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CAPÍTULO XXXVII Dos milagres e seu uso

CAPÍTULO XXVI Das leis civis

CAPÍTULO XXXVII Dos milagres e seu uso

Entende-se por milagres as obras admiráveis de Deus, e, portanto, chama-se-lhes também maravilhas. E como na maior parte dos casos são feitos para confirmar seus mandamentos, em circunstâncias onde sem eles os homens seriam capazes de ter dúvidas (seguindo seu raciocínio natural privado) sobre qual é seu mandamento, e qual não é, eles são geralmente chamados nas Sagradas Escrituras sinais, no mesmo sentido em que são chamados pelos latinos ostenta e portento, por mostrarem e anunciarem o que o Altíssimo vai fazer acontecer.

Portanto, para entender o que é um milagre é preciso primeiro entender quais são as obras perante as quais os homens se espantam e que chamam admiráveis. E em qualquer circunstância há apenas duas coisas perante as quais os homens se espantam. Uma são as coisas estranhas, quer dizer, de natureza tal que coisa semelhante nunca aconteceu, ou só muito raramente. A outra são as coisas que, depois de acontecidas, não podemos imaginar que tenham ocorrido por meios naturais, mas apenas imediatamente pela mão de Deus.

Mas quando vemos para tal a possibilidade de uma causa natural, por mais raro que tenha sido tal acontecer, ou se tal tiver acontecido muitas vezes, mesmo que seja impossível imaginar suas causas naturais, deixamos de nos espantar e de considerar tal fato um milagre.

Portanto, se um cavalo ou uma vaca falassem seria um milagre, porque ao mesmo tempo a coisa seria estranha e a causa natural seria difícil de imaginar. E o mesmo seria se víssemos um estranho desvio da natureza na criação de alguma nova forma de criatura viva. Mas quando um homem ou outro animal engendra seu semelhante, embora neste caso não saibamos mais como tal é feito do que no outro, não se trata de um milagre, porque é habitual. De maneira semelhante, se um homem se metamorfoseasse em pedra, ou numa coluna, seria um milagre, porque seria estranho. Mas, se um pedaço de madeira assim se transformasse, como vemos isso muitas vezes, tal não seria um milagre. Todavia, não sabemos através de que intervenção de Deus isso acontece, tanto num caso quanto no outro.

0 primeiro arco-íris que foi visto no mundo foi um milagre, porque foi o primeiro, e consequentemente era estranho. E serviu como um sinal de Deus, colocado no céu, para garantir a seu povo que não haveria mais destruição universal do mundo pelas águas. Mas atualmente, como é freqüente, não é um milagre nem para os que conhecem suas causas naturais, nem para os que não as conhecem. Por outro lado, há muitas obras raras produzidas pela arte do homem, mas quando sabemos que foram feitas, visto que sabemos também através de que meios foram feitas, não as consideramos milagres, pois não são forjadas imediatamente pela mão de Deus, e sim através da mediação do engenho humano.

Além do mais, dado que o espanto e a admiração são conseqüência do conhecimento e experiência de que os homens são dotados, e que uns o são mais e outros o são menos, segue-se que a mesma coisa pode ser milagre para um e não o ser para outro. Acontece assim que homens ignorantes e supersticiosos consideram grandes maravilhas as mesmas obras que outros homens, sabendo que elas derivam da natureza (que não é obra extraordinária, mas obra normal de Deus), não admiram de modo algum. Por exemplo, os eclipses do Sol e da Lua que foram considerados obras sobrenaturais pelas gentes do vulgo, embora houvesse outros capazes, a partir de suas causas naturais, de prever a hora exata em que eles iam ocorrer. Ou então quando alguém, por confederação e secreta inteligência, tomar conhecimento das ações privadas de um homem ignorante e descuidado, e lhe disser o que ele fez no passado, isso parecer-lhe-á uma coisa miraculosa; mas entre os homens sábios e cautelosos não é fácil fazer milagres como esse.

