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4.5) O capital cultural do campo econômico: percepção dedutiva e a indutiva do campo econômico

No documento ricardogervasiobastosvisser (páginas 185-191)

Nesta secção procuraremos investigar como o empresário burguês não empreende mais, como na fase nascente do capitalismo ou então, como as classes populares, se baseando na aventura. A aventura e a inventividade como modos de empreendedorismo em que improviso, risco e visão intuitiva do campo econômico são exclusividade das classes populares (MACIEL, 2014). A pergunta é: se as classes populares empregam este conhecimento intuitivo muitas vezes baseado no “face-a-face” cotidiano com a clientela local, o que caracteriza, portanto, o empresário burguês? O empreendedor das classes dominantes não se vale mais de uma percepção intuitivo- contextual cotidiana do campo econômico, mas de um conhecimento formal-abstrato do mercado capitalista! O conhecimento intelectualista e dedutivo do campo econômico bem com de seus nichos caracteriza não apenas o empresário burguês, mas o alto empregado burguês, que pode, dependendo de sua trajetória (como ficou patente no caso de Fábio) se tornar empresário individual. Estas metamorfoses na trajetória dependem tendencialmente da fase de vida em que se está. O conceito de função de capital do salário apreende tais mudanças na morfologia da trajetória social no campo econômico.

Daniel é o entrevistado com a visão mais abrangente no que tange a percepção do micro-cosmos do campo econômico local e de seu nicho:

“Quem trabalha com isso aqui não pode trabalhar com quantidade, mas com variedade. O cliente chega aqui e pergunta: “Tem manga?” E você diz que não tem, ele vai no vizinho e compra. Tem que ter variedade. (...) Tem que saber quantidade de mercadoria que tem e a quantidade de mercadoria na cidade, você tem que ter uma visão muito

geral. É uma visão muito geral”. (Daniel 32 anos, feirante e comerciante de frutas).

Agora Fábio:

“Tinha dois anos depois de formado (curso de engenharia) e eu já conhecia e sabia que

tinha falta deste material no mercado”. (Fábio, 59 anos, engenheiro e empresário

aposentado).

Dois aspectos saltam aos olhos no caso de Fábio: ele empreende a partir do conhecimento prévio do nicho do campo econômico onde há a demanda (a “falta”). O investimento econômico é primeiramente informado por um conhecimento estratégico- abstrato prévio do mercado e suas chances de lucro. É o que diferencia “conhecer” e ter

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uma “visão geral” em que a finalidade do investimento já está dada de antemão. Os dois desenvolvem, em certo sentido, uma visão espacial do campo econômico, mas Fábio incorporou um capital cultural do campo econômico que o equipa com uma visão do mercado para além da subárea local. Além disso, o capital inicial fruto da poupança sistemática da época em que era alto assalariado lhe confere a liberdade relativa de sua inserção como empresário individual, ou seja, onde vai investir o dinheiro. Para o pequeno comerciante sem capital inicial, resta a luta com os recursos limitados sobre os quais dispõe. A entrada de Fábio no campo econômico como empreendedor já pressupõe o conhecimento formal-abstrato dos espaços mais lucrativos do campo econômico. É uma das razões pelas quais seu trabalho não aparece nem como legitimação hereditária, como em Daniel.

A visão espacial e estratégica do campo econômico configura a possibilidade de previsão mais ou menos estável de um lucro provável. Ele parte de uma visão abstrata e dedutiva de oferta, demanda e empreendimento. O mercado financeiro (ARNOLDI, 2009) é o lugar, onde este conhecimento abstrato do mercado é generalizado para todos os produtos financeiros a fim de calcular o risco e transformar o lucro numa acumulação estável, previsível e exponencial. Ela depende de projeções matemáticas de taxas crescentes de lucro, compromissos sociais protegidos legalmente (dívidas e crédito) e, sobretudo, a canalização da energia humana para o trabalho. Segundo Arnoldi, este conhecimento técnico do mercado trazido pela ciência econômica não implica necessariamente em um maior grau de estabilidade do próprio mercado financeiro. Ele define modelos de previsão matemática galgando o controle e a racionalização do risco para que se possa inclusive precificá-lo. Tal papel é desempenhado pelas agências financeira mundiais.

