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TERCEIRA PARTE DO ESTADO CRISTÃO

CAPÍTULO XXVI Das leis civis

TERCEIRA PARTE DO ESTADO CRISTÃO

Dos princípios da política cristã

Até aqui deduzi os direitos do poder soberano e os deveres dos súditos unicamente dos princípios da natureza, que a experiência tenha mostrado serem verdadeiros, ou dos que o consentimento (relativamente ao uso das palavras) assim tenha tornado. Quer dizer, partindo da natureza do homem, que conhecemos através da experiência, e de definições (das palavras que são essenciais para todo raciocínio político) que são universalmente aceites. Mas quanto ao que vou tratar em seguida, isto é, a natureza e direitos de um Estado cristão, onde muita coisa depende das revelações sobrenaturais da vontade de Deus, o fundamento de meu discurso deverá ser, não apenas a palavra natural de Deus, mas também sua palavra profética.

Não obstante, não convém renunciar aos sentidos e à experiência, nem àquilo que é a palavra indubitável de Deus, nossa razão natural. Pois foram esses os talentos que ele pôs em nossas mãos para vivermos, até o retorno de nosso abençoado Salvador, portanto não são para serem envoltos no manto de uma fé implícita, mas para serem usados na busca da justiça, da paz e da verdadeira religião. Pois embora haja na palavra de Deus muitas coisas que estão acima da razão, quer dizer, que não podem ser demonstradas nem refutadas pela razão natural, não há nessa palavra nada contrário a ela. E quando assim parece ser a culpa é de nossa inábil interpretação, ou de nosso incorreto raciocínio.

Portanto, quando alguma coisa aí escrita se mostra demasiado árdua para nosso exame, devemos propor-nos cativar nosso entendimento às palavras, e não ao esforço de peneirar uma verdade filosófica por intermédio da lógica, a respeito daqueles mistérios que não são compreensíveis, e aos quais não se aplica qualquer regra da ciência natural. Pois com os mistérios de nossa religião se passa o mesmo que com as pílulas salutares para os doentes, que quando são engolidas inteiras têm a virtude de curar, mas quando mastigadas voltam em sua maior parte a ser cuspidas sem qualquer efeito.

Mas o cativeiro de nosso entendimento não deve ser interpretado como uma submissão da faculdade intelectual à opinião de outrem, e sim à vontade de obedecer, quando a obediência é devida. Porque os sentidos, a memória, o entendimento, a razão e a opinião não podem por nós ser mudados à vontade, pois são sempre necessariamente tais como no-los sugerem as coisas que vemos, ouvimos e consideramos. Não são portanto efeitos de nossa vontade, é nossa vontade que é efeito deles. Cativamos nosso entendimento e nossa razão quando nos abstemos de contradizer, quando falamos da maneira como a legítima autoridade nos ordena, e quando vivemos conformemente a tal. O que em suma é confiança e fé, que depositamos naquele que fala, embora o espírito seja incapaz de conceber qualquer espécie de noção a partir das palavras proferidas.

Quando Deus fala ao homem, tem que ser ou imediatamente ou através da mediação de outro homem, ao qual ele próprio haja antes falado imediatamente. Qual a maneira como Deus fala ao homem imediatamente é coisa que pode ser perfeitamente entendida por aqueles a quem assim falou, mas qual a maneira como o mesmo deve ser entendido dos outros é coisa difícil, se não impossível de saber. Pois se alguém pretender que Deus lhe falou sobrenaturalmente, e imediatamente, e se eu de tal duvidar, não me é fácil ver que argumento pode ele apresentar para obrigar-me a acreditá-lo. Ë certo que, se ele for meu soberano, pode obrigar-me à obediência, impedindo-me de declarar, por atos ou palavras, que não o acredito, mas não pode obrigar-me a pensar de maneira diferente daquela de que minha razão me convence. Mas alguém que não tenha sobre mim tal autoridade e pretenda o mesmo não terá nada capaz de impor seja a crença, seja a obediência.

