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Na Era da Razão, a consciência coletiva de parte da elite europeia, classe a que pertencia Goya, estava fortemente identificada com o racionalismo e o cientificismo, os quais, aliados aos ideais estoicos da Antiguidade Clássica, o levaram a um estado de arrogância civilizatória, ou seja, uma hybris. Um dos aspectos dessa arrogância manifestou-se na identificação da consciência desses intelectuais com tudo o que era elevado, perfeito, puro e bom, negando os aspectos inferiores e imperfeitos, os quais também faziam igualmente parte da sua natureza.

No entanto, segundo Jung ([1957, 1958, 1964], 2008, O. C., X/1, §545-551, p. 33), a cisão psíquica da Idade Moderna provocada pela identificação da

consciência com o racionalismo, impediu que as energias instintivas encontrassem uma via de expressão. Na Antiguidade, recorda-nos Zoja (1993), os mitos ocupavam uma posição central na vida humana e forneciam um sentimento coletivo e um imaginário cultural que foram eliminados pela racionalidade laica moderna.

No âmbito das artes, a partir da metade do século XVIII, intensificaram-se em toda a Europa os debates em torno das questões estéticas. O Neoclassicismo recuperou os valores estéticos da Antiga Grécia como fonte de inspiração e, com estes, os ideais platônicos que vinculavam a nobreza espiritual do homem à beleza da forma corporal. No Iluminismo, a ideia da superioridade do homem sobre as demais espécies, que havia emergido na consciência coletiva na Renascença, ganhou novo impulso com o racionalismo e o cientificismo. Schulz (2005, p. 22) aponta um texto do iluminista espanhol Jovellanos como exemplo: “Firme e ereto entre os outros seres, sua própria aparência anuncia sua superioridade.”

A consciência coletiva de uma parcela da população europeia encontrava- se, portanto, cindida da base instintiva por uma unilateralidade racional e profundamente embriagada por sua superioridade intelectual sobre os demais seres. Havia uma arrogância coletiva derivada das conquistas científicas e do mito do progresso contínuo. Simultaneamente, uma corrente subversiva ganhava força no século XVIII, representada pelas caricaturas e gravuras satíricas de cunho político e social, a qual pertence Los Caprichos. As caricaturas e a sátira são formas de expressão da sombra, que funcionam como válvulas de escape ou compensação para os elementos psíquicos que estão reprimidos, como a agressividade, a sexualidade, a raiva, a indignação e a crítica.

Um dos pressupostos teóricos da Psicologia Analítica é a complementaridade ou autorregulação entre as instâncias psíquicas da consciência e do inconsciente. A vida em sociedade exige uma atividade consciente dirigida ou direcionada para a adaptação e execução de tarefas, o que acarreta a exclusão de todas as tendências contrárias. Essas tendências que, no entanto, não desaparecem, passam à esfera inconsciente, constituindo uma compensação à direção consciente. Com o tempo, no inconsciente, acumulam-se conteúdos de natureza complementar à consciência. A psique possui, portanto, um mecanismo de

autorregulação entre consciência e inconsciente, que se complementam formando uma totalidade: o Self8 (JUNG, [1921], 2009, O. C. VI, §902, §795, p. 442).

No século XVIII, parte da consciência coletiva encontrava-se metaforicamente identificada com uma dinâmica psíquica de natureza apolínea. Apolo, o deus-sol, representa a consciência e seus atributos: a elevação, a perfeição, a idealização, a justiça e a lei. Los Caprichos, no entanto, vai emergir, de forma compensatória, de outra dinâmica psíquica, que pode ser identificada com o deus Hermes: o ladrão, o embusteiro, o ambíguo, o bufão.

Jung ([1954], 2007. O. C., IX/1, §456, 469, 484, p. 252, 258, 264) identificou a proximidade entre o arquétipo9 do trickster e a dinâmica psíquica, representada por Hermes, que possui a capacidade de se transformar e mudar de atitude conforme a situação exige. No nível coletivo, o trickster pode atuar como o elemento que, mediante a espontaneidade e a brincadeira, compensa a atitude unilateral da consciência, revelando a sombra coletiva, ou seja, os aspectos inferiores que foram negados pela sociedade (JUNG, [1954], 2007, O. C., IX/1, §484, p. 264). Esses aspectos podem ser percebidos no papel desempenhado pelo bobo da corte ou bufão, o único que pode falar verdades ao rei, de forma jocosa e engraçada.

