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2.2 TRANSFORMAÇÕES ARTÍSTICAS NO SÉCULO XVIII

2.2.2 A Caricatura como Inovação

O verbete do dicionário Aurélio (1988, p. 130) para a palavra caricatura apresenta as seguintes definições:

1 – desenho que pelo traço, pela escolha dos detalhes, acentua ou revela certos aspectos caricatos da pessoa ou fato; 2 – representação burlesca em que se arremedam comicamente pessoas ou fatos; 3 – reprodução deformada de algo; 4 – pessoa ridícula pelo aspecto e pelos modos.

Segundo Kris e Gombrich (1967), a caricatura havia surgido tardiamente na história da arte porque, até então, a humanidade conservava elementos do pensamento mágico. Enquanto o pensamento mágico predominou, acreditava-se que uma distorção fisionômica em um boneco ou imagem pudesse resultar na mesma distorção no indivíduo. Segundo esse ponto de vista, quando esse temor foi superado, nos últimos anos do século XVII, a caricatura pode surgir, o que ocorreu no ateliê dos bolonheses Aníbal e Agostinho Carracci. Além da caricatura, os irmãos inventaram também a brincadeira de transformar rostos humanos em animais ou objetos.

Posteriormente, Gombrich (2007) abandonou a ideia do pensamento mágico que havia elaborado com Kris (1967) e propôs que o surgimento da caricatura se deu como uma inovação decorrente do processo schemata-correção. Segundo Gombrich (2007), em todos os estilos, os artistas fazem uso de um repertório de formas, poses, gestos consagrados pelos artistas que lhe antecederam, ou seja, um artista deve, inicialmente, apreender o truque do desenho, que chamou de

schemata. Posteriormente, Gombrich (2007) acrescentou ao conceito de schemata o

conceito de correção, que explica a contínua superação dos artistas na resolução de problemas. Os schematas seriam constituídos pelo repertório de efeitos pictóricos bem-sucedidos que foram acumulados pela tradição e serviriam de ponto de partida para os grandes artistas criarem simplificações. Estas só seriam possíveis porque as complexidades anteriores haviam sido totalmente dominadas. O autor considera a caricatura como uma conquista da linguagem que buscou fórmulas mais simplificadas ou eficientes de expressão.

Segundo Gombrich (2007), a caricatura baseia-se no jogo da equivalência, uma operação que se dá na consciência, na qual espontaneamente associamos, por exemplo, um ponto mais claro à luz, ao ouro, ao cetim ou algo equivalente. A partir de indicações mínimas, tendemos a ver a semelhança de um ser vivo em todas as formas. Portanto, a invenção da caricatura-retrato pressupõe a descoberta teórica da diferença entre semelhança e equivalência, que reside tanto na semelhança dos elementos quanto na identidade de reações a certos elementos. “Reagimos a um borrão branco numa silhueta negra de um jarro como se fosse um ponto de luz.” (GOMBRICH, 2007, p. 367). Também a percepção fisionômica é inata e universal, uma provável decorrência do processo evolutivo, que permite ao indivíduo identificar as intenções do outro, se estas são amigáveis ou hostis, como se fossem metáforas fisionômicas.

As metáforas fisionômicas estabelecem, portanto, uma ponte entre a aparência, ou exterior, e o mundo interior, não racional do indivíduo. A partir da percepção fisionômica, realiza-se uma reflexão crítica, que permite um ajuste entre expressão e comunicação e reação e entendimento. Estendendo as metáforas, pode-se compreender que representar alguém como um animal equivale a atribuir

as qualidades do animal ao indivíduo, algo que muitos artistas, incluindo Goya, fariam.

Figura 1 – Giovanni B. Porta, Homem e Carneiro.

Fonte: Ernst Kris, Psychoanalytic Explorations in Art, p. 342

Em termos estéticos, a caricatura atravessa três momentos principais até ser reconhecida como uma categoria artística. Em seu primeiro momento, é a arte do exagero, em que os traços são carregados ou deformados para que sejam evidenciados: orelhas grandes, pescoços longos, narizes enormes. Por um lado, ao mesmo tempo em que ocorre o exagero de alguns traços do retratado, por outro, busca-se a máxima simplificação na representação, como vemos nas caricaturas de Bernini. No segundo momento, torna-se um recurso ficcional plástico ou literário e, por fim, atinge o valor e a liberdade como categoria moral e estética.

