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Instrumentos de Pesquisa Projetivo

No documento Desenho, ensino e pesquisa (páginas 124-130)

A Psicologia é marcada por um infindável debate a respeito do problema da objetividade e subjetividade no seu campo de estudo. Os testes psicológicos

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(a psicometria) foram entendidos como uma alternativa que atendia aos crité- rios de objetividade, facilitando a compreensão do que se deseja observar, forne- cendo um caráter científico ao estudo. No que se refere à análise do desempenho escolar (o fracasso ou sucesso acadêmico), os pesquisadores têm recorrido às diversas formas de avaliação: o conceito dado pelo professor da classe ou alguns instrumentos de mensuração mais específicos, como o Teste Metropolitano de Prontidão, de Poppovice Moraes (1966), o teste ABC, de Lourenço Filho (1933), e o Teste de Desempenho Escolar de Stein (1994).

Se por um lado, tal procedimento intenciona garantir a objetividade na ava- liação diagnóstica, por outro lado, por esse mesmo motivo, ele desconsidera no seu campo de observação, alguns aspectos. É de alguns desses aspectos, que não são frequentemente considerados, que este trabalho pretende tratar. Uma parte do resto de uma análise estatística, algo que pode ser dito caso se recorra a outro tipo de análise. Algo que seria silenciado se apenas um tipo de análise fosse feita. Isso será melhor explicado ao longo deste trabalho.

Mas como poder falar de aspectos que são da ordem da subjetividade? Uma alternativa possível são as técnicas projetivas. Segundo Formiga e Mello (2000, p. 12), “as técnicas projetivas proporcionam um amplo campo de interpretação no que trata do resgate do inconsciente do indivíduo”. Para Raymundo, Freitas e Cunha (1993, p. 377):

A hipótese projetiva subentende a possibilidade da compreensão psicológica de quem escreve um romance, pinta um quadro ou modela um objeto [...]. Então, se aceita a hipótese projetiva, as produções gráficas podem ser consideradas instrumentos da lin- guagem simbólica que traduzem conteúdos do mundo interno na página em branco.

A obra pode ser um meio de expressão de sentimentos, atitudes e reações incons- cientes que permitem ao leitor compreender como a pessoa interage com aspectos específicos de sua vida. Dentre as técnicas projetivas já existem alguns testes padro- nizados que trabalham com o desenho. Por exemplo, o Desenho da Figura Humana

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e suas avaliações por Machover (1949), Goodenough (1974), Harris (1963), Koppitz (1988) e algumas padronizações que estão sendo realizadas pelas equipes de Hutz, em Porto Alegre, e de Weschler, em Campinas. (HUTZ; ANTONIAZZI, 1995) Há ainda o Desenho da Família e o Desenho da Casa, Árvore e Pessoa. Cunha (1993) apresenta algumas discussões sobre esses instrumentos.

Esses pesquisadores tomam o desenho como um material projetivo a partir do qual se pode inferir alguns aspectos psicológicos do indivíduo. Como, por exemplo, seu desenvolvimento mental, organização ou estado emocional e estruturação da personalidade. Esses instrumentos são mais frequentemente utilizados em um processo de diagnóstico clínico. Aqui, coloca-se a questão de como se poderia utilizar uma técnica projetiva para estudar o desempenho escolar das crianças. O que se pretende, em alguma medida, é aplicar uma téc- nica projetiva ao campo educacional.

Essa foi a questão que levou Pacheco, em 1995, a fazer algumas intervenções numa escolinha rural no interior da Bahia. O que se objetivava era fazer uma aproximação entre o trabalho de aquisição da leitura/escrita e a elaboração de conceitos com a “produção artística”, mais especificamente, com o desenhar e o trabalho com sucatas. Essa reflexão se deterá na análise dos desenhos. Estes foram produzidos tendo como tema a música de Vinícius de Moraes, A casa.

Os desenhos de uma das classes (23 alunos) foram avaliados e apontaram alguns critérios de análise do material: a posição, tamanho e composição do desenho; presença ou não de elementos simbólicos, de casa, de linha de base, de objetos internos e externos ou apenas de elementos soltos e de colorido. Tais critérios possibilitaram analisar estatisticamente o material e refletir sobre a ação pedagógica (PACHECO, L.; PACHECO, D., 2000, p. 15):

Esses critérios, portanto, ao informar sobre a estruturação do desenho no espaço, seu potencial de comunicação, a quantidade de informação que transmite ao outro e a motivação dos sujeitos, revela, não só aspectos cognitivos, mas também afetivos e sociais presentes no desempenho da tarefa em questão. Desta forma o desenho, enquanto instrumento de intervenção pedagógica

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e mensuração do desempenho dos alunos, é de fundamental importância, já que integra aspectos afetivos-sociais e cognitivos presentes no processo de aprendizagem.

