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2.2) Para uma sociologia de classes do campo econômico

No documento ricardogervasiobastosvisser (páginas 87-91)

No desenvolvimento dos estudos realizados na Argélia, o centro de uma teoria praxeológica da ação econômica é tomado pelo sub proletariado argelino (BOURDIEU, 1977). Por um lado, este grupo enfrenta uma através de um desenraizamento comunitário sua transformação em classe social. A entrada das hierarquias valorativas trazidas pelo cosmos econômico capitalismo moderno decorrente da colonização francesa impõe um novo modo de vida aos camponeses. Ele identifica deste modo, um novo fenômeno histórico cuja compreensão oferecida pelas teorias objetivistas ou da antropologia culturalista (o relativismo cultural) é insuficiente. Para ele tanto, o neo- marginalismo quanto o marxismo tendem a reduzir os agentes a meros reflexos das estruturas objetivas, não procurando pela gênese social das disposições e condições econômicas. Justamente por introduzir esta separação de primeira ordem, o objetivismo acabar por recair em uma concepção reificada da sociedade numa espécie de “fatalismo inexorável” das estruturas objetivas ou num mecanicismo que postula o desenvolvimento espontâneo da sociedade conforme arranjos institucionais pré- estabelecidos. Por outro lado, a antropologia culturalista não admite o impacto real das transformações culturais impostos pelo capitalismo moderno, apostando no princípio de combinação lógica compondo a base de toda e qualquer explicação “hibridista”. O ponto de partida é sempre o da “aculturação” ou de que há um “encaixe” entre a cultura local e a imposta.

Ainda que o sub proletariado argelino seja o efeito das mudanças sociais trazidas pela colonização francesa, suas disposições econômicas permanecem em grande parte pré-modernas, pois não passaram pelo aprendizado social necessário para tal, mas também porque eram frutos da história recente. A relação temporal com o crédito é um importante indício deste descompasso. O crédito era compreendido sob o molde pré- moderno, isto é, através de uma inversão de papeis entre credor e tomador. Bourdieu relata que uma vez havia ficado horas procurando decifrar como o credor poderia, contra toda “lógica econômica”, se sentir compromissado com o tomador (Ibidem, p. 82).

Esta “contra lógica” da razão econômica ortodoxa é, por vezes, também observada na nova classe trabalhadora brasileira, mesmo que esta não seja produto de um desenraizamento de uma sociedade pré-moderna. Seu ethos econômico é moderno,

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mas particulares da posição desta classe social no campo econômico e da constelação explicativa singular que configura sua ação com o capital econômico. A caracterização das disposições e das práticas econômicas das classes populares almeja como intuito romper com uma explicação “negativa”, que desclassifica os aspectos destoantes de uma ação econômica burguesa como “desviantes”. Simultaneamente, a transformação das disposições econômicas são tributárias do contexto histórico no qual as classes sociais estão inseridas. Elas são, portanto, dinâmicas na medida em que uma forte tendência sempre é contraposta por um comportamento contrário, mesmo que em estado potencial ou realizado intermitentemente.

Porém, as disposições econômicas dos Batalhadores brasileiros não são nem pré- modernas e muito menos “irracionais”. Tanto a compreensão das relações modernas de crédito, o que também supõe a adimplência dos tomadores é o que permitiu a capitalização com sucesso destes pequenos comerciantes. Disposições incipientes de uma “poupança marginal” e “acidental” não refletem qualquer resquício pré-moderno. A presença de, em alguns casos, uma disposição para a poupança, mesmo que em estado fraco e descontínuo, comprova a incorporação de estruturas temporais modernas, orientadas para um futuro próximo e encurtado. Dito isto, escapados à ideia objetivista, segundo a qual estas classes sociais estariam “condenadas” à reprodução simples de si. Neste caso, o “fatalismo” da constante permanência do constatado é extremamente conservador.