Segundo Mcphee e Orenstein (2011), originalmente, o termo caricatura era aplicado no sentido de caricare, ou seja, carregar ou exagerar os traços do retratado. Posteriormente, no século XVIII, o termo passou a designar um tipo de imagem que não estava necessariamente vinculada a um personagem que pudesse ser reconhecido, mas a uma forma de representação. O termo ainda é empregado

para designar desenhos de rostos exagerados, deformações físicas, objetos inanimados e criaturas bizarras ou animais agindo como humanos.

Figura 2 – Lorenzo Bernini, O Capitão da Guarda.

Fonte: Ernst Kris, Psychoanalytic Explorations in Art, p. 340

A sátira gráfica, diferentemente da caricatura, não tem uma data de origem precisa, embora exista uma tendência a atribuir seu surgimento ao norte da Europa. Após a invenção da imprensa, no século XVI, os artistas passaram a utilizar imagens impressas para satirizar questões políticas e religiosas, envolvendo a Reforma. Uma vez que as gravuras eram produzidas em quantidades, a circulação e a divulgação destas eram muito maiores do que os demais tipos de produção artística. Os truques visuais eram passados facilmente de um artista para o outro e legados para as próximas gerações. Nesse contexto, cabe mencionar as obras de Bosch e Bruegel, importantes no que se refere às representações alegóricas e satíricas dos vícios e loucuras humanas.

É provável que Goya tenha recebido influência de gravadores e pintores flamengos, como Bosch. Os países baixos foram possessão da Espanha de 1568 a 1648, e os reis espanhóis eram colecionadores de obras de Bosch. No acervo do Palácio do Escorial havia nove obras de Bosch, incluindo o tríptico O Jardim das

Delícias Terrenas e a pintura em forma de mandala, Os Sete Pecados Capitais,

onde estão representados: a gula, a avareza, a luxúria, a ira, a inveja, a preguiça e a vaidade. Todos eles com a exceção da ira e da inveja foram representados em Los

Caprichos.

No tríptico, O Jardim das Delícias Terrenas, Bosch fazia alusões à Alquimia, ao bestiário medieval e aos provérbios da época. O propósito era altamente moralizante e tinha o intuito de advertir e amedrontar a humanidade sobre as terríveis consequências de cometer pecados. Em Los Caprichos, Goya também faria uso de uma linguagem pictórica codificada e simbólica, mas, diferentemente de Bosch, não há atribuição de culpa nem a tentativa de causar temor.

Figura 3 – Hieronimus Bosch, O Jardim das Delícias Terrenas.

Segundo McPhee e Orenstein (2011), as sátiras surgiram e se tornaram populares, inicialmente, como obras literárias, como poesias, novelas, peças de teatro e só, posteriormente, na forma visual. Por volta de 1750, algumas gráficas se estabeleceram em Londres, Paris e Nova York, possibilitado que o mercado de gravuras satíricas se expandisse. Existiam, basicamente, dois tipos de sátira visual: a sátira social ou de costumes, que ridicularizava hábitos, costumes, a moda e os tipos, e a sátira política, muito popular a partir do século XVIII, cujos personagens e ações giravam em torno de eventos e personagens da política.

As sátiras sociais e políticas propostas em Los Caprichos abusam do duplo sentido, das ironias, da caricatura e do grotesco e exigem do observador a capacidade de extrapolar a percepção fisionômica dos personagens e as situações para que o sentido metafórico e simbólico possa ser apreendido. Para que possamos compreender o percurso percorrido pelo artista, que culminará nessas obras gráficas passaremos à vida e obra de Goya no próximo capítulo.

3 VIDA E OBRA DE FRANCISCO GOYA

Uma vida humana não é uma fileira de acontecimentos, de coisas que passam, mas tem uma trajetória com uma tensão dinâmica, como um drama. Toda vida inclui um argumento. E este argumento consiste em algo que em nós deseja realizar-se e que se choca contra o entorno a fim de que este lhe deixe ser. As vicissitudes que isto trás consigo constituem uma vida humana. Aquele algo é aquilo que cada qual nomeia quando diz a toda hora: Eu.

Ortega Y Gasset, Obras Completas.

INTRODUÇÃO

Goya nasceu em 1746, em Fuentedetodos, e morreu no exílio, em Bordéus, na França, em 1828, ou seja, viveu 82 anos, trabalhando até quinze dias antes de morrer. Suas obras catalogadas ultrapassam 1.700 peças compostas por desenhos, afrescos, gravuras, cartões para tapeçarias, retratos e quadros. Seu processo criativo e artístico passou por diversos estilos de pintura com maestria excepcional, mas foi a série de gravuras Los Caprichos que lhe abriu as portas para o reconhecimento mundial.