Dessa experiência inicial, ainda não se tem respostas definitivas, mas, a cada contato com os alfabetizandos, a questão sobre o lugar da imagem no processo de aprendizagem se recoloca. Cada vez mais, destaca-se a importância de um tra- balho pedagógico que envolva a dimensão semântica e vivencial dos conceitos que os alunos terão que representar alfabeticamente, ao invés de se reduzir a aula no estudo do signo verbal, pelo signo verbal, de forma descontextualizada. Toda a riqueza das casas vivenciadas junto às crianças deste estudo poderiam ter se perdido num estudo de três letras (sendo uma repetida) e duas sílabas: C-A-S-A.

Por um lado, critérios objetivos possibilitaram inferir algo sobre a “produção artística” das crianças e os efeitos desta no processo de aprendizagem. Essa manipulação estatística, ao aproximar diferenças e semelhanças entre os dese- nhos e quantificá-las, possibilitou que alguns aspectos cognitivos-afetivos-so- ciais pudessem ser vistos através do fazer arte, do desenho. Mas há alguns con- teúdos que podem ser observados pelo pesquisador ao estudar o material, que, no entanto, escapa às fronteiras da estatística, constituindo-se assim a categoria do “não dito”. O que dentre esses desenhos pode ser “ouvido”, ou melhor, visto e que, todavia, não foi contemplado por uma análise objetiva? Vejamos.

Foi dado a seguinte instrução às crianças: façam um desenho da casa. Após se ter cantado e escrito algumas palavras presentes na letra da música que se segue.

A Casa

Era uma casa muito engraçada Não tinha teto, não tinha nada Ninguém podia entra nela, não Porque na casa não tinha chão Ninguém podia dormir na rede Porque na casa não tinha parede Ninguém podia fazer pipi

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Porque pinico não tinha ali Mas era feita com muito esmero Na rua dos Bobos, número zero. (CHICO..., 1980).

Tal música trabalha uma contradição. É uma casa que, apesar de ser feita com muito esmero, não tem seus componentes essenciais, como teto, chão, parede e pinico. Como seria o desenho dessa casa? No primeiro dia de trabalho com as crianças, das 23, 10 não apresentaram uma casa em seu desenho. Dos 13 desenhos com casa, 9 tinham mais de dois detalhes internos (por exemplo, porta e janelas) e 5 chegaram a apresentar detalhes externos a casa.

imagem 1 – Exemplo do desenho da casa com detalhes internos e externos

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O que se quer destacar é que, ao se pedir às crianças que fizessem um desenho de uma casa cheia de contradições, de uma casa da ordem do impossível ou da fantasia, cada uma delas buscou algum recurso para executar a atividade. Mais da metade das crianças (13) desenharam a casa com paredes e teto; das 10 que não desenharam a casa, 7 representaram elementos citados na música, como pinico e rede. Os três restantes foram classificados como elementos soltos. Objetivamente falando são figuras geométricas, um parece com dois círculos concêntricos e cada um dos outros parece com um quadrado.

imagem 2 – Elementos soltos enunciados na música

Fonte: Aluno 2 e 3 da antiga 1ª série do primário, de uma escola na zona rural, do estado da Bahia.

Um observador descuidado não poderia ir mais longe nessa análise. Contudo, ao se deter em um desses desenhos que apresentam apenas um quadrado, pode-se

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perceber uma palavra meio apagada escrita logo acima – “xau”. Essa palavra redi- mensiona toda a leitura que se poderia fazer até então. Pois um quadrado dese- nhado numa folha em branco é um significante que não oferece de início seu significado. Mas acompanhado de tal palavra, após a canção apresentada, pro- voca uma cadeia de significação.

Para falar de alguns significados possíveis, faz-se necessário recorrer a uma teoria que respalde essa análise. Será optado aqui por uma abordagem psicana- lítica. Para mergulhar no campo do sentido, da significação, faz-se necessário uma, mesmo que breve, contextualização da perspectiva freudiana da estética.

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