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4.1) Disposições econômicas sob perspectiva da teoria da diferenciação social

No documento ricardogervasiobastosvisser (páginas 155-161)

O desenvolvimento das disposições econômicas depende de fatores muito mais complexos do que simplesmente a posse de dinheiro. Por outro lado, as condições sociais constantes fundamentam as bases para o florescimento de disposições econômicas das classes dominantes. Este questionamento formará o espectro de uma série de comparações que introduziremos a partir do trabalho empírico. Gostaríamos de introduzir três categorias fundamentais para compreensão do que será analisado. A primeira deles compõe na verdade um par: partimos da ideia de que disposições, mais

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do que plurais, como analisou Bernard Lahire, se diferenciam internamente. O conceito de diferenciação social corresponde a um tipo de relação especial entre as partes e o todo, e assim, podemos escapar do potencial fragmentador de um argumento que simplesmente afirma a variação intra-individual das disposições. Esta pluralidade multi- lateral das disposições acontece precisamente porque estas já se diferenciaram, sendo capazes de se desdobrarem em direções diversas. Elas formam como uma teia ou uma “trama” de ações interdependentes. De fato, disposições variam em seus contextos de atualização, e nem sempre são reafirmadas por um princípio universal de transferência. Todavia, disposições sociais também seguem um forte princípio seletivo e hierarquizador diante de contextos de atualização, que por vezes, se impõem de modo brutal. Deste modo, com o conceito de diferenciação social não postulamos um “primado” lógico-formal das sociedades modernas, mas um desdobramento prático. Portanto, ela sedimenta, sobretudo, uma experiência estendida com o tempo social. Isto contribui para avançar uma sociologia disposicional e psicológica que não recaia sobre os problemas do objetivismo (a teoria finalista e total) e muito menos sobre a concepção atomista do subjetivismo liberal. O conceito de diferenciação social apresenta um tipo de encadeamento particular do “todo”, isto é, uma unidade relativa do comportamento e as partes e/ou tendências prováveis de trajetórias sociais. Em Durkheim, esta categoria pode ser mais bem tematizada nas relações nas quais reina a solidariedade orgânica, estruturada pela complementaridade entre as partes. Na solidariedade mecânica domina em contraste, a similaridade enquanto aumentam as chances de conflito real entre estas. Simmel entendia a diferenciação social como uma solução para a competição social direta entre os indivíduos. Estas desempenham funções e cumprem papeis semelhantes entre si.

A este ponto, não podemos esquecer que classes sociais dispõem desigualmente de recursos para diferenciar suas disposições. Elas nos servem aqui de exemplo concreto deste conceito mais geral. As disposições econômicas das classes dominantes

se inclinam à diferenciação porque as ações com o dinheiro se tornam - através da conversão da poupança sistemática em investimento financeiro – relativamente interdependentes entre si. Esta repartição complementar entre os planos de ação

econômicos confere a abertura do uso mais raro do dinheiro sem que isto incorra necessariamente no cancelamento ou no conflito direto com outras estratégias econômicas Em decorrência disso, a ação econômica dominante empresta ao dinheiro o

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contorno de um objeto independente passível de ser utilizado em diversas direções. Abre-se, quando tais condições econômicas florescem, uma região cognitiva e decisória mais abrangente com o capital econômico. Em suma, é possível poupar, consumir bens de luxo, viagens e investir na educação dos filhos. Uma esfera convive ao lado da outra, estabelecendo assim uma rede de ações interdependentes. Isto caracteriza, de modo geral, o habitus econômico dominante. Na raiz deste processo identificamos a emergência de uma esfera cognitiva de decisão com o capital econômico que não se limita a um horizonte temporal mais ou menos restrito, antecedida pelo extensão das categorias de percepção temporais. Com efeito, a formação de uma retaguarda financeira sólida através da poupança sistemática é justamente o fator preponderante na autonomia relativa das práticas financeiras em inúmeras áreas da vida social. Isto explica o motivo pelo qual a poupança burguesa quase nunca está ligada ao rigorismo ou à interdição total de disposições hedonistas ou do consumo: ela pode tornar a ação econômica do consumo relativamente independente das urgências materiais mais imediatas. Por este motivo, são classes sociais que podem “se dar ao luxo”. Deste modo, o consumo pode se tornar igualmente uma esfera relativamente independente da poupança e da retaguarda financeira imediata. Isto esclarece outra questão: por qual razão as classes burguesas desenvolvem uma relação estética e estilizada do consumo. O sentido do gasto com viagens, fortemente presente nele e em entrevistados na Alemanha, assume este contorno. Um quesito fundamental parece comprovar isso: o consumo da viagem como estratégia de reconversão do capital econômico em cultural impõe geralmente um uso não imediato do dinheiro, seja através do crédito, seja exigindo com que o consumidor gaste sua reserva financeira.