Ainda que não sejam empresários, Denise e Carlos incorporaram um conhecimento similar ao de Fábio e que, dependendo de contextos de atualização ou do ponto na trajetória individual podem ser aplicados em outras finalidades. As duas profissões envolvem em alguma medida um conhecimento especializado sobre o campo econômico, seja internamente ao empreendimento, seja externamente na medida em que viabilidade do investimento em inovações tecnológicas se torna avaliado:

“(...) não é um banco, mas seria um banco. (...) o seu projeto, vamos dizer, é um projeto de inovação de empresa, é um projeto arriscado e que pode dar errado. Eu como um órgão do Estado que quero fomentar a inovação, vou entrar junto contigo no projeto, oferecendo um juro muito baixo, que é inclusive inferior a inflação. Ou seja, um juro

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negativo pra apoiar esse projeto. (...) A gente vai avaliar o projeto, a gente visita o projeto, a gente acompanha o projeto... A gente vai traçando o projeto (...) a gente tem toda uma metodologia pra avaliar. (...) Eu tenho uma preocupação que esse produto chegue ao mercado. É uma área estratégica. (Denise, 31 anos, engenheira de produção).

Ou Carlos:

Eu trabalho numa empresa de apoio marítimo. Como se fossem embarcações de menor porte que prestam serviço pra plataformas de petróleo, ou seja, fazendo ancoragem das plataformas e toda logística de mantimentos e de óleos, dos navios que podem levar estes materiais até as plataformas e também trazer resíduos. (...) Já trabalhei muito com controle de custos, com relatórios, de fazer controle de orçamento. (Carlos, 30 anos, gerente financeiro).

O empregado assalariado de classe média mantém uma relação direção direta ou indireta com os grandes empreendimentos controlados por sociedades anônimas de ações, seja trabalhando em ocupações no campo burocrático da empresa, seja desenvolvendo e avaliando mercadorias em vanguardas produtivas. O trabalho de Denise envolve a viabilidade da fabricação mercadorias que condensam conhecimento tecnológico, já o de Carlos o controle financeiro e de logística do grande empreendimento. O grande capital constituiu empreendimentos tão diferenciados e com uma dimensão burocrático-administrativa contendo funções tão diferenciadas entre si, que é preciso empregar trabalhadores altamente especializados para fazer o controle dos capitais internos, envolvendo cálculo, aplicativos e a língua escrita. Isto posto, é possível dizer que tanto o Estado quanto grandes empresas se tornam grandes organizações burocráticas. O Batalhador pequeno comerciante faz o controle de seu negócio na maioria das vezes de mentalmente ou com um caderno, o que representa a indiferenciação de seu pequeno empreendimento.

A incorporação desta atitude “intelectualista” no campo econômico baseada no conhecimento especializado se assemelha à comparação que Lévi-Strauss (1962) havia feito entre o “artesão” (bricoleur) e, não por acaso, o engenheiro: não que o bricoleur não classifique e não tenha produza um conhecimento sobre o mundo social e natural circundante, mas a diferença está na ordem do conhecimento e do pensamento. Ele se define somente por sua instrumentalidade, pois os elementos são recolhidos ou conservados em vista do princípio de que estes podem “sempre ser de serventia” O bricoleur permanece limitado à história de cada instrumento e ao poder de utilidade pré- determinado por cada um deles. Neste sentido, o instrumento se configura como um dado e ele está fadado às possibilidades já contidas no utensílio e em seus usos: seu

