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A SÁTIRA COMO REPRESENTAÇÃO DA SOMBRA

A sombra pessoal10 e a sombra coletiva são construídas à medida que o indivíduo e o grupo precisam se adaptar aos valores éticos e morais da família e da sociedade a que pertencem. No entanto, é impossível a concordância de todos os membros do grupo às exigências familiares e sociais, uma vez que os interesses do grupo visam atender as necessidades de sobrevivência do grupo, e o indivíduo tem seus próprios interesses e ambições, que nem sempre coincidem. Aqueles indivíduos que não se conformam aos códigos morais são ameaçados com o abandono, ostracismo ou outras formas de punição.

A repressão e a supressão são os principais mecanismos empregados pelas pessoas para se adaptarem aos ideais éticos, segundo Neumann (1990, p. 37), e provocam uma cisão psíquica em duas instâncias, uma inconsciente e outra que se identifica com o ego e a consciência, constituindo a “personalidade fachada”, ou persona. A formação da persona é uma aquisição importante da consciência, sem a qual a vida em sociedade seria impossível.

Para ser reconhecido moralmente pelo grupo, o indivíduo procura identificar- se com os ideais coletivos, excluindo uma série de aspectos da própria psique que vão constituir a sombra pessoal. Da mesma forma, tudo o que é considerado eticamente ou moralmente inaceitável do ponto de vista coletivo, como, por exemplo, uma crença diferente, a cor da pele, formas de sexualidade, pode ser socialmente reprimido ou suprimido, passando a constituir a sombra coletiva.

      

10Jung ([1951], 2008, O. C., IX/2, §14, §15, p. 20-21) conceitua a sombra como a parte da

personalidade que não foi iluminada pela luz da consciência, ou seja, os aspectos primitivos, inconscientes e com forte componente emocional e autonomia. A sombra constitui um problema moral para o indivíduo.

Segundo Jung ([1951], 2008, O. C., IX/2, §15, p. 21), a sombra é a parte da personalidade total que não foi iluminada pela luz da consciência, ou seja, os aspectos obscuros da personalidade, compostos por traços inferiores e primitivos de caráter com um forte componente emocional e relativa autonomia assim como potencialidades que não tiveram a oportunidade de emergir. Esses traços de caráter resistem ao controle da consciência e “constituem um problema moral que desafia a personalidade do eu como um todo” (JUNG, [1951], 2008, O. C., IX/2, §14, p. 20). Para Jung ([1954], 2007, O. C., IX9/1, §484, p. 264), o trickster é uma figura da sombra coletiva que reúne os aspetos de caráter inferior, e como figura coletiva é alimentado continuamente pelos elementos da sombra individual.

No entanto, é a ambivalência do trickster que possibilita a contemplação do outro lado do que é aceito ou admitido pela consciência do indivíduo ou pela norma cultural de um grupo, ou seja, a sombra traz o germe da enantiodromia ou conversão no seu oposto. Interessa-nos ressaltar, portanto, o aspecto integrador da sombra que é realizado pelo trickster, que consegue mediante o humor e a estupidez o que os outros não conseguiram pela sua habilidade (JUNG, [1954], 2007, O. C., IX/1, §456, p. 251), promovendo a “inversão do sem-sentido para o pleno-sentido” (§458, p. 252). Segundo Jung ([1954], 2007, O. C., IX/1, §456, p. 251), o bufão ou bobo da corte é uma representação do trickster.

De acordo com Bakhtin (2010, p. 34), nas cerimônias oficiais das comunidades antigas, tanto os elogios quanto o escarnecimento eram igualmente aceitos entre todos os membros da comunidade. No entanto, com o surgimento da divisão de classes e a diferenciação dos direitos entre os grupos da sociedade, a prática foi interrompida passando a ser permitida apenas em determinadas ocasiões especiais, como o carnaval, quando era possível a subversão da ordem, abrindo-se espaço para a ridicularização, a sátira e o riso. Nas festas pagãs primitivas, o riso possuía uma função social, permitindo um afrouxamento das fronteiras entre o sério e o cômico, o oficial e o não oficial, o sublime e o escatológico. O riso, portanto, sempre foi uma das principais formas de expressão da verdade sobre o mundo, a história, a sociedade. Na Idade Média e na Renascença, a figura do bufão manteve a função de trazer à tona a verdade, por meio do riso, sendo permitido a ele criticar e ironizar todos os indivíduos do grupo, sem exceção.

Figueiredo (2011, p. 3) aponta que existem diversos tipos de humor: o riso, a gargalhada, a troça, o gracejo, a sátira, a paródia, o trocadilho ou o chiste. No entanto, todos os tipos compartilham duas características fundamentais, que são a ausência de sentimento com relação ao objeto do riso e a necessidade de um terceiro elemento ou de um grupo com quem se possa compartilhar a piada. “Ri-se de alguém perante um grupo”. Segundo Carvalho (2009), o riso é um fenômeno cultural, que, mediante o discurso cômico-humorístico, assume uma visão crítica sobre os fatos sociais e as relações humanas.

Para Hodgart (2010), diferentemente de outros tipos de humor, a sátira tem uma postura mental crítica e hostil, causada pela irritação ou indignação com relação aos vícios e à estupidez humana. As ocasiões e os motivos que levam um indivíduo a satirizar outro indivíduo ou grupo são praticamente infinitos, no entanto, derivam de um impulso básico da natureza humana, o de se sentir superior mediante a inferiorização e o desprezo provocados pelo riso depreciativo.

A sátira caracteriza-se, portanto, pela condenação, ridicularização dos vícios, abusos, fraquezas e despropósitos de indivíduos ou de grupos específicos, como ocorrem em Los Caprichos, nos quais as classes da nobreza e do clero eram os principais objetos da sátira.

A forma de representação da sátira assemelha-se às manifestações do

trickster, cujo propósito é trazer para a luz os elementos da sombra coletiva, que

podem ser de natureza sexual, religiosa, política e social, os quais foram reprimidos ou negados por uma sociedade, em determinado momento histórico, promovendo uma compensação em relação a uma visão unilateral da consciência coletiva.

De acordo com Spinks (1991), o trickster age mediante formas lúdicas para satirizar as convenções da cultura, possibilitando as transformações pessoais e culturais. Por meio da atuação marginal do trickster, os seres humanos encontram uma forma de lidar com a própria dissonância cognitiva, que resulta da diferença entre a realidade e aquilo que é cartografado pela cultura.

Naturalmente que quanto mais rígidas forem as fronteiras mapeadas pela cultura, mais frequente será a atuação do trickster na marginalidade, e o jogo entre fronteiras e marginalidade pode escalar, passando do humor para a ironia, da ironia para a sátira e até mesmo para a revolução e a evolução (SPINKS, 1991, p. 7).

5. OBJETIVO E MÉTODO

A verdadeira obra de arte tem, inclusive, um sentido especial no fato de poder se libertar das estreitezas e dificuldades insuperáveis de tudo o que seja pessoal, elevando-se para além do efêmero do apenas pessoal (JUNG, [1922], 1987, O. C., XV, §107, p. 60).