Quando as disposições econômicas ainda estão em seu estágio primário e indiferenciado, o desdobramento progressivo de esferas financeiras encontra diversos obstáculos mordazes, seja na presença potencial ou real das urgências econômicas mais imediatas como a fome, seja por motivos diversos ligados a outras estratégias. Em decorrência disso, o uso prospectivo do dinheiro típico das classes dominantes permanece atrofiado, se engessando muitas vezes numa poupança “residual”. A função de capital da renda corresponde a um uso prospectivo do dinheiro. Este é o nosso segundo conceito que carrega em seu bojo duas direções: a) o uso do capital econômico na conversão de outros capitais (como vimos no capítulo 3) através da constituição de um contexto de atualização positivo no desenvolvimento de disposições do estudo,

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escapando e rechaçando do mundo do trabalho socialmente desqualificado; b) na reprodução direta ou indireta do capital econômico. Este é o principal sentido de estratégias econômicas que estendem poupança em investimento financeiro ou da abertura da própria empresa. O que nos interessa aqui não exatamente postular uma oposição mecanicista entre o uso puramente “intelectual” do dinheiro e seu uso “intuitivo” ou “não calculado” ou então, “imediatista”. Este reducionismo estéril não leva em consideração a série de socializações e de introjeções de comportamentos que dão luz às disposições sociais econômicas. O aspecto incorporado, inarticulado e inculcado do passado social é o que nos interessa para compreender sua relação com categorias de pensamento e juízo relativas a estas disposições. Deste modo, não nos apoiamos sobre falsas oposições como “pulsão”/”pensamento” ou “consciente”/ “inconsciente”. Toda forma de pensamento e juízo articulado traz consigo a construção de encadeamentos sócio- e psíquico-afetivos. Na formulação de Simmel sobre a moral kantiana: todo dever (ser) já envolve, em algum nível, a presença de um “querer”. A ação econômica dos Batalhadores também exige certa dose cálculo, mas quase nunca é mediada por um conhecimento especializado, abstrato e legitimado pelas instituições de ensino. Ademais, falta a extensão do cálculo a todas as esferas do uso e não em apenas, enfatizando, assim, seu caráter intermitente e ocasional. De igual modo: não que os Batalhadores feirantes não percebam a sua posição relativa no mercado local, ou seja, da tríade: oferta, demanda e posição relativa. Entretanto, a percepção da demanda não acontece anteriormente à inserção no campo econômico. Nem sempre esta ação depende de um conhecimento prévio e racional. Este aparece de maneira mais pronunciada quando a função de capital da renda tem como direção o acúmulo de mais capital econômico.

O aprendizado do cálculo permite aos entrevistados das classes médias estabelecidas uma vantagem: a dominação abstrata e geral do campo econômico mediada por um conhecimento formal e, sobretudo, estratégico de oferta, demanda e da burocracia empresarial. Ele é mais comum nas frações nas quais se observa maior incidência de profissões liberais. Sem dúvida há a presença do capital de relações pessoais, mas que apenas podem ser efetivados se estas pessoas detêm um conhecimento privilegiado do mercado. Este é espectro central na compreensão deste “capital cultural do campo e do capital econômico”, cuja relevância se torna cada vez mais determinante no capitalismo financeiro. As universidades de economia ortodoxas e