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universo instrumental é fechado. Portanto, a regra de seu jogo é se arranjar ou executar suas tarefas com um número finito de utensílios e de materiais heteróclitos, pois seu objetivo e a composição de seu trabalho não estão relacionados a um projeto particular, mas é o resultado contingente de todas as ocasiões que permitem renovar e enriquecer o estoque. A ciência do concreto segue à lógica das correspondências ao colecionar os eventos e fenômenos particulares. Sob esta ótica, ela sobrepõe a parte ao todo porque o evento ou o fenômeno detém a primazia sobre o princípio abstrato. Ela elabora explicações ao agenciar elementos (adaptando o diferente), se organizando em torno do evento e não da estrutura, isto é, de uma concatenação de causas e efeitos. O que distancia Fábio dos empreendedores populares é o seu conhecimento mais ou menos consciente da estrutura espacial do campo econômico de modo mais abrangente e não engessado ao mercado local. Ele sabe exatamente o lugar que sua empresa ocuparia no seu ramo do mercado. Sua gráfica era a 5ª maior do Brasil. Isto se confirma, por exemplo, na escolha do ramo do mercado previamente à inserção neste. A ciência do concreto arranja e rearranja os fragmentos uns aos outros, mas não busca um plano abstrato coordenador. A estrutura encadeia estes eventos particulares num intervalo espacial e temporal. Ela confere ordem à percepção imediata e espontânea do mundo e de seu cosmos, que no caso dos Batalhadores é o mercado urbano local (a feira).

O capital cultural estratégico no campo econômico se conforma no caso contrário do improviso Batalhador, inserido em ciclos econômicos de intervalos mais curtos como o diário ou o semanal. Elas formam o alcance das categorias temporais e econômicas dos Batalhadores feirantes. Muito diferente do salário fixo constante mensal ou anual das classes médias estabelecidas. A teoria da classe de renda ignora solenemente esta distinção fundamental, que é ela mesma a forma pela qual as classes sociais agem com o dinheiro no tempo. Sendo assim, o improviso, em função do balanço lábil entre oferta inflacionada e demanda estável, trabalho e posição de classe no campo econômico, se afinam com o conhecimento intuitivo curto-prazista do “artesão do campo econômico”:

“Assim, eu sugiro (pra dona da lojinha) assim, por exemplo, eu to aqui, ai eu digo: olhe o pessoal tá procurando muito isso. A procura, você tem que né? Devido ao que tá procurando né? O que que eles tão procurando? Tá procurando isso. Eu anoto e digo a ela que tá procurando”. (Virgínia, 58 anos, colaboradora numa loja de vestuário feminino).

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“É que eu fico analisando os produtos que as pessoas tão procurando. Chegou uma pessoa, vamos supor assim: “o senhor tem um pente, uma tiara, um lenço...”. Aí aquele que for mais frequente, que as pessoas tiver mais procurando. Aí como eu to com aquele dinheiro de reserva eu vou lá e compro” (José, 55, comerciante no ramo de artesanato, plastificação e Xerox).