A “irracionalidade” da ação econômica, já que os entrevistados são incapazes de “maximizar” o seu uso com o dinheiro não se explica por uma insuficiência, mas ela pela constelação social e histórica de uma classe social. Esta é a “positividade” epistemológica que queremos conferir às disposições econômicas desta parcela da nova classe trabalhadora brasileira. Assim, a poupança residual, isto é, aquela constituída quando “sobra algum” no final do mês, tem muitas vezes um caráter não acumulativo, pois está, na maioria das vezes, ameaçada por um uso no curto-médio prazo. Por sua vez, o fato de ter que dispor do dinheiro no curto ou médio prazo (semana ou mês) se articula com a inconstância da arrecadação mensal. Uma variação de 50% em nos setores mais baixos da distribuição de renda os torna muito mais sensíveis a disritmias temporais. Vale lembrar que os pequenos comerciantes não são assalariados, o que já pressupõe a constância nos rendimentos mensais. Todavia, ainda que sua renda varie e eles estejam localizados nas faixas mais baixas de renda, seus gastos mensais muitas

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vezes não variam (Ibidem, p. 104) (aluguel, luz elétrica, vencimento das parcelas do microcrédito, comida e etc.), complicando a extensão de suas categorias temporais. Tendo este traço primordial em vista, suas condições de arrecadação permanecem inconstantes, enquanto seus gastos se fixam num intervalo temporal invariável. Objetivamente, instaura-se, aqui, uma hierarquia entre o período constante dos gastos e a adequação das condições econômicas inconstante, o que geralmente envolve uma boa dose de sacrifício. Esta circunstância é válida tanto para os pequenos comerciantes situados nas frações inferiores dos Batalhadores, quanto para os sub proletários argelinos.

No fundo, as condições econômicas dos Batalhadores impedem a constituição desta poupança sistemática comum às classes dominantes, e que se reconverte normalmente em investimento financeiro. Ela opera um efeito de resistência na constituição das condições sociais e econômicas para o florescimento de disposições de retaguarda financeira. Tal contradição entre condições econômicas inconstantes e a existência de algum cálculo econômico foi chamado por Bourdieu de necessidades contraditórias, pois:

“Os sub proletários estão submetidos a pressões contraditórias que suscitam atitudes ambíguas: é assim que as necessidades da economia podem desenvolver neles o espírito do cálculo que a necessidade econômica lhes impede de exercer em seu cotidiano. Mais precisamente, o espírito de cálculo que se introduz, nós o vimos, com o cálculo (isto é, concretamente, com a receita monetária) rui pouco a pouco as relações familiares do tipo antigo. Isto ocorre no momento em que as contradições econômicas e a crise imobiliária se impõem comumente a manutenção ou a reconstituição das grandes famílias (agora urbanizada e precarizada enquanto classe social subalterna)” (Ibidem, p. 64).

Tais necessidades contraditórias também são vividas, em alguma extensão, pelos pequenos comerciantes. Assim, suas expectativas, expressas em alguns casos mais desenvolvidos, futuras quase sempre se orientam em estabilizar a insegurança presente. Em sua situação, o investimento em imóveis adquire este sentido. A conexão entre a insegurança devinda de condições econômicas precárias e a incapacidade de incorporar disposições econômicas orientadas para uma ação previsível num futuro abstrato é direta e dinâmica. Sendo assim, a renda constante (assalariamento) e as chances de permanência no médio ou longo prazo num emprego se enraízam na maximização de um patamar de segurança no qual:

“O conjunto de atitudes econômicas se define com relação a dois pontos. O emprego permanente e a renda (ou salário) regular com todo conjunto de proteções sobre o futuro garantidas. Isto

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permite o acesso ao que se pode chamar de patamar de segurança: o fim da atividade econômica comporta a satisfação das necessidades e o comportamento obedece ao princípio de maximização da segurança. O acesso ao limiar do cálculo (ou da empresa) que é marcado essencialmente pela posição de renda capaz de ultrapassar a preocupação com a subsistência, coincide com uma transformação profunda das disposições: a racionalização da conduta se estende à economia doméstica, lugar das últimas resistências, e as disposições compõe um sistema que se organiza em função de um futuro apreendido e dominado pelo cálculo e pela previsão” (Ibidem, p. 71).

