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CAPÍTULO IV: Tematizando as violências

8. O que fazer? Formas propostas de enfrentamento

Muitas alternativas de enfrentamento foram tentadas, em um momento ou outro, para tentar solucionar o problema social das violências: repressão, prevenção, educação, programas sociais, intervenção, não-intervenção, prisão, tratamento psiquiátrico, entre muitas outras opções de enfrentamento. Porém, as violências continuam grassando na sociedade, a despeito de todos os esforços para diminuí-la, tanto por parte dos governantes como por parte dos indivíduos ou da sociedade civil organizada. Vejamos que alternativas propõem nossos entrevistados:

Alguns acreditam que as soluções seriam funções de governantes: diminuir a desigualdade, dar educação, saúde, emprego e habitação. Para Eduardo, as soluções passariam em primeiro lugar pela melhoria de condições de vida das camadas empobrecidas, assim como acredita Aírton. Este acha que a resolução passa pelos governantes, que devem oferecer educação, meios dignos de sobrevivência, mas acha que primeiro deve ser solucionado o problema da corrupção: “...os governantes só querem roubar e não querem ajudar o povo. Eu acho que a única solução é o estudo, um hospital bom, uma escola boa, tudo do bom e do melhor para esse povo que não tem nada...”. Outro que pede melhoria das condições de vida da população para dirimir as violências é Marcelo, para quem a solução é “tirar as crianças jogadas na rua” – a rua aqui aparece como sinônimo de vida ruim, desregrada, “violência”, droga,

abandono. Quer cuidar da crianças, pois serão o futuro – dar educação, trabalho, profissão – “oportunidades”. Pede por maior participação e movimentos da sociedade civil, pela ineficiência do Estado nestas questões: “Lugares aí, associações, ONGs, que vão incentivar”, e critica a escola e sistema de ensino, que deveriam ser mais relacionadas com a realidade dos jovens. Diz que os meninos saem da escola perdidos, “...no mundo mágico de Oz” – ou seja, saem da escola fora da realidade, em outro mundo, sem perspectiva.

A solução de Bárbara é o governo entrar na comunidade, ver o que falta, e “...partir para mudança. Mudança não, transformação”. Como Dona Marta, evita o tema das violências, partindo do contrário, paz, amor, respeito, solidariedade, perdão. A solução é estabelecer relação, comunicação, diálogo, através de carinho, afeto. Acha que devido à falta de ambiente de convivência familiar nas comunidades pobres a obrigação de educar recai na escola. Acredita no poder transformador da educação: “poder que nós temos em nossas mãos, o poder de mudar os alunos, mudar suas vidas, mudar seus pensamentos. Quem faz isso é a família, claro, mas o professor também tem esta responsabilidade”. Quem também acredita no poder da educação é Luís Fernando: acha que as únicas soluções para a “violência” são reflexão e educação – “...acho que não tem outra forma”. Para ele, não adianta querer que ONGS substituam o trabalho de polícia, o que podem fazer é: organizar comunidade, ajudar a refletir, formar grupos de discussão sobre “violência”, sobre direitos, etc. Cada um deve pensar sua forma de ação, mas a dele e da casa que dirige em geral é uma proposta de educação e conscientização.

Para Marta, a solução é falar, é o diálogo: “...por isso que eu acho que tem que falar do amor, se tivessem um amor em casa, um diálogo” – se a “violência” é advinda da falta de comunicação, fala do contrário, de paz e amor. Só que para ela a educação para a paz vem de casa, não se aprende na escola, como acredita Bárbara. Além disso, para ela, como vimos anteriormente, o que solucionaria o problema seria uma equação: “trabalho + educação = menos

violência”. Como diz o ditado popular, para ela mente vazia é a morada do demônio. Suas soluções: família, oração, educação e trabalho. Diz que a atuação da polícia é importante neste sentido, mas não do jeito que é. Não critica a polícia, mas os padrões de policiamento. Pede por polícia comunitária e não violenta contra os jovens “...polícia permanente... para conhecer essas crianças...pessoas, mas não para bater...para falar, conversar com eles”. Também não quer polícia after the fact: só vem recolher o corpo e fazer perícia. Acredita que a presença da polícia na comunidade a inseriria na “realidade” do morro e inibiria os criminosos.