Por outro lado, faz parte da natureza do milagre que ele sirva para granjear crédito aos mensageiros, ministros e profetas de Deus, a fim de que os homens possam saber que eles foram chamados, enviados e empregados por Deus, e fiquem assim mais inclinados a obedecer-lhes. Portanto, embora a criação do mundo, e depois a destruição de todas as criaturas vivas no dilúvio universal, fossem obras admiráveis, apesar disso não é costume chamar-lhes milagres, porque não foram feitas para granjear crédito a qualquer profeta ou outro ministro de Deus. Por mais admirável que seja qualquer obra, a admiração não se deve ao fato de ela ter podido ser feita, porque os homens naturalmente acreditam que o Todo-Poderoso pode fazer todas as coisas, mas ao de ela ser feita devido à oração ou à palavra de um homem. Mas as obras de Deus no Egito, pela mão de Moisés, foram propriamente milagres, porque foram feitas com a intenção de levar o povo de Israel a acreditar que Moisés não fora até eles por qualquer desígnio dependente de seu próprio interesse, e sim como enviado de Deus. Assim, depois que Deus lhe ordenou que libertasse os israelitas da servidão do Egito, quando disse: Eles não me acreditarão, e dirão que o Senhor não me apareceu, Deus deu a Moisés o poder de transformar numa serpente a vara que tinha na mão, e de mais uma vez voltar a transformá-la numa vara, e o de ao pôr a mão em seu próprio peito fazê-lo leproso, e de novo ao tirá-la deixá-lo intacto, a fim de levar os filhos de Israel a acreditar (como se vê no versículo 5) que o Deus de seus pais havia aparecido a ele. E como se isso não fosse suficiente deu-lhe o poder de transformar suas águas em sangue. E depois de ele ter realizado estes milagres perante o povo diz-se (versículo 41) que eles o acreditaram. Não obstante, com medo de Faraó, eles não ousavam ainda obedecer-lhe. Portanto as outras obras que foram realizadas para derramar pragas sobre Faraó e os egípcios tendiam todas para levar os israelitas a acreditar em Moisés, e eram milagres propriamente ditos. De maneira semelhante, se examinarmos todos os milagres feitos pela mão de Moisés c dos restantes profetas, até ao cativeiro, assim como os de nosso Salvador e depois os dos apóstolos, veremos que seu fim foi sempre o de obter ou confirmar a crença de que eles não eram movidos por intenções pessoais, e que pelo contrário eram enviados de Deus. Podemos além disso observar que o objetivo dos milagres nunca foi fazer surgir a crença universalmente em todos os homens, tanto nos eleitos como nos réprobos, mas apenas nos eleitos, quer dizer, naqueles que Deus determinara que deveriam tornar-se seus súditos. Porque essas miraculosas pragas do Egito não tinham como fim a conversão de Faraó, pois Deus havia dito antes a Moisés que ia endurecer o coração de Faraó, para que ele não deixasse o povo partir, e quando ele finalmente o deixou partir não foi porque os milagres o tivessem persuadido, mas porque as pragas a tal o tinham forçado.

Assim, também de nosso Salvador está escrito (Mt 13,58) que ele não realizou muitos milagres em seu próprio país por causa da descrença de seus habitantes, e além disso, em Mc 6,5, em vez de não realizou muitos está escrito não podia realizar nenhum. Não foi porque lhe faltasse o poder para tal, pois dizer isto seria blasfemar contra Deus, nem que os milagres não tivessem o fim de converter a Cristo homens incrédulos, pois a finalidade de todos os milagres de Moisés, dos profetas, de nosso Salvador e de seus apóstolos era acrescentar homens à Igreja. Foi porque a finalidade de seus milagres era acrescentar à Igreja, não todos os homens, mas os que deviam ser salvos, quer dizer, os eleitos por Deus. Dado que nosso Salvador foi enviado por seu Pai, não lhe era possível usar seu poder na conversão daqueles que seu Pai havia rejeitado. Aqueles que, ao expor esta passagem de São Marcos, dizem que a frase ele não podia é equivalente a ele não queria fazem-no sem se apoiar em qualquer exemplo da língua grega (na qual não queria se usa às vezes em lugar de não podia, no caso de coisas inanimadas, destituídas de vontade; mas nunca não podia em lugar de não queria), e assim colocam um obstáculo diante dos cristãos mais débeis, como se Cristo só pudesse fazer milagres entre os crédulos.

A partir do que aqui estabeleci, quanto à natureza e uso dos milagres, podemos definir um milagre como uma obra de Deus (além de sua intervenção através da natureza, determinada na criação) feita para tornar manifesto a seus eleitos a missão de um ministro extraordinário enviado para sua salvação.

