serem proprietários dos produtos do seu próprio trabalho, devendo um homem, para adquirir uma mercadoria alheia, alienar a sua própria mercadoria pela desejada, consistindo essa relação de direito em um ato de vontade que diz respeito a ambas as partes (MARX, 2006, pág. 109). No capítulo XXII, retomando parte da exposição presente no capítulo XXI, Marx declara que, de acordo com os economistas políticos, o capital original adviria do trabalho do seu possuidor e dos seus antepassados, harmonizando-se, assim, com as leis da produção de mercadorias, porém, referindo-se ao capital adicional, recorda Marx qual é a sua origem: trabalho não-pago ou mais-valia capitalizada, afirmando, ainda, ser justamente

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Tal como afirma Marx, a mais-valia é tanto consumo individual do capitalista, quanto fundo de acumulação: “No capítulo anterior, focalizamos a mais-valia ou o produto excedente como fundo de consumo individual do capitalista e, neste, consideramo-la, até agora, como fundo de acumulação. Na verdade, ela é ambas as coisas ao mesmo tempo. Uma parte da mais-valia é consumida como renda, outra parte é consumida como capital ou acumulada” (MARX, 2006, pág. 689).

essa propriedade sobre o trabalho passado não-pago a condição para o capitalista apropriar-se do trabalho vivo em escala crescente:

Voltemos a nosso exemplo. (...) O capital primitivo de 10.000 libras esterlinas produz mais-valia de 2.000 libras que é capitalizada. O novo capital de 2.000 libras produz mais-valia de 400 libras; esta quantia, por sua vez capitalizada, transformada em um segundo capital adicional, produz nova mais-valia de 80 libras; e assim por diante. (...) O capital primitivo era constituído pela antecipação de 10.000 libras esterlinas. Como o obteve o seu possuidor? Os corifeus da economia política respondem unanimemente: com seu próprio trabalho e o de seus antepassados. E essa suposição parece ser realmente a única que se harmoniza com as leis da produção de mercadorias. (...) Mas a coisa é totalmente diversa com o capital adicional de 2.000 libras. Sabemos precisamente como ele se originou. É mais valia- capitalizada. Desde a origem, não contém ela nenhuma partícula de valor que não derive de trabalho alheio não-pago. (...) Quando o capital adicional emprega o trabalhador que o produziu, tem este de continuar a aumentar o valor do capital original e, além disso, de comprar a restituição do produto de seu trabalho anterior com mais trabalho do que aquele que o produto custou. (...) Patenteia-se aí que a única condição para o capitalista apropriar-se do trabalho vivo não- pago em escala crescente é a propriedade sobre trabalho passado não- pago. Quanto mais o capitalista tiver acumulado, mais poderá acumular (MARX, 2006, pág. 679-681).

Desse modo, transmuta-se o direito de propriedade privada em direito de apropriação do trabalho alheio. Marx é claro quanto a essa transmutação:

A mais-valia que constitui o capital adicional número I resulta da compra da força de trabalho por uma parte do capital original, compra que se enquadra nas leis da troca de mercadorias e que, encarada juridicamente, pressupõem livre disposição por parte do trabalhador de suas próprias faculdades e, do lado do possuidor do dinheiro e das mercadorias, livre disposição sobre os valores que lhe pertencem. O capital adicional número II resulta do número I, sendo, portanto, a conseqüência da relação anterior. Cada transação particular corresponde sempre à lei da troca de mercadorias, comprando sempre o capitalista a força de trabalho e vendendo-a sempre o trabalhador, e admitiremos que pelo valor real. Nessas condições, é evidente que o direito de propriedade privada, baseado sobre a produção e a circulação das mercadorias, se transmuta em seu oposto, em virtude de sua própria dialética interna, inexorável. No início, havia uma troca de equivalentes. Depois, a troca é apenas aparente: a parte do capital que se troca por força de trabalho é uma parte do produto do trabalho alheio do qual o capitalista se apropriou sem compensar com um equivalente; além disso, o trabalhador que produziu essa parte do capital tem de reproduzi-la, acrescentando um excedente. A relação de troca entre capitalista e trabalhador não passa de uma simples aparência que faz parte do processo de circulação, mera

forma, alheia ao verdadeiro conteúdo, e que apenas o mistifica. A forma é a contínua compra e venda da força de trabalho. O conteúdo é o capitalista trocar sempre por quantidade maior de trabalho vivo uma parte do trabalho alheio já materializado, do qual se apropria ininterruptamente, sem dar a contrapartida de um equivalente. Originalmente, o direito de propriedade aparecia fundamentado sobre o próprio trabalho. Essa suposição era pelo menos necessária, uma vez que se confrontam possuidores de mercadorias com direitos iguais, e o único meio de que uma pessoa dispõe para apropriar-se de mercadoria alheia é alienar a própria, e estas só podem ser produzidas pelo trabalho. Agora, do lado do capitalista, a propriedade revela-se o direito de apropriar-se de trabalho alheio não-pago ou do seu produto e, do lado do trabalhador, a impossibilidade de apropriar-se do produto de seu trabalho. A dissociação entre a propriedade e o trabalho se torna conseqüência necessária de uma lei que, claramente, derivava da identidade existente entre ambos (MARX, 2006, pág. 681-682 – grifos do autor).