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“Business Schools” canonizam o “espírito do cálculo” e o transformam em capital escolar. É, aliás, isto que caracteriza seu ‘espírito corporativo’ (esprit de corps), como dizia Bourdieu, já que o acesso ao curso superior de engenharia, economia ou administração não concerne apenas à incorporação de disposições garantidoras de um conhecimento raro abstrato-espacial da relação entre oferta e demanda, tanto do campo econômico quanto o conhecimento técnico do empreendimento econômico, mas é também aquisição de uma visão de mundo sobre a sociedade de modo a cunhar uma consagração social. O domínio deste conhecimento raro sobre o dinheiro e, sobretudo, de seus usos privilegiados no campo econômico é um ponto fundamental para compreender as chances de reprodução e de acumulação do capital econômico. Elas envolvem uma hierarquização no espaço de estratégias econômicas possíveis e prováveis. É claro que aquisição deste capital cultural técnico do campo econômico não teria o poder de orientar qualquer ação econômica se os indivíduos não predispusessem de condições prévias e de um trabalho que permitisse a acumulação sistemática de capital econômico. Desta forma, é preciso distinguir entre condições sociais e econômicas, ou seja, a posse de uma quantia em dinheiro (ou em patrimônio) das disposições econômicas, que autorizam ou impedem ações específicas. Assim, esclarecemos por que, em contextos particulares, a posse de dinheiro, de uma renda aliada e uma experiência traumática pode desencadear disposições econômicas patológicas, como o vício em jogos de azar.

Nossa terceira categoria também se inspira na diferenciação social. A

diferenciação empresarial corresponde a uma relação fundamental das classes socais no

campo econômico. É um conceito que permite unir modo de produção e burocracia econômica, isto é, o surgimento de uma dimensão administrativo-intelectual da empresa. Isto confirma o nosso argumento de que a inserção das classes burguesas no campo econômico carrega em sua esteira o domínio intelectual-racional de seu empreendimento e de sua posição relativa no espaço de possibilidades do campo econômico. De certo modo, os empreendimentos populares que encontramos em Campina Grande, cidade do agreste paraibano, compõem o caso mais simples de empreendimentos econômicos, já que todas as funções econômicas deste estão concentradas num indivíduo social. É isto que transmite esta ilusão aos próprios, como se estivessem isolados e assim, independentes de qualquer laço de dominação. Tudo se passa como se esta indiferenciação social promulgasse a impressão solipsista de que os

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empreendedores populares são “donos de si’, permanecendo atomizados. Nada mais fantasioso. O grande e o médio empreendimento burguês transformam sua estrutura empresarial num verdadeiro campo social. Este é o resultado de um processo específico dentro do desenvolvimento do capitalismo moderno. A diferenciação empresarial corresponde, portanto, à divisão do trabalho social da burocracia econômica. Deste modo, o empreendimento capitalista se distingue do popular por contar com uma dimensão técnico-administrativa capaz de racionalizar todas as suas ações econômicas no campo e em suas subáreas mediante ao conhecimento intelectual e estratégico do campo econômico. Tal modo de ação é somente passível de se refinar a partir do momento em que uma organização empresarial internamente diferenciada adquire a estabilidade relativa ao seu poder de mercado relativo, ou seja, sua margem de manobra dentro da concorrência imediata.

As grandes empresas são tão diferenciadas internamente que empregados não se conhecem pessoalmente. Este corpo, que desempenha o trabalho especializado e formado pelo sistema de ensino superior, compõe a dimensão administrativa e burocrática dos grandes empreendimentos. Entretanto, o exemplo de negócio burguês que vamos utilizar não operou a diferenciação última da empresa burguesa no capitalismo financeiro: a entre empreendimento e capital. É precisamente esta diferenciação interna, particular a um imenso grupo de empreendimentos formando verdadeiros cartéis e oligopólios privados, que compõe a solidificação do mercado financeiro. O lucro individual do capitalista burguês se torna dividendo e ganho de capital, partilhado entre os acionistas. Hilferding havia nos mostrado como o capitalismo financeiro é dependente do grande empreendimento burguês36 cuja extensão penetra nos três níveis do campo econômico: na produção de mercadorias, na circulação e no mercado financeiro se tornando objeto de especulações diversas. Com esta delimitação conceitual conseguimos escapar ao economicismo marxista, liberal e à ilusão do empreendedor isolado e atomizado no campo econômico. A máquina e o capital fixo, que representam a constituição de um modo de produção, não são apenas tributários de um uso alongado do capital econômico, mas influem na capacidade de

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O empreendimento burguês conta com monopólios, holdings e trustes, mas nem sempre devido ao real controle e regulação. Contudo, isso não é tão relevante quando levamos a diferenciação entre capital e empreendimento em conta: o capital permanece circulando entre os grandes grupos e fundos de investimento enquanto as empresas são mantidas enquanto tais, mas agora fracionadas em sociedades de ações.

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intervir na mercadoria. Sendo assim, elas também logram obter ganhos de escala ou agregação de valor econômico-simbólico.

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