Segundo Stevens (1998), o arquétipo do trickster atua como uma espécie de anti-herói, que faz uso da trapaça, da desonestidade ou simplesmente da sua estupidez para alcançar aquilo que o herói atinge por meio da coragem, da força e da determinação. Maciel (2000) pontua a semelhança entre o lapso freudiano e a ação de Hermes:

O que é chamado de lapso freudiano, na verdade, é uma precisão de Hermes. Ele esvazia a pomposidade, o pieguismo, a certeza e a autossatisfação. “[...] Nos seus domínios, verdade e falsidade, e suas experiências como opostos, desaparecem, pois a verdade para os ideais da       

8O Self é postulado como a totalidade dos fenômenos psíquicos no homem: consciência e

inconsciente.

9Os arquétipos são conteúdos do inconsciente coletivo que atuam na psique como predisposições

para a manifestação de um conjunto de fenômenos afetivos, imagéticos e míticos “[...] que se comportam como uma tendência à repetição de experiências semelhantes.” (JUNG, [1917, 1926,1943]. O. C. VII/1, §101, p. 57, §109, p. 61).

consciência apolínea pode não ser para o inconsciente, e vice- versa.” (MACIEL, 2000, p. 80).

O uso da caricatura, da sátira e do chiste pode ser entendido como manifestações do arquétipo do trickster que, ao revelar conteúdos do inconsciente, promove uma hermenêutica da sombra pessoal e coletiva.

Jung ([1922], 1987, O. C., XV, §131, p. 71) atribui ao artista uma maior abertura ou conexão com o mundo arquetípico, a qual lhe possibilita captar os elementos psíquicos que estão cindidos da consciência coletiva. Ao dar-lhes expressão, o artista promove uma autorregulação espiritual para uma coletividade em um dado momento histórico.

Segundo Rosenfeld e Guinsburg (1999), as normas que definem o classicismo são proporção, racionalidade, objetividade, equilíbrio, harmonia, moderação, disciplina e desenho sapiente. Esses cânones haviam sido codificados na Renascença por Leon Battista Alberti (1404-1472) e Leonardo da Vinci (1459- 1519) e há tempos circulavam em traduções espanholas nos círculos acadêmicos. Outro texto importante, também traduzido para o espanhol, foi o Méthode por

apprende à dessiner les passions (Método para aprender a desenhar as paixões), de

Charles Le Brun (1619-1690), que foi publicado postumamente, em 1698. O método de Le Brun fornecia uma “schemata”, ou seja, um repertório de expressões faciais segundo os estados mentais, considerando que essas expressões são universais e independem de idade, nacionalidade, clima ou outros fatores.

No entanto, um dos textos mais importantes e que definiu as regras para a Academia espanhola e a comunidade artística internacional foi escrito por Mengs, que era uma referência para os demais artistas, na época. Em um texto ele declara o propósito de uma academia: “Uma academia é uma reunião de homens, com a maior expertise em ciência ou na arte, seu objeto é investigar a verdade, e encontrar regras fixas, sempre conduzindo para o progresso da perfeição.” (CRASKE, 1997, p. 136 [grifo da autora]). Para Mengs, os estilos possuíam uma hierarquia: do mais ideal ou perfeito ao mais insuficiente. Os estilos declinariam em perfeição do sublime para o bonito, gracioso e, por fim, expressivo. No auge do

prestígio, Mengs estabeleceu as regras para as academias de Madri, Roma, Nápoles e Gênova, além de formar professores para Copenhague, Viena, Stuttgart, Turin e Dresden.