Nesta passagem, é mencionado um ponto na argumentação que nos é caro: associação entre o “limiar do cálculo” e a ultrapassagem da preocupação imediata com a subsistência. Exatamente este questionamento nos estimulou a analisar como a rentabilidade presente e futura de um trabalho social pode contribuir para a transformação das disposições econômicas, ao passo que uma zona especulativa com o uso do dinheiro emerge e se torna em investimento financeiro. Esta “ultrapassagem da subsistência” tematizada por Bourdieu foi retrabalhada sob a perspectiva de uma teoria da diferenciação das práticas econômicas, enquanto subsistência e retaguarda financeira se tornam relativamente independentes. Para os pequenos comerciantes batalhadores, estes dois planos da ação econômica obedecem, no mais das vezes, a uma dinâmica conflituosa.

A indiferenciação entre orçamento familiar e empresarial é a marca do pequeno negócio não rentável (Ibidem, p.73) e pedra de toque fundamental para compreender o perfil do empreendimento batalhador. Sustentamos a hipótese de que esta diferenciação possa ocorrer nas frações superiores da classe batalhadora com a presença da pequena indústria e de um pequeno grupo de trabalhadores assalariados, garantindo as condições econômicas iniciais na constituição de uma poupança sistemática e da consequente função de capital da renda. Em nossa pesquisa empírica, vislumbramos casos nos quais o emprego do crédito se invertia, sinalizando expressamente esta indiferenciação. Ela exprime uma dupla condição definida, de um lado, pela necessidade de ganhar dinheiro rapidamente e, por outro, suas limitações estruturais de inserção no mundo do trabalho.

Do mesmo modo, a incapacidade que a fração inferior dos pequenos comerciantes exibe com relação à previsibilidade futura se dá menos por uma inadequação prévia de um cosmos econômico pré-capitalista com os imperativos categóricos e emocionais de uma sociedade capitalista, do que pela situação específica de classe na qual os entrevistados se encontram. Dois pontos parecem congregar a lacuna da sociologia de Bourdieu: a) A falta de uma perspectiva global da luta de

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classes justamente pela falta de um ponto de vista comparativo – analisando as disposições econômicas dos sub proletariados com as de outras classes; b) A não percepção da dinâmica interna das disposições econômicas de classe. Em suma, a lacuna de uma sociologia em escala individual das disposições econômicas. Sem uma perspectiva comparativa, ele tende a obscurecer como os diferentes planos práticos do uso com o dinheiro se conserva num estado conflituoso e indiferenciado. Certamente, este é um dos resultados mais cruéis produzidos pelo descompasso entre condições econômicas instáveis e gastos fixos. Por outro lado, a coerção à privação ou necessidade econômica reflete não apenas um estado “real” afinado com estas trajetórias profissionais, mas a construção simbólica e cultural de formas de trabalho marginalizadas.

Reivindicamos, portanto, uma perspectiva global da sociologia de classes do campo econômico ao tomá-lo como campo diferenciado. Este é o ponto-guia de nossas intenções teóricas. Embora o campo econômico seja um dos campos sociais, ele permite uma universalidade parcial – enxergar a totalidade da luta de classes dentro dele - única e exclusivamente na medida em que o encaramos como um campo especializado. Ao apreender seus limites adentramos igualmente seus entrecruzamentos internos. Em coerência com esta argumentação, a reconstrução comparativa das disposições econômicas de classe não almeja uma compreensão “reificada” do campo econômico, reduzindo a análise ao seu “estado final”. Ao contrário, nos interessa adentrar os processos de socialização e inserção multidimensionais formadores do campo econômico. Uma sociologia disposcional do dinheiro permite a apreensão da globalidade de um campo especializado.

No documento ricardogervasiobastosvisser (páginas 87-91)