E desta definição podemos inferir, em primeiro lugar, que em todos os milagres a obra não é um efeito de qualquer virtude do profeta, pois é um efeito da intervenção imediata de Deus; quer dizer, Deus realiza-a sem usar o profeta como causa subordinada.

Em segundo lugar, que nenhum demônio, anjo ou outro espírito criado pode fazer um milagre. Pois deve ser ou em virtude de alguma ciência natural ou por encantamento, quer dizer, virtude das palavras. Porque se os encantadores o fazem por seu próprio poder independente é porque há algum poder que não deriva de Deus, coisa que todos os homens recusam; e se eles o fazem por um poder que Lhes foi dado, então não se trata de obra feita pela intervenção imediata de Deus, mas por sua intervenção natural, e consequentemente não se trata de um milagre.

Há alguns textos das Escrituras que parecem atribuir o poder de realizar maravilhas (iguais a alguns daqueles milagres imediatos realizados pelo próprio Deus) a certas artes de magia e encantamento. Por exemplo, quando lemos que, depois que a vara de Moisés, espetada no chão, se transformou numa serpente, os magos do Egito fizeram o mesmo mediante seus encantamentos; e que depois de Moisés ter transformado em sangue as águas dos rios, regatos, tanques e lagos do Egito, os magos também fizeram o mesmo com seus encantamentos; e que depois de Moisés, com o poder de Deus, ter enchido de rãs a terra, os magos também fizeram o mesmo com seus encantamentos, e encheram de rãs a terra do Egito; não é natural, depois disto, atribuir milagres aos encantamentos, quer dizer, à eficácia do som das palavras, e pensar que isso está perfeitamente provado por esta e outras passagens? E contudo não há qualquer passagem das Escrituras que nos diga o que é um encantamento. Portanto, se um encantamento não é, como muitos pensam, a realização de estranhos efeitos com feitiços e palavras, e sim impostura e ilusão, conseguida através de meios vulgares, e tão longe de ser sobrenatural que os impostores, para fazê-lo, precisam menos do estudo das causas naturais do que da vulgar ignorância, estupidez e superstição do gênero humano; esses textos que parecem consagrar o poder da magia, da feitiçaria e dos encantamentos devem necessariamente ter um sentido diferente daquele que à primeira vista parecem ter.

Porque é perfeitamente evidente que as palavras só têm efeito sobre aqueles que as compreendem, e neste caso têm o único efeito de significar as intenções ou paixões de quem fala, produzindo assim no ouvinte a esperança, o medo, ou outras paixões e concepções. Portanto, quando a vara pareceu tornar-se uma serpente, ou as águas tornaram-se sangue, ou quando qualquer outro milagre pareceu realizar-se por encantamento, se isso não foi para edificação do povo de Deus, nem a vara, nem a água, nem qualquer outra coisa foi encantada, quer dizer, afetada pelas palavras, mas apenas o espectador. Assim, todo o milagre consistiu apenas nisto, que o encantador enganou alguém, o que não é milagre algum, mas coisa muito fácil de fazer.

Porque é tal a ignorância e a tendência para o erro comum a todos os homens, mas especialmente aos que não têm muito conhecimento das causas naturais, e da natureza e interesses dos homens, que são inúmeras e fáceis as maneiras de enganá-los. Que reputação de poder miraculoso, antes de se saber que havia uma ciência do curso das estrelas, não poderia ter adquirido alguém que tivesse anunciado ao povo a hora ou o dia em que o Sol iria escurecer? 0 malabarista, com o manejo de suas taças e outros objetos, se tal arte não fosse hoje em dia vulgarmente praticada, levaria a pensar que suas maravilhas são feitas graças ao poder do diabo, pelo menos. Quem adquirir a prática de falar contendo a respiração (os que nos tempos antigos se chamavam ventriloqui), fazenda assim que a fraqueza de sua voz pareça provir, não da fraca impulsão dos órgãos da fala, mas da distância do lugar, é capaz de fazer muita gente acreditar que se trata de uma voz do

céu, sejam quais forem as coisas que diga. É para um homem hábil não é difícil depois de informar-se dos segredos e confissões familiares que normalmente uma pessoa faz a outra, sobre suas ações e aventuras passadas, voltar a contar essas coisas; e apesar disso houve muitas que, mediante esses arti6cios, adquiriram a reputação de adivinhos. Seria demasiado longo enumerar as diversas espécies desses homens a quem os gregos chamavam thaumaturgi, quer dizer, capazes de coisas maravilhosas; mas tudo o que eles fazem, fazem-no apenas graças a sua habilidade. E se examinarmos as imposturas conseguidas através da cumplicidade, não há nada, por mais impossível que seja de fazer, que seja impossível de acreditar. Porque dois homens que conspirarem para um se fingir de coxo e o outro fingir que o cura com um feitiço serão capazes de enganar a muitos, mas se muitos conspirarem, um para se fingir de coxo, outro para fingir que o cura, e os restantes para servir de testemunhas, serão capazes de enganar a muitos mais.

