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CAPÍTULO IV: Tematizando as violências

6. Caráter aprendido das violências

Esta seção vai discutir as violências como fenômeno cultural e social (portanto, não exterior ao social, não possível de ser dissociada da vida em sociedade), e pretende mostrar que a “violência” pode ser aprendida, mimetizada, estimulada, incentivada, no entender dos entrevistados, pela televisão, pela convivência com os adultos, pela vida num meio ambiente violento. Comecemos pelo ambiente, e mais a frente se discutirá a influência televisiva.

Nos trechos discursivos das entrevistas, vários de nossos narradores mostraram a crença de que as pessoas podem ser socializadas na “violência”: André diz que “...o cara cresce nos morros, vendo os outros andando armados...”. Ressalta assim o caráter aprendido, mimético da “violência”, agravado pela educação em meio violento: aprende-se a ser violento com o exemplo dos outros. Alexandre, falando sobre como interpreta a ““violência”” das crianças da escola, diz

que a “violência” das crianças vem dos adultos, com quem as crianças aprendem. As crianças e jovens imitariam o comportamento violento dos adultos, se tornando, assim, violentas elas mesmas. Mirtes nos lembra que as violências e a criminalidade são aprendidas desde cedo, “...porque já vem de criança, eles começam tudo novinho, 13, 14 anos...” – os jovens pobres entram para o crime (em especial o tráfico de drogas) cada vez mais cedo (como demonstram os trabalhos de Zaluar, 1993, 1994b).

Marta também acha que é de pequeno que se aprende, como revela sua preocupação com as crianças brincando com armas de fogo. Acredita que “...se os pais proibissem as crianças de brincar com arma, a situação não ia estar assim”. Bárbara compartilha a visão do caráter aprendido das violências, mimetizado dos adultos, absorvido do ambiente: “... para que as crianças depois não venham a reproduzir esse ambiente, que as crianças quando crescerem não sigam este exemplo, exemplo negativo...”. Essa visão que implica que a criança aprende as violências de pequena e depois só as reproduz. Como Marta, se preocupa com a “violência” das brincadeiras: “A gente vê através das crianças a violência que existe no recreio. Essa é uma preocupação de todos os diretores...Eles brincam dando rasteira, eles brincam segurando pelo pescoço, e quando a gente chega eles dizem: “mas é brincadeira, D. Bárbara...”. E aí eu digo: “Mas que tipo de brincadeira?”. Assim, é mais uma entrevistada sinalizando para o fato da socialização das crianças incluir as violências.

Outra a corroborar a visão de que o ambiente torna os jovens violentos é Vera: “...onde é que eles estão jogados, nesse ambiente que está fazendo com que sejam violentos...até cruéis”. Além disso, percebe que quanto mais novo mais violento, pois quer proteção e pertencimento ao grupo: “...quer entrar num contexto para se sentir protegido”. Ela também relata um episódio em que aparece a preocupação com as crianças vendo e podendo imitar o comportamento desviante dos maiores – isso aparece quando conta que deu uma “bronca” em rapazes que

fumavam maconha na rua: “...lá na casa da sua mãe eu nunca vi você colocar camarada pra fumar baseado na porta dela! Mas aqui na casa da mãe dele que trabalha o dia inteiro aí vocês vêm, né? E ainda na frente das crianças, ensinando, fazendo escola, tudo, né?”

Aírton é mais ambíguo: culpa o instinto (roubar como inato). Dessa forma, parece dizer que já se nasceria com a predisposição ao crime, mas diz que esse é um “instinto” “...que se criou ali mesmo no meio dos coisa ruim” – há aqui uma contradição: se é criado num meio social, não é instinto, é cultural. Aírton pode estar sinalizando para o fato de existir uma parcela da população que vive guetificada, na marginalidade, num meio social precário, que favorece o desenvolvimento da criminalidade e das violências, e que estas podem ser aprendidas, ensinadas, mimetizadas por aqueles que crescem e vivem suas vidas neste meio. Acaba assim por corroborar os outros, reafirmando o caráter aprendido, portanto cultural, das violências e da criminalidade.

Nas primeiras entrevistas, não era um dos objetivos aprofundar o debate sobre as violências na televisão. Porém, os próprios entrevistados começaram a citá-la como estimulante e incentivadora para as violências. Assim, foram incluídas nas entrevistas posteriores questões sobre a influência da audiência televisiva sobre o comportamento.

Janayna diz que tem o pensamento formado sobre isso: “...a gente nunca assistiu filme de violência em casa...” (por sinal, a maioria dos entrevistados afirmou não assistir televisão, o que é bastante improvável). Denuncia a deficiência moral das novelas: sexo, “violência”, traição, contra a família e amigos, etc. Diz também não deixar o filho pequeno assistir os violentos desenhos japoneses exibidos diariamente: “Os desenhos, esses agora...nem sei o nome, aqueles japoneses, isso também meu filho pequeno gostava mas a gente não deixava ele assistir.”