No fim do século XVIII, Goya e outros artistas começaram a se libertar das rígidas e fixas regras de Mengs. Em um discurso, de 1792, à Academia, Goya declarou: “Não existem regras na pintura” (FEGHELM, 2004, p. 26). A declaração indicava que o foco do artista estava mudando de um polo para outro: o objetivo de perseguir valores universais estava sendo substituído pelo objetivo de explorar experiências pessoais, ou seja, os ideais do Neoclassicismo começavam a ser substituídos pelos do Romantismo. Craske (1997) sublinha que, como não existem registros em que o discurso de Goya tenha causado polêmica, acredita-se que a Academia de Madri já estivesse se afastando dos rígidos cânones de Mengs. Do ponto de vista estético, Los Caprichos encontrava-se em oposição à perfeição preconizada por Mengs.

Ainda dentro do contexto neoclássico, Schulz (2005) aponta a valorização do caráter expressivo do corpo humano, que era visto como um texto que deveria ser decodificado pelo observador, de forma que os significantes externos como pose, gesto, expressão facial serviam de código para a representação das paixões, emoções e inclinações do indivíduo. Durante os muitos anos em que trabalhou para a Real Tapeçaria de Santa Bárbara preparando cartões de tapeçaria, Goya apropriou-se, gradualmente, do potencial semântico da figura humana, fundamental na caricatura e na sátira e, a partir de 1790, passou a utilizá-lo como uma forma de libertar-se dos cânones acadêmicos.

Los Caprichos definitivamente não emergiu do reino de Apolo, ou seja, da

perfeição, da clareza, da certeza matemática. Ao contrário, emergiu do reino das sombras, das ambiguidades, deformações, imprecisões, duplos sentidos e das figuras imaginárias. As gravuras estavam mais próximas do universo dos sonhos ou pesadelos, nos quais tudo é confuso e complexo e não se enquadra na lógica cartesiana.

No período iluminista, o sensualismo de Locke teve grande impacto sobre a cultura e a literatura. Locke considerava os sentidos como as principais vias de entrada do conhecimento, aos quais se somaria à reflexão para a aquisição de conhecimento. Condillac foi mais radical ao afirmar que só era possível conhecer através dos sentidos. Segundo seu Tratado sobre as Sensações, de 1754, a memória, a atenção, o juízo, a valoração, o desejo e a vontade nada mais seriam que transformações complexas das sensações. Schulz (2005, p. 45) assinala que essas teorias eram amplamente difundidas entre os acadêmicos espanhóis, como se vê no comentário de Pedro de Silva (1742-1808): “As instruções que entram pelas portas dos sentidos, além de serem as mais duradouras, acomodam-se melhor à capacidade do homem comum. Os homens estão mais bem servidos por seus olhos do que por suas mentes.”.

Craske (1997) faz a ressalva de que, no contexto da iluminista, ser um intelectual esclarecido significava justamente ter a capacidade de transcender à superfície sedutora das aparências, ver além das ficções que encorajavam os medos irracionais e crendices e, portanto, compreender o sentido oculto da realidade.

Essas considerações são importantes porque, nas gravuras satíricas, Goya vai brincar com todos os sentidos: visão, audição, paladar, olfato e tato, que serão usados para indicar falta de conhecimento, alheamento, fomes insaciáveis e ambição. Como no sensualismo, o sentido da visão era considerado, pela maioria dos teóricos, o mais importante para a aquisição de conhecimento, este mereceria um grande número de gravuras satíricas.

Os temas relacionados à visão serviram como metáfora para satirizar a ignorância, as superstições, os truques dos ilusionistas, o charlatanismo e a burrice. A deficiência na apreensão da realidade seria assinalada mediante um repertório de códigos: personagens de olhos fechados, personagens vendados, o uso de óculos ou monóculos, dentre muitos outros, como veremos nas análises das imagens.

Craske (1997) sublinha que o crescimento urbano foi, aos poucos, provocando uma divisão na sociedade europeia, a qual foi separada em um público

educado, que estava à vontade no mundo das ficções, dos teatros e da literatura, ou seja, os que viam, e o mundo dos “outros”, que eram facilmente enganados pelas ilusões baratas e pelo charlatanismo e serviam de inspiração para as sátiras e caricaturas que ridicularizavam sua ingenuidade e tolice.