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Capoeira, camará: o jogo não termina nunca

No documento Desenho, ensino e pesquisa (páginas 193-200)

O sentido da comum unidade persistia na roda mesmo quando o berimbau silenciava. Havia uma perplexidade nos olhares. Era como se a roda se alargasse infinitamente e envolvesse cada vida, todas as vidas. Então, compartilhamos aprendizagens, com o cuidado de quem divide o alimento. O pensamento vadiava.

‘Agora eu compreendi o que o mestre falou ontem sobre nunca tomar banho no mesmo rio. Eu vi as pessoas se movimentando e percebi que eu sou diferente todo tempo; todo tempo eu estou mudando e o rio também’;

‘A gente nunca pára pra pensar. Vai fazendo as coisas sem pensar. Agora vi como é importante parar para pensar e avaliar o problema de cada lugar’; ‘Tinha que ter muita força e equilíbrio quando paravam, mas vi logo que se parar muito tempo, desequilibra e cai. Não dá para ficar parado pensando’; ‘As pessoas vão mudando de lugar e o problema também; ele não fica ali parado. A vida se movimenta o tempo todo’;

‘Ele se encaixou e deu uma cabeçada do lado porque o outro permitiu, e era o único lugar que ele podia entrar; foi como se convidasse. A vida é assim’; ‘Um depende do outro o tempo todo’;

‘Às vezes a vida joga rápido... mas mesmo assim, eu me mantinha no ritmo do berimbau, sem correr, sem tirar o olho dela’;

‘Faltou os instrumentos, faltou a ladainha e as palmas, faltou a alegria. Quando a gente joga com tudo isso parece que tudo é um só’;

‘Tem que ter muito jogo de cintura para jogar com a vida’; ‘O jogo não termina nunca’;

‘É preciso abrir mão de uma forma porque tem o movimento do outro. Tem que ter flexibilidade’;

‘Mesmo aqui na roda, só observando, era como seu eu tivesse lá também, jogando com a minha vida’.

A experiência de co-pertencimento nos envolveu e nos tornou cúmplices de um mesmo projeto. Paradoxalmente, a radicalidade nos lançava para além de nós mesmos. Os princípios da capoeira até então vividos muitas vezes no estrito

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espaço da roda de jogo foram tornados próprios, recriados e, especialmente, expandidos – “Nós capoeiriristas tem alma grande/Que cresce com alegria...”.

Novamente de pé, de mãos dadas, o grupo pediu a bênção aos ancestrais. Estávamos em estado de maravilhamento – o extraordinário habitava-nos, reve- lando-se presença próxima e cotidiana. Há apenas que vadiar com ginga para que a beleza e o sagrado se manifestem nas nossas vidas. Há apenas que escutar.

O som do berimbau. A dança vigorosa e alegre encheu o espaço. Recomeçamos a brincadeira com palmas e cantigas. A alma cresceu. Transbordamos... “Capoeira, camará...”. Pensei no meu fazer, sorri, bati palmas e reforcei o coro com a alegria: “eu vim aqui foi prá vadiar...”; e provoquei: “ô vadeia, vadeia, vadeia...”.

Recordo agora o mestre de capoeira angola, Curió, diante da minha insistência para escrever sobre a sua arte: “Se escrever, mata. Se quiser aprender, tem que jogar”, alertava-me. Agora que escrevo, tento fazer da palavra que mata a abertura para muitos jogos – mosaico que vou compondo com cautela – pois assim há de se proceder com as coisas em que é constatada a presença africana, procurando deixar espaços vazios de escuta. O ensinamento dá-se pelo exemplo. No exemplo, a tradição. O princípio é mesmo a escuta. Há apenas que escutar. E vadiar.

Para Pastinha a capoeira “não tem método”; é “sagrada” e “maliciosa”. (FREIRE, 1967) A capoeira como a vida, no dito do mestre é, então, pura espontaneidade. E assim sendo é sagrada, pois acende a centelha divina do que se faz como fluxo. Por isso na roda tem que ter astúcia para os improvisos que nos põem em acordo com o que somos: movimento e acontecimento, “máquinas atualizadoras de visibilidade”.

Se em fluxo, o corpo do capoeirista é malemolente, flexível e criativo; é “acon- tecimento que inaugura a existência” (OLIVEIRA, 2004), mantendo-se em perma- nente estado de prontidão e de fruição. Um corpo que se integra à ordem cósmica, e que em modo de abertura reinveste-se da sua natureza e potência próprias, mis- turando-se à materialidade da vida e fazendo-se permanente estado de criação.