Contra esta tendência do gênero humano para acreditar demais em pretensos milagres não há melhor precaução, e creio mesmo que não existe outra, do que a que Deus prescreveu, primeiro por Moisés (conforme já disse no capítulo anterior), no início do capítulo 13 e no final do capítulo 18 do Deuteronômio: que não aceitemos como profetas os que ensinam uma religião diferente da estabelecida pelo lugar-tenente de Deus (que nesse tempo era Moisés), nem aqueles que, embora ensinem essa religião, não vejam confirmadas suas predições. Portanto, Moisés no seu tempo, e Aarão e seus sucessores no seu tempo, e o soberano governante do povo de Deus, abaixo do próprio Deus, quer dizer, o chefe da Igreja em cada época, devem ser consultados sobre a doutrina que estabeleceram, antes de dar-se crédito a um pretenso milagre ou profeta. E quando foi feita uma coisa que se pretende ser um milagre, é preciso que a vejamos fazer, e que usemos todos os meios possíveis para verificar se realmente foi feita; e não apenas isto, mas se se trata de uma coisa que ninguém é capaz de fazer com seu poder natural, e para a qual seja indispensável a intervenção imediata de Deus. Também quanto a isto devemos recorrer ao lugar-tenente de Deus, a quem submetemos nossos julgamentos privados em todos os casos duvidosos. Por exemplo, se alguém pretender que, depois de pronunciar algumas palavras sobre um pedaço de pão, Deus imediatamente fez que ele deixasse de ser pão, passando a ser um Deus, ou um homem, ou ambos, e não obstante ele continuar como sempre com a aparência de pão, não há razão para qualquer pessoa acreditar que isso se tenha realizado, nem consequentemente para ter temor a esse alguém, até perguntar a Deus, através de seu vigário ou lugar-tenente, se isso foi feito ou não. Se este disser que não, segue-se o que disse Moisés (Dt 18,22); ele disse-o presunçosamente, e não deveis temê-lo. Se disser que sim, não devemos negá-lo. E também se não virmos um milagre, mas apenas ouvirmos falar dele, devemos consultar a Igreja legítima, quer dizer, o chefe legítimo desta, sobre até que ponto devemos dar crédito a quem o contou. E este é sobretudo o caso dos que hoje em dia vivem sob a autoridade de soberanos cristãos. E em nosso tempo não ouvi falar de um único homem que tenha visto qualquer dessas obras maravilhosas, feita pelo encantamento, ou palavra, ou prece de alguém, que seja considerada sobrenatural pelos que são dotados de uma razão um pouco mais que medíocre. E o problema não é mais o de saber se o que vemos fazer é um milagre, ou se o milagre de que ouvimos falar ou sobre o qual lemos é um fato real, e não um ato da língua ou da pena, e sim, em termos simples, se o relato é uma verdade ou uma mentira. E quanto a esse problema nenhum de nós deve aceitar como juiz sua razão ou consciência privada, mas a razão pública, isto é, a razão do supremo lugar-tenente de Deus. E sem dúvida já o escolhemos como juiz, se já lhe demos um poder soberano para fazer tudo quanto seja necessário para nossa paz e defesa. Um particular tem sempre a liberdade (visto que o pensamento é livre) de acreditar ou não acreditar, em seu foro íntimo, nos fatos que lhe forem apresentados como milagres, conforme veja qual o beneficio que sua crença pode acarretar para os que o afirmam ou negam, e conjeturando a partir daí se eles são milagres ou mentiras. Mas quando se trata da profissão pública dessa fé a razão privada deve submeter-se à razão pública, quer dizer, ao lugar-tenente de Deus. Mas quem é o lugar-tenente de Deus e chefe da Igreja é coisa que será examinada adiante, em lugar adequado.