Outro que pede por mais polícia e justiça é André, que propõe, além de melhor educação, mais punição, a eliminação da impunidade (que incentiva e motiva novas ações criminosas e violentas). Tem uma visão da lei como ordenadora do social – “...as leis existem e devem ser cumpridas”. Por isso, critica a polícia que prende, bate e solta (como, veremos a seguir, dizem Janayna e Joanna). Acredita que, se alguém comete uma “violência”, tem que cumprir pena e ser reeducado.

A resposta de Janayna é surpreendente, pelo que entende por “reeducação”: sugere combater a “violência” com mais “violência”, ao menos em casos de agressões contra a mulher: “...eu acho que o cara...tem que ser preso...e tem que apanhar!!!” – sua solução é o olho por olho, dente por dente. Acredita que a mulher que sofre “violência” deve denunciar o agressor e sair de casa – a saída é cortar relação, pois, segundo ela, “...homem que bate não dá”. Além disso, hoje em dia, nesses casos, a polícia prende e solta, e o agressor volta pior, querendo descontar na mulher os maus bocados que passou na cadeia. Isso revela sua crença na incompetência e incapacidade de instituições de ordem. Então a solução é o olho por olho: cadeia, pancada, multa (“mexer no bolso, a parte mais dolorida do corpo humano” – o bolso também sofre com “a violência”...) e aula. Ou seja, punição, educação e “violência”. Ou melhor: educação mais “violência” igual a punição. Tem consciência de que sua resposta é motivada por raiva e

indignação: “...eu sei que tô falando isso com o coração cheio de raiva, mas a boca fala o que o coração tá sentindo, né?”.

Cada um apresenta as soluções mais relacionadas com o tipo de violências que sofreu. Mirtes, por exemplo, vê a solução para o problema das mortes de jovens relacionadas às drogas como sendo: “...uma lei que as mães conseguissem internar os filhos quando eles caíssem nas drogas” –Assim, acha que as soluções passam pelas leis e, consequentemente, pelo governo – este deveria se voltar para jovens do morro envolvidos no narcotráfico. Acredita também que mais polícia ajudaria muito: “Ah, é a polícia, né?...se tivesse mais polícia resolvia”. Joanna também propõe colocar mais polícia na rua, mas enfatiza, como Janayna, que não adianta a polícia que prende/bate/solta – ela exige punição, acredita que com a atual impunidade nada mudará. Mas é descrente, desesperançosa: “...acho que esse problema não tem solução, nada vai adiantar.”

Vera quer mudanças mais radicais – pede novo ordenamento da sociedade, nova construção, nova constituição, visibilidade para negros e pobres, que estão sendo exterminados com autorização tácita da sociedade, que pensa que a “violência” não vai afetá-las, que elas não tem nada a ver com isso...Cobra consciência social e atitudes de “poderosos” para evitar a “violência”: “...essa questão da violência passa realmente por uma tomada de consciência, que é de todos, e principalmente o ‘todos’ homem, branco, poderoso, rico, não é por nós.” O que ela, pobre, negra, pode fazer, é “salvar os seus, a ti e tua casa”. Os esforços devem ser começados pelos arredores, numa espécie de “descentralização” do auxílio, porque “...hoje tá tudo muito individual, entende?”. Critica o “trabalho comunitário” atual: para ela, as ONGs são mercenárias e incompetentes. ajuda, para ela, deve ser holística, ajudar em todos os lados. Critica os que dizem “dar oportunidade”: diz que é uma “merda institucionalizada”. Sua solução: a empatia pela alteridade: “...eu acho que toda a coisa passa por você olhar o outro.”. Para ela, cada um

deve fazer sua parte em tolerância, respeito, crítica social – ela tenta, mas se decepciona com sua própria impotência. Acha que a situação de violências que vivemos só vai melhorar com mudanças na urbanização, luz, água, esgoto, educação, vida digna – nisso, faz críticas aos governantes e políticos, que não cumprem suas obrigações e ainda são ineptos, corruptos, nepotistas – vai mais longe, e diz que só com revolução para dar jeito: “Tenho que ser obrigada a dizer: vai lá e quebra tudo! Porque desse jeito só quebrando tudo! Enquanto não houver realmente um pouco de vontade...”.