Após proferir essas palavras, Marx frisa o fato de que a apropriação do trabalho alheio tal como sucede no modo de produção capitalista não contraria, mas resulta das primitivas leis da produção mercantil. Retomando a sequência dos eventos que acarreta a acumulação capitalista, Marx aponta a concordância da relação estabelecida entre o trabalhador e o capitalista com as leis de troca: o primeiro vende sua força de trabalho e recebe o seu valor, alienando, assim, o valor-de-uso de sua mercadoria, o segundo, por sua vez, compra a força de trabalho, beneficiando-se do seu valor-de-uso. A força de trabalho transforma os meios de produção pertencentes ao capitalista, resultando em um produto cujo valor corresponde à soma daquele que foi transferido dos meios de produção pelo trabalho, com aquele produzido pelo próprio trabalho. No valor do produto, está o equivalente ao valor da força de trabalho e uma mais-valia, resultando essa mais-valia do fato de que o valor da força de trabalho adquirida por um determinado espaço de tempo detém menos valor do que o criado com o seu emprego. Porém, o trabalhador recebeu em pagamento o valor-de-troca de sua força de trabalho, alienando, por isso, o seu valor-de-uso, o que ocorre em qualquer relação de compra e venda. Tendo recebido o trabalhador o valor equivalente à sua mercadoria, respeitou-se a lei da troca, que nada diz respeito sobre o uso das mercadorias adquiridas:

A circunstância de essa mercadoria especial, a força de trabalho, possuir o valor-de-uso peculiar de fornecer o trabalho e, portanto, criar valor em nada altera a lei geral da produção de mercadorias. Se a soma de valores adiantada em salários, além de produzida no produto, é acrescida de uma mais-valia, não provém isto de um logro ao vendedor, que recebeu o valor de sua mercadoria, mas do emprego que o comprador fez dessa mercadoria. (...) A lei de troca pressupõe

igualdade apenas para os valores-de-troca das mercadorias que se intercambiam. Pressupõe mesmo diversidade entre seus valores-de- uso, e nada tem a ver com o emprego delas, que só começa depois de concluído o negócio49 (MARX, 2006, pág. 682-683).

Considerando a inversão do direito de propriedade em direito de apropriação capitalista no contexto expositivo de “O Capital”, percebemos, mais uma vez, o caráter negativo e totalizador do método de exposição empregado por Marx: são negadas ou superadas determinadas assertivas presentes na obra, cujo reflexo se devia a uma perspectiva unilateral do modo de produção capitalista na medida em que as perspectivas unilaterais são gradativamente totalizadas e, assim, igualmente negadas. Após explicitar a inversão do direito de propriedade, Marx reafirma a importância de seu procedimento totalizador, mais especificamente, da necessidade de compreendermos o modo de produção capitalista considerando o fluxo de sua renovação e atentarmos à relação estabelecida entre as classes:

Na verdade, a coisa muda inteiramente de aspecto quando observamos a produção capitalista no fluxo ininterrupto de sua renovação e, em lugar do capitalista isolado e do trabalhador isolado, consideramos a totalidade, a classe capitalista e, diante dela, a classe trabalhadora. Mas, desse modo, aplicaríamos um padrão de medida que é totalmente estranho à produção de mercadorias.

Após negar a compatibilidade entre o seu padrão de medida e àquele presente na sociedade produtora de mercadorias, Marx considera a relação e, assim, a percepção dos homens presentes na esfera do mercado, segundo a qual, a relação “compra e venda” diz respeito a uma relação entre indivíduos e não entre classes. Desse modo, Marx não apenas compatibiliza a esfera do mercado a certo tipo de percepção social, mas também

49 Mencionando Rosa Luxemburgo, que afirma ser a “inversão do direito de propriedade” uma “obra-

prima da dialética histórica”, Rosdolsky acrescenta, clarificando o procedimento propriamente dialético: “o caráter peculiar da mercadoria força de trabalho — que, como valor, representa apenas seus custos de produção, mas como valor de uso é fonte de criação de novo valor — possibilita que o intercâmbio entre o trabalhador e o capitalista respeite as leis do intercâmbio de mercadorias e, simultaneamente, entre em contradição com essas mesmas leis; que este, o mais importante de todos os atos de intercâmbio, desemboque de fato na apropriação de trabalho alheio sem intercâmbio, embora mantenha a “aparência do intercâmbio””. O estudioso prossegue afirmando algo interessante, ao considerarmos “O Capital” como uma obra cuja exposição apresenta uma teoria sobre a superação do modo de produção capitalista: “trata-se, diz Marx, de uma “aparência necessária”, pois a produção capitalista, como produção de mercadorias, pressupõem as leis do intercâmbio de mercadorias” (ROSDOLSKY, 2001, pág. 222). Ora, essas leis que consistem na troca de equivalentes e no direito à propriedade sobre o próprio trabalho não são apenas invertidas pela dialética de Marx, mas deixam de ser reconhecidas pela própria classe trabalhadora em função do contraste entre a sua situação e a riqueza da classe burguesa, tal como será melhor esclarecido.