É ele, o corpo, quem fala enquanto joga, tecendo textos de muitas vozes, dese- nhos e sentidos – a capoeira é evento relacional da experiência e memória cole- tivas. Os pares ao centro realizam uma dança sincrônica, onde ritmos e corpos

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se envolvem; o desafio é surpreender o outro com o inesperado. Pode-se, então, dizer que a capoeira buscará sempre o extraordinário e o tenso: tensão entre equi- líbrio e desequilíbrio, entre harmonia e diacronia. Mas é preciso ressaltar que o modo de jogar, ou de discursar corporalmente – o que pode parecer redundante, já que não há outro lugar de discurso – é próprio de cada jogador, ainda que tantas falas nele se digam.

E seguindo os ensinamentos do mestre Pastinha, “A Capoeira Angola só pode ser ensinada sem forçar a naturalidade da pessoa. O negócio é aproveitar os gestos livres e próprios de cada um. Ninguém luta do meu jeito, mas no deles há toda a sabedoria que aprendi. Cada um é cada um”. (FREIRE, 1967) Isso remete ao con- ceito de ensinar cunhado pela professora Vanda Machado (2006) – “en-sinar” é por na própria sina. Se assim é, o aprender permanece em acordo com o ritmo de cada um, e cada um é todos no momento que no jogo se faz. Pôr na própria sina implica num estado incessante de criação de jogadas.

O que vemos, então, é que o tempo da capoeira é o presente, no qual se atua- lizam as tradições em estado de corpo. Dito desse modo, ele é expressão da his- tória e da cultura, e também a permanente reinvenção delas. É experiência esté- tica e política. Todos os mestres ancestrais e companheiros de roda se fazem, por essa via, presentes no corpo dos capoeiristas no momento mesmo do jogo.

Canta-se, samba-se, tocam-se berimbaus e pandeiros. Capoeira é celebração, e essa só é possível no encontro. As músicas, os instrumentos, as palmas, a ginga fazem dela evento festivo – o que por consequência implica numa nova ordem na qual o riso e a alegria têm primazia, num grande corpo social e coletivo.

A capoeira potencializa, dessa maneira, os estados espontâneos e criativos dos jogadores, implicando-os numa cena aberta e difusa. Não há formas, assim como não há fim: “O jogo não acaba nunca”. Ao optar pelo Teatro Espontâneo, abdiquei de um trajeto solitariamente traçado. Cada passo foi sendo tecido em comunhão com o movimento do grupo; foi uma escolha que se fez como aconte- cimento e decisão de todos nós participantes. E, enquanto os jogadores brincavam na roda, eu empaticamente jogava com o meu papel de professora e aprendia com

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os camaradas a abdicar da dureza das formas; a escutar o meu corpo e a dançar no ritmo do grupo; a experimentar perspectivas e a ser como o rio, sempre outra.

O desafio posto para aquele que assume a função de coordenar uma expe- riência em sala de aula é sempre o de uma aposta no grupo, além da disposição para compor acordes ou acordos polifônicos. Isso não é criar um relaciona- mento como se o outro fosse uma parte a ser incluída. O outro, como se revela no jogo da capoeira, é presença, e demanda uma escuta de pele, ou de poros. Etimologicamente poro, do grego poros, é a designação genérica de cada um dos minúsculos orifícios do corpo. É ainda ação de travessia, passagem, via de comu- nicação, leito de um rio, leito do mar, estreito, ponte, via, caminho, conduto que se desloca. (FERREIRA, 1986) Escutar, assim, é ser atravessado, e há um só tempo, ser via para.

Autoconhecer-se, dessa forma, está na íntima relação de copertencimento e na tensão dialógica na qual o outro compõe comigo desenhos de linhas virtuais e também acontecimento. Isso implica numa abertura radical para movimentos não previstos, mas prováveis. Esse congraçamento festivo dos sentidos tradu- ziu-se numa dinâmica cuja criatividade resultou em movimentos de auto-orga- nização que transcenderam e surpreenderam a cada um e ao grupo. A roda era todos os presentes. E, ao som do berimbau, das palmas e pandeiros, surgiu, sob os nossos pés, o mato rasteiro, e uma gente cheia de ginga colocou a vida no centro. Espontaneamente. Criativamente.

Finalmente, pensamos que o nosso fazer de professor e de professora deva ser reinventado na roda, de capoeira ou de conversa, enquanto nos projetamos numa teia complexa e viva, qualquer que seja o campo de conhecimento. A aula, como lugar da invenção, deve nos incitar ao vazio, pois só assim estaremos em estado de jogo e de escuta. E, em jogo, sem despregar os olhos, como numa contradança, poderemos experimentar momentos de sermos todos um mesmo movimento. Tenso. Intenso. Aprendemos isso com os capoeiras.

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imagem 1 – Na primeira fileira da direita para esquerda, o Capeta Carybé jogando capoeira; no centro, o menino pedindo a ginga; e, do lado direito, as crianças brincando de capoeira. Na fileira de baixo, o Mestre Bimba ensinado a ginga pela as mãos e o Mestre João Pequeno ensinando a ginga por intermédio do banco.

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