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4.4) Um caso da função de capital da renda

No documento ricardogervasiobastosvisser (páginas 181-185)

A dominação financeira do capitalismo empresta ao dinheiro uma nova função. Se em Marx a lógica de expropriação do capital dependia diretamente da propriedade privada dos meios de produção, no capitalismo financeiro isto não é mais essencial para explorar a mais valia. O dividendo, ou seja, o lucro coletivo de sociedades anônimas e grupos financeiros de acionistas fracionou a empresa capitalista em ações ao representar o capital econômico portador de juros. Assim, uma nova gama de disposições entra em jogo. O que Hilferding narrou como processo caracterizador da totalidade das relações sociais no capitalismo moderno é hoje introjetado pelos indivíduos sob forma de disposições sociais e econômicas, pois a dominação financeira aumenta o poder operacional do dinheiro à distância. Ou seja, com o advento dos produtos financeiros é possível acumular lucro sem ser necessariamente um empreendedor individual. O processo acumulação do capital não acontece mais exclusivamente a partir de seus encadeamentos produtivos no sistema, mas igualmente segundo a forma pela qual se desenvolve o patrimônio de disposições econômicas das classes socais. Entretanto, isto não quer dizer que a indústria perdeu a centralidade, pois o mercado financeiro se complementa a ela e, de certa forma, depende da esfera produtiva.

Fábio, assim como, Carlos era gerente financeiro em uma grande companhia de cigarros. Nele se concentram as três tipologias da classe capitalista atual: o manager em posições administrativas ou de execução (quando faz carreira na empresa) nos grandes conglomerados e monopólios, o capitalista de médio-grande porte e o investidor financeiro. Na época em que era gerente financeiro, ele decide se tornar empresário por contra própria. Em contraste com pequenos comerciantes, ele não tomou crédito para capitalizar a empresa, mas acumulou o capital inicial com o salário que ganhava, abrindo posteriormente uma pequena loja de material de desenho:

“Nunca fui a banco, nunca mexi. Nunca conheci o que é uma agência bancária. (...) eu sempre juntei pra depois comprar. Aprende outra coisa: não há produto mais caro do que o dinheiro quando você é tomador. A única coisa que não aceita desaforo é o dinheiro”. (Fábio, 59 anos, engenheiro e empresário aposentado)

Neste caso em particular, o que estamos chamando de função de capital da renda é a metamorfose do salário acumulado em capital inicial. Apesar disso não ser um caráter propriamente de classe na entrada no campo econômico, já que os grandes financistas

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também tomam empréstimos, este evento não constitui um ato isolado. A intenção de se capitalizar anteriormente ao começo do empreendimento aponta para uma distinção importante com os pequenos comerciantes, que necessitam do crédito para sequer para empreender. Em função de sua posição rente à subsistência, há uma margem temporal muito menor no planejamento da ação econômica. A transformação de Fábio em empresário individual não implica que se torne um tomador de crédito, o que pressupõe sua liberdade relativa. À vista disso, observamos como ele poupa sistematicamente o seu salário para, assim, se valer dele como capital inicial, sem que isto ponha em risco sua sobrevivência imediata e muito menos seu pertencimento de classe. Aliás, a existência do capital inicial traz em seu bojo o capital fixo, o que pressupõe uma oferta alargada pela produção industrial. Já para os pequenos comerciantes, o banco exerce, sem dúvida, uma tutela, pois exploração do trabalho acontece assim de modo indireto através dos juros sem que muitos constituam uma poupança sistemática. Aliada à função de capital do seu salário como gerente financeiro, seu conhecimento prévio do nicho que viria a ocupar no campo econômico garante o risco minimamente calculado de seu investimento inicial.

Ao chamar atenção na maneira pela qual o salário pode ser usado de modo a funcionar verdadeiramente como capital econômico, apontamos para uma mutação relevante em seu significado. Assim, não podemos mais nos valer exclusivamente da oposição simples entre salário e capital como critério essencial para compreender as verdadeiras chances de reprodução do dinheiro sob a forma de lucro; é preciso entender a maneira como a ação econômica se dá. Deste modo, o que caracteriza a classe burguesa assalariada é a sua possibilidade justamente de transformar de modo mais suave sua posição no campo econômico e não ser diretamente definido por este. No bojo desta pré-condição, quando falamos de função de capital da renda indicamos seu tratamento assim de maneira formal, ou seja, porque envolve a recompensa monetária pelo desempenho produtivo. O grande empreendimento tende a assalariar todas as classes, o que embaça esta oposição clássica. Simmel percebia o salário como forma tendencialmente universal de recompensa monetária pelo labor. Para compreender o significado do capital econômico na luta de classes é preciso pensar muito mais em como condições econômicas que permitem ou proíbem um tipo desempenho próprio com o dinheiro. Igualmente, a chance de poder entesourar parte da renda no banco convertendo-o em investimento financeiro e em capital me parece questão nodal do