aponta propiciar essa esfera uma percepção ilusória a respeito do modo de produção capitalista, legitimando, desse modo, a crença no direito de propriedade:

Na produção mercantil, confrontam-se vendedor e comprador, independentes entre si. Suas relações recíprocas cessam no mesmo dia em que acaba o contrato que fizeram. Se a transação se repetir, será em virtude de novo contrato, que nada tem a ver com o precedente, e só uma casualidade levará o mesmo comprador e o mesmo vendedor a se encontrarem novamente. (...) Enquanto se observam as leis da troca em cada ato de troca isoladamente considerado, pode o modo de apropriação experimentar uma transformação total sem que se fira de qualquer modo o direito de propriedade inerente à produção de mercadorias. Esse direito vigora não só na época inicial, em que o produto pertence a quem o produz e em que esse produtor, trocando equivalente por equivalente, só pode enriquecer-se com o próprio trabalho, esse direito vigora também no período capitalista, em que a riqueza social, em proporção cada vez maior, torna-se propriedade daqueles que estão em condições em apropriar-se continuamente de trabalho não-pago50 (MARX, 2006, pág. 684-685).

O momento é propício para considerarmos o desenvolvimento expositivo de “O Capital” paralelamente ao desenvolvimento da consciência da classe trabalhadora. Tal como havia explicitado, os quatro primeiros capítulos de “O Capital” estão limitados à esfera da circulação e, tal como pode-se perceber, são suas assertivas compatíveis à percepção ilusória propiciada por essa esfera: a relação de compra e venda não é considerada como uma relação entre classes, mas entre indivíduos, que são julgados,

50 Tal como aponta Rosdolsky, clarificando o processo expositivo-negativo de “O Capital”, Marx capta

uma conexão entre o modo de apropriação da economia mercantil simples e o modo de apropriação capitalista em função do seu método dialético e do seu saber histórico, e isso, apesar de não discorrer sobre a economia mercantil simples em “O Capital”. Compreendendo as mencionadas formas econômicas como uma unidade contraditória, Marx pensa que a interversão das leis de apropriação tal como ocorre no modo capitalista de produção não representa uma negação completa, mas a sua última manifestação, sustentado, assim, uma negação dialética. Mesclando as suas palavras com as do próprio Marx, Rosdolsky afirma: “Portanto, a inversão da lei de apropriação decorre do fato de que “a última etapa do intercâmbio livre é o intercâmbio da força de trabalho como mercadoria” (MARX, “Grundrisse”, pág. 566 apud ROSDOLSKY, 2001, pág. 224). “A partir de então, quando se generaliza a produção de mercadorias e ela se transforma na forma típica da produção, [...] quando todos os produtos são produzidos para serem vendidos e quando toda riqueza produzida flui pelos canais da circulação — só a partir desse momento, quando o trabalho assalariado constitui sua base, a produção mercantil se impõe à sociedade como um todo, e também nesse momento desabrocham todas as suas potencialidades ocultas” (MARX, “O Capital”, pág. 224 apud ROSDOLSKY, 2001, pág. 224). Não cabe, pois, nenhuma surpresa diante do fato de que o pleno desenvolvimento da produção de mercadorias, realizado “segundo suas leis imanentes”, conduz a resultados que contradizem (e invertem) o modo de apropriação que dela resulta. Todavia, o processo de circulação, “tal como aparece na superfície da sociedade, não conhece outro modo de apropriação” que não seja o intercâmbio de equivalentes. Por isso, é necessário “deduzir do desenvolvimento do próprio valor de troca” (MARX, “Grundrisse”, pág. 904 apud ROSDOLSKY, 2001, pág. 224) tanto este modo de apropriação como as leis que acabam por contradizê-lo. (O mesmo ocorre com a lei do valor, que de um lado parece já não mais vigorar no modo de produção capitalista, mas, de outro, pressupõe precisamente este modo de produção para tornar-se plenamente válida)” (ROSDOLSKY, 2001, pág. 224).

por sua vez, como livres, iguais e proprietários do produto do seu próprio trabalho. Ao ser a exposição de “O Capital” direcionada à esfera da produção, compreende-se que o trabalhador que já antevia seus sofrimentos após a venda da sua força de trabalho torna- se impelido a se reconhecer e a se unir como classe social, e isso, sob pena de sucumbir à exploração a que é submetido. Essa situação de acirrada exploração, expressa, em um primeiro momento, pelo prolongamento da jornada de trabalho e, posteriormente, por sua intensificação, representa a negação da ilusão de igualdade e de liberdade entre os homens, assim como outros fatores produzidos pelo próprio modo de produção capitalista, tal como a contratação de crianças e o contraste entre a riqueza do capitalista e a situação do trabalhador. No que se refere ao direito da propriedade privada, esse aparenta ser igualmente afrontado pelo fluxo da experiência da classe trabalhadora, pelo contraste da atividade constante e da situação da classe trabalhadora em relação à burguesia que sustenta, que não trabalha e que se enriquece, seja em termos absolutos ou relativos.