Porque dizer que Deus falou a alguém nas Sagradas Escrituras não é o mesmo que dizer que Deus lhe falou imediatamente, e sim através da mediação dos profetas, ou dos apóstolos, ou da Igreja, da mesma maneira como fala a todos os outros cristãos. Dizer que Deus lhe falou em sonhos não é mais do que dizer que sonhou que Deus lhe falou, o que não é de força a conquistar a crença de ninguém que saiba que os sonhos em sua maioria são naturais, e podem ter origem nos pensamentos anteriores, e que sonhos como esse não passam da manifestação de uma alta estima de si mesmo e de uma insensata arrogância, assim como de uma falsa opinião sobre sua própria piedade, ou outra virtude pela qual julga ter merecido o favor de uma revelação extraordinária. Dizer que teve uma visão, ou que ouviu uma voz, é o mesmo que dizer que sonhou entre o sono e a vigília, pois efetivamente acontece muitas vezes alguém assim tomar seu sonho por uma visão, por não ter reparado bem que estava dormitando. Dizer que fala por inspiração sobrenatural é o mesmo que dizer que sente um ardente desejo de falar, ou alguma alta opinião de si mesmo, para os quais não consegue encontrar uma razão natural e suficiente. De modo que, embora Deus possa falar a alguém através de sonhos, visões, voz e inspiração, ele não obriga ninguém a acreditar que efetivamente assim fez a qualquer um que tenha essa pretensão. Porque, sendo um homem, pode estar enganado e, o que é mais, pode estar mentindo.

Como pode então aquele a quem Deus nunca revelou imediatamente sua vontade (a não ser por intermédio da razão natural) saber quando deve ou não deve obedecer à palavra dos que pretendem ser profetas? Dos quatrocentos profetas aos quais o rei de Israel pediu conselho, a respeito da guerra que fazia contra Ramoth Gilead, só Miquéias era um verdadeiro profeta. O profeta que foi enviado para profetizar contra Jeroboam, embora fosse um verdadeiro profeta, e mediante dois milagres feitos em sua presença mostrasse ser um profeta enviado por Deus, foi apesar disso enganado por outro velho profeta, que o persuadiu a comer e beber com ele, como se fosse uma ordem dada pela boca de Deus. Se um profeta foi capaz de enganar outro, que certeza pode haver de conhecer a vontade de Deus por um caminho que não seja o da razão? Ao que respondo, baseado nas Sagradas Escrituras, que há dois sinais que em conjunto, mas não separadamente, permitem identificar o verdadeiro profeta. Um deles é a realização de milagres, o outro é não ensinar qualquer religião que não a já estabelecida. Separadamente, conforme disse, nenhum deles é suficiente. Se entre vós se erguer um profeta, ou um sonhador de sonhos, que pretenda realizar um milagre, e o milagre acontecer; se ele disser para seguirdes deuses estranhos, aos quais não conheçais, não lhe dareis ouvidos, etc. E esse profeta ou sonhador de sonhos deve ser condenado à morte, pois vos disse para vos revoltardes contra Deus vosso Senhor. Nestas palavras há duas coisas a salientar. Em primeiro lugar, que Deus não aceita que os milagres bastem como argumentos para aceitar a vocação de um profeta; como é o caso no terceiro versículo, eles servem para experimentar a constância de nossa dedicação a Deus. Porque as obras dos feiticeiros egípcios, embora não fossem tão grandes como as de Moisés, mesmo assim eram grandes milagres. Em segundo lugar, que, por maior que seja o milagre, se ele tender a provocar a revolta contra o rei, ou contra aquele que governa em virtude da autoridade do rei, deve pensar-se apenas que quem realizou tal milagre foi enviado para pôr à prova a fidelidade do povo. Porque as palavras vos revoltardes contra Deus vosso Senhor são neste lugar equivalentes a vos revoltardes contra vosso rei. Com efeito, Deus havia-se tornado seu rei por um pacto celebrado no sopé do monte Sinai, e Deus governava-os unicamente por intermédio de Moisés, pois só este falava com Deus, e de vez em quando comunicava ao povo os mandamentos de Deus. De maneira semelhante, Cristo nosso Salvador, depois de ter feito os discípulos reconhecerem-no como o Messias (quer dizer, como o ungido de Deus, que a nação dos judeus dia após dia esperou como seu rei, mas recusou quando ele chegou), não deixou de avisá-los contra o perigo dos milagres. Surgirão, disse ele, falsos Cristos e falsos profetas, e farão grandes maravilhas e milagres, capazes até de seduzir (se tal fosse possível) os próprios eleitos. O que mostra que os falsos profetas podem ter o poder de fazer milagres, e mesmo assim não devemos aceitar sua doutrina como a palavra de Deus. Além disso, São Paulo disse aos Gálatas que, se ele mesmo, ou um anjo do céu, lhes pregasse um outro Evangelho, diferente do que ele pregara, que ele fosse amaldiçoado. Esse Evangelho dizia que Cristo era rei, de modo que toda pregação contra o poder do rei reconhecido, em conseqüência destas palavras, é amaldiçoada por São Paulo. Pois suas palavras eram dirigidas àqueles que, devido a sua pregação, já tinham reconhecido Jesus como o Cristo, quer dizer, como rei dos judeus.