Vários entrevistados denunciam o sensacionalismo e a banalização, a espetacularização das violências na televisão, como Joanna: “...parece que jornalista gosta de sangue, não de notícia”. Diz que desliga a tela, não assiste (como dito acima, ninguém assiste...). Mas ela acha

que quem assiste, aprende o crime: acredita que a televisão é a nova escola do crime. Se preocupa muito com a bisneta assistindo programas violentos. Como ela, também Eduardo, critica a vulgarização e a banalização da “violência” na televisão. Ele percebe também uma mudança: a antiga visão que se tinha da cadeia, da prisão como escola do crime sendo substituída ensino da criminalidade através da televisão. Voltamos aqui ao tema do caráter aprendido da “violência”, mais uma vez: “...Parece que hoje não precisa mais de cadeia pra ensinar o crime pra gurizada, a TV já ensina: ensina como que rouba banco, ensina a montar sua boca de fumo, ensina a assaltar casa, ensina seqüestro-relâmpago, ensina tudo..”. Ressalta a influência negativa da televisão na formação e desenvolvimento da mentalidade e moral infantil, e a falta de imposição de limites à programação televisiva.

Nisso, Eduardo e Joanna compartilham com Mirtes noção da televisão como escola do crime. Para esta: “...mas tem também a televisão, né? A própria TV já tá mostrando com matar, como roubar, tudo (...) Acho que a Tv ensina, né, dá idéias pras crianças, elas já crescem achando que aquilo ali é normal, né, todo mundo se batendo, se matando...”. Aqui ela revela a percepção da televisão como contribuinte para a banalização e normalização da “violência”. Bárbara também lembra que as crianças vivenciam as violências não só na comunidade, mas que a própria televisão traz, a televisão ensina.

Outros vêem a televisão como incentivadora das violências, como Marcelo, Luís Fernando e André: Marcelo afirma que a televisão influencia muito as pessoas, e, como os outros, diz que não assiste, que não tem mais nem vontade, porque há muita “violência” na tela, até nos desenhos para crianças. Sobre o aprendizado das violências através da televisão diz que “...é só violência que você vê, e o seu subconsciente vai guardando um monte de coisa, entendeu? Você acaba lembrando disso aí, em algum momento pode ser que você vá querer usar uma situação daquela ou pra se safar, ou se sobressair em cima de alguém...”. Ele alega sua inocência, diz que

não age assim, mas que tem gente com falta de informação que é influenciada: cita como exemplo casais homossexuais na novela, e diz que aquilo não é normal, mas que uma criança que cresce assistindo isso pode pensar que é, incentivada pela televisão. O mesmo vale para o uso de drogas, muitas vezes apresentado como normal.

André vê a televisão como incentivadora da “violência”, a imprensa como tendo gosto por sangue, sensacionalista, apelativa, instigadora da “violência”. Vê incentivo da Rede Globo (na novela “América”) aos imigrantes ilegais, o que para ele é uma “violência contra a própria pessoa”. Acredita que se as pessoas fossem educadas e tivessem discernimento, a televisão não influenciaria tanto. Pede, portanto, por uma educação para a paz, e faz uma crítica à mediocrização da cultura televisiva: “...tem a criancinha que cresce (...) vendo novela, programam do Ratinho (...) e fala pra menininha dançar na boca da garrafa, dá shortinho da Carla Perez, não dá...”

Outros criticam a programação televisiva por não cumprir o papel educacional que caberia a ela, como Aírton, que acha que televisão deveria ser responsabilizada pelo que ensina. Deveria devia educar mais, passar mais programas educativos e menos violências. Também critica a normalização e banalização das violências na televisão. Luís Fernando faz uma crítica à constante resolução de qualquer conflito nos programas televisivos por meios violentos: “...na TV, parece que estão dizendo que a vida se resolve pela violência”. Até os heróis, que deviam ser exemplo, resolvem as coisas através das violências, não tentam a resolução pelo diálogo, pela negociação: vê um discurso em favor da “violência” na TV.

O caso de Vera é especial aqui, pois sua relação com a mídia, como vimos, é já bem outra: faz duras críticas, pela difamação promovida pela imprensa contra seu filho. Mas além disso, diz que “...a mídia é miserável neste momento, porque ela quer vender sangue, e ela só vende sangue, é miserável...”. Ela lembra o aumento da audiência dos programas de noticiário

policial, “...que só mostram corpo caído, os meninos mortos, e não contente com isso às 18 horas começa um banho de sangue em rede nacional. Eu não aceito isso, acho que é um desrespeito aos mortos e um desserviço da mídia para a sociedade”.

Percebe-se que todos os entrevistados imputam à televisão um papel proeminente na propagação das violências. Ela é vista como incitando, estimulando, ensinando, influenciando o comportamento dos que a assistem, e seus programas são vistos como excessivamente violentos, e pouco educativos neste sentido. Porém, seu papel na produção de comportamentos não está claro. Segundo Katz (1995), a relação entre comportamento violento e as violências expostas na mídia ainda é pouco conhecida e muito controversa.

Os entrevistados, no entanto, acreditam que a mídia desempenha um papel na construção da percepção de segurança da população. Há nas falas deles uma visão do medo e da superexposição das violências como uma mercadoria rentável, e uma visão de que a rotinização das notícias sobre eventos violentos cria uma normalização, uma banalização das violências. Para os entrevistados, falta ética na divulgação de eventos violentos, contribuindo para o sentimento de insegurança da população, pois descontextualizam eventos, estigmatizam suspeitos, espetacularizam as violências.