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capitalismo financeiro. Bourdieu e Simmel haviam percebido intuitivamente esta questão: as condições econômicas das classes dominadas impedem planos indefinidos da ação social com dinheiro, forçando-a orbitar exclusivamente na supressão das necessidades materiais urgentes:

“Isto é pelo menos o caso em meio ao pobre: pois a renda em dinheiro deste é, em função de suprir apenas as necessidades da vida, desde o princípio determinado e deixa à seleção das possibilidades de aplicação apenas um pequeno espaço de mobilidade. (...), pois elas (os meios financeiros) já se encontram imediatamente canalizada em fins determinados”. (tradução minha) (SIMMEL, 2009, p. 317)

E Bourdieu:

“Ainda que o contraste se encontre atenuado pelo fato de que as famílias com renda mais fraca venham a comprimir estas categorias de despesas (as despesas de conforto como aquecimento, luz elétrica e etc.); a soma consagrada às despesas não varia como a renda e é nas categorias de renda mais baixas que a parte deste posto na despesa global é a mais forte. (...) a consentir sacrifícios em outros domínios, alimentação (...)”. (tradução minha) (BOURDIEU, 1977, p. 104).

Deste modo, podemos livrar o conceito de renda e salário de sua raiz economicista, já que esta concepção oculta toda ação social relativa ao dinheiro. É precisamente esse elemento que impede as classes populares de exercer o desempenho de capital, a ação econômica resultante da constituição de uma retaguarda financeira sólida Nas classes populares, sobretudo, nas frações inferiores, a composição interna da renda geralmente é tomada por gastos fixos, restando quase ou nenhum espaço substancial para agir prospectivamente com o capital econômico. O espaço bastante reduzido desta margem de manobra decisória e relativamente livre, principalmente quando esta não é acompanhada da constância temporal, obstrui o florescimento de práticas financeiras acumulativas. Isto se agrava quando a instabilidade econômica atinge faixas de renda inferiores. Como consequência, a presença do excedente econômico em si não assegura a constituição longo prazista da retaguarda financeira. Neste caso particular da função de capital da renda, a poupança sistemática se liga com outra finalidade futura: a transição entre o assalariado para o empreendedor individual através da sua conversão em capital inicial. Sua ação econômica estratégica com o dinheiro teve como consequência seu uso produtivo futuro e sua materialização em meios de produção.

Em decorrência disso, ao mesmo tempo em que Fábio usa o seu salário acumulado como capital inicial para abrir sua primeira loja de material de desenho, ele compra uma asa delta, sem que isto incorra em um conflito ou interdição entre as duas

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ações econômicas. Uma tem um sentido completamente diferente da outra, ainda que não entrem em atrito direto. Por isso, ele opera com a função de capital de sua renda (salário), podendo dispor de parte do seu salário no tempo e que se tornou posteriormente em capital inicial. Assim, em direto contraste com os pequenos comerciantes, as condições financeiras de Fábio abrem uma margem especulativa e ao simultaneamente prospectiva com o capital econômico relativamente desimpedida de qualquer finalidade ou gasto no curto prazo. A confluência de condições econômicas rentáveis junto a disposições econômicas consolidadoras de uma poupança sistemática permite a diferenciação dos planos de ação com o dinheiro, viabilizando a distinção, por exemplo, entre gastos não prospectivos do consumo, da acumulação de capital econômico ou de um consumo prospectivo como o investimento em um patrimônio (uma casa, uma lancha e etc.). O uso do dinheiro ganha o contorno de uma rede diferenciada, operando em planos interdependentes entre si. Uma hipótese bastante plausível é de que a distinção entre classes altas e médias ocorra diante da diferenciação interna do investimento financeiro. É possível compor investimentos de risco, mas de alta rentabilidade imediata com os aqueles mais seguros cuja rentabilidade se desenrola num intervalo temporal mais extenso.

Por conta disso, os usos do dinheiro das classes dominadas incidem uma espécie de “todo em um” em que usos do dinheiro orbitam em pequenos círculos de ação repetitivos como os, por exemplo, citados por Bourdieu (comida, gás, vestuário, luz elétrica, consumo do lar, ajuda a familiares e etc.), mas, sobretudo, com fracas práticas financeiras para a poupança. Outra marca das disposições indiferenciadas é que uma ação incorre frequentemente na cessão de outra, exigindo sacrifícios. Assim, as estratégias econômicas mais raras e que envolvem uma aplicação prospectiva - seja para reproduzir o capital econômico, seja criar condições favoráveis de reconversão - do dinheiro transformado em capital econômico se torna privilégio de classes sociais capazes de libertar o seu desempenho do dinheiro de seu campo de aplicabilidades imediatas.

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4.5) O capital cultural do campo econômico: percepção dedutiva e a

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