Tal como os milagres sem a pregação da doutrina estabelecida por Deus são argumento insuficiente de uma revelação imediata, assim também o é a pregação da verdadeira doutrina sem a realização de milagres. Porque se um homem que não ensina falsas doutrinas viesse pretender ser um profeta sem mostrar qualquer milagre, de modo algum sua pretensão deveria ser aceite, como é evidente em Dt 18,21s: Se perguntais em vosso coração como saber que a palavra (do profeta) não é aquela que Deus proferiu; se o profeta tiver falado em nome do Senhor, e se tal não for verdade, essa é a palavra que o Senhor não proferiu, e o profeta proferiu- a com o orgulho de seu corarão: não o temais. Mas poderia aqui também perguntar-se: quando o profeta

prediz uma coisa, como podemos saber se ela virá ou não a ocorrer? Porque ele pode predizer uma coisa que só virá a acontecer depois de muito tempo, mais do que o tempo de vida de um homem, ou pode dizer, de maneira indefinida, que tal virá a ocorrer em qualquer momento, e neste caso esse sinal do profeta é inútil. Portanto os milagres que nos obrigam a acreditar num profeta devem ser confirmados por um acontecimento imediato, e não adiado por muito tempo. Fica assim manifesto que o ensino da religião estabelecida por Deus, juntamente com a realização imediata de um milagre, foram os únicos sinais aceites pelas Escrituras como próprios de um verdadeiro profeta, quer dizer, como impondo o reconhecimento de uma revelação imediata, e que nenhum deles por si só é suficiente para obrigar alguém a aceitar o que ele diz.

Portanto, dado que agora não se produzem mais milagres, não resta qualquer sinal que permita reconhecer as pretensas revelações ou inspirações de qualquer indivíduo. E não há obrigação alguma de dar ouvidos a qualquer doutrina, para além do que é conforme às Sagradas Escrituras, que desde o tempo de nosso Salvador substituem e suficientemente compensam a falta de qualquer outra profecia, e a partir das quais, mediante sábia e douta interpretação e cuidadoso raciocínio, podem facilmente ser deduzidos todos os preceitos e regras necessárias para conhecer nosso dever, para com Deus e para com os homens, sem entusiasmo ou inspiração sobrenatural. E é destas Escrituras que vou extrair os princípios de meu discurso, a respeito dos direitos dos que são na terra os supremos governantes dos Estados cristãos, e dos deveres dos súditos cristãos para com seus soberanos. E com esse fim vou falar no capítulo seguinte dos livros, autores, alcance e autoridade da Bíblia.