A percepção da intuitivo-espontânea da demanda no sub nicho do campo econômico local é a característica marcante nas disposições econômicas das camadas inferiores da nova classe trabalhadora brasileira e está submetida a uma série de fatores como a ausência de uma unidade produtiva industrial ou estoque; condições essenciais para uma estabilização do equilíbrio entre oferta/demanda e posição relativa no campo econômico. Esta racionalização temporal relativa ao lucro e ao fluxo interno de capitais é própria dos médios e dos grandes empreendimentos. Tais burocracias econômicas já exibem uma diferenciação mínima de suas funções internas, empregando o trabalho especializado e intelectual. Ao subirmos na hierarquia dos empreendimentos e da acumulação do capital econômico, percebemos que a presença deste conhecimento indutivo do campo e do capital econômico se distingue do abstrato-dedutivo. Trata-se de um capital cultural especializado conferindo ao agente social uma visão estratégica do campo econômico. Seja para se tornar um alto funcionário do grande empreendimento burguês interligado no mercado financeiro, seja para realmente empreender no campo econômico, este capital cultural técnico prospectivo é condição de acesso ao verdadeiro lucro. Traço similar se reflete na relação com o cliente: o Batalhador lida com o cliente pessoalmente, o empresário burguês, cujo empreendimento já se tornou uma unidade internamente diferenciada e autônoma, impessoaliza a relação com o cliente. Fábio se refere aos seus clientes como “negócios” a serem fechados. Por conseguinte, a interação face-a-face com a clientela se transforma no evento a partir do qual o pequeno comerciante batalhador pode inferir quais posições “estratégicas” tomar em seu sub nicho local, considerando o que “a clientela tá pedindo mais” ou “o que tá vendendo mais”. Esta forma muito comum de percepção do espaço econômico local também se limita, pois impede o desenvolvimento de uma forma de controlar e se impor minimamente como “oferta” temporal- ou espacialmente à demanda. Com isso, a capacidade de se impor num nicho do campo econômico pressupõe o poder relativo de uma empresa, sobretudo, frente aos concorrentes e suas chances de impor condições jurídicas vantajosas no Estado.

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O funcionamento de sua empresa inclui tanto máquinas caras bem como a formação desta dimensão burocrático-estratégica composta por 30 trabalhadores especializados. Um andar do prédio que comprou era ocupado por esta equipe. Os meios de produção e a unidade burocrática são responsáveis pelo distanciamento impessoal do cliente. Esta dimensão burocrática opera tanto na logística interna do negócio capitalista burguês quanto na sua posição estratégica (no sentido de uma acepção intelectualizada e racional em vista dos concorrentes ou parceiros). Ela desempenha deste modo, uma dupla função, tanto na racionalização das funções dos capitais internos, ou seja, aplicando a razão instrumental do cálculo internamente ao empreendimento quanto externamente; enquanto pretensão de se estabelecer como empreendimento dominante no campo econômico. Este último corresponde à concorrência. De acordo com Simmel (1992, p. 306-307), a concorrência economia moderna exibe a destituição de todo e qualquer traço associação pessoal, como ódio direto do concorrente. Entretanto, ele tinha em mente o médio ou grande empreendimento econômico, não o pequeno comércio informal. A legitimação das instituições do campo econômico – as empresas privadas e o Estado moderno – transforma a concorrência, que não é de modo algum espontaneamente livre, em uma luta formal por recursos escassos e o lucro econômico sob a forma de (mais) dinheiro. O papel do Estado moderno e principalmente na esfera jurídica, através da imposição legal através de leis regulamentadoras, procura não apenas regular passivamente, mas é, por um lado, o que constitui propriamente o campo de possibilidades de toda e qualquer ação econômica. Ele pauta a validade social da ação econômica. Um das atribuições mais importantes do Estado moderno na constituição do campo econômico capitalista e na impessoalização da luta de classes (no sentido de canalizar todas as energias intelectuais e corporais dos indivíduos) é legitimar, estabelecer, impor, normalizar o lucro como fim impessoal último do trabalho e da ação econômica. Se pudéssemos complementar a ideia simmeliana inicial do valor de função do dinheiro, diríamos que seu suporte institucional depende da legitimação psicológica, social, jurídica e simbólica do lucro individual e do dinheiro estado final do capital econômico. Assim, a legitimação simbólica do lucro como fim último do campo econômico é apenas passível de compreensão quando se considera que este não é acessível a todos. A concorrência repousa num princípio social individualista enraizado coletivamente. Sua violência simbólica sobre o trabalho social infligindo as necessidades econômicas primárias às classes sociais dominadas na hierarquia do campo consubstancia seu inverso especular.

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Portanto, a acepção de concorrência no campo econômico, cuja legitimação social reflete a sua impessoalidade, compõe o núcleo desta estabilização do conflito nas sociedades competitivas.

4.6) A poupança sistemática como condição de possibilidade da

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