Assim, vemos que as soluções propostas para as violências passam em grande parte pelo governo, pelas autoridades, e pelas instituições: pedem educação, emprego, habitação e saúde dignas, o fim da impunidade e da corrupção. Alguns propõem esforços individuais, mas sentem a própria impotência, e reconhecem que sozinhos pouco podem conseguir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Esta dissertação teve como objeto as formas pelas quais os sujeitos narradores expressam suas experiências de eventos violentos, e pretendeu demonstrar a multiplicidade de ações, valores e representações que recaem dentro do significante “violência”. Procurou-se identificar as formas de expressão partilhadas destes eventos, assim como a compreensão que as pessoas vivenciaram estas experiências têm deles: para tanto, as narrativas de experiência pessoal se constituem numa “janela” privilegiada para a análise dos significados que os sujeitos de pesquisa imputam as suas experiências. Como vimos na discussão metodológica das narrativas, estas são instrumentos muito úteis para a análise de processos e dramas sociais (TURNER, 1981). Ajudam a compreender as formas pelas quais as pessoas interpretam os eventos que vivem e a si mesmas. Elas são um meio essencial de dar sentido à experiência: ao narrar, reorganiza-se essa experiência, ordenando eventos de outra forma desconexos. As narrativas simultaneamente nascem da experiência e dão forma a essa experiência. Nesse sentido, a narrativa e o self são inseparáveis (OCHS & CAPPS, s/d, p.20). Não são apenas representações da realidade. Elas moldam a forma pela qual nós entendemos e nos sentimos sobre eventos, a maneira como os interpretamos. Os narradores avaliam eventos específicos em termos de normas, expectativas e potencialidades sociais: idéias comunais do que é racional e moral, bom e valoroso num determinado momento, numa dada situação. Procurou-se nesta dissertação mostrar os distanciamentos e aproximações entre as perspectivas dos entrevistados, de forma a, partindo de vivências singulares e particulares das violências, expor a maneira pela qual se articulam a experiência e o sujeito que emerge quando da expressão desta experiência. Podemos perceber, nas narrativas, os próprios narradores surgindo como sujeitos, portadores de moral, de interesses, valores, julgamentos, emoções, sentimentos.

Vale ressaltar a complexidade do campo teórico do estudo das violências, conforme discutimos na seção dedicada ao debate acerca das mesmas: este campo abrange inúmeras atitudes, conflitos, relações, julgamentos morais, agressões, ameaças, formas diferentes de perpetrar as violências. Nesta dissertação, não há como dar conta de tal complexidade, trata-se apenas de um inventário da multiplicidade possível quando se tenta pesquisar as violências. Assim, procura somente apresentar interpretações possíveis de vivências reais, e mostrar algumas de suas conseqüências.

Existe uma dificuldade em conceituar as violências teoricamente, como vimos no capítulo II. Os sujeitos de pesquisa expressam também esta dificuldade, e constroem várias teorias “nativas”, próximas da experiência, e cada entrevistado exibe a sua, a maioria permeada de indignação; mas sabe-se muito bem as soluções: educação, emprego, saúde, distribuição de renda, habitação decente, urbanização, vida digna, investimento social dos governantes, a luta contra a corrupção e impunidade, o fim da apatia e inércia que mantém o status quo. Isto é correlato do que discutimos acerca do fato do significante “violência” apresentar um campo semântico em constante expansão (RIFIOTIS, 1999). Vários significados são incorporados pelos sujeitos a esse significante, de tal forma que praticamente qualquer problema social pode ser relacionado a ele.

Vimos que pesquisar sobre as violências traz muitas dificuldades, pois se trata de um tema que envolve dor, sofrimento, negação: as pessoas não comparecem às entrevistas, evitam o assunto, despistam o pesquisador, dias e dias se passam sem nada a acrescentar. É difícil encontrar uma “janela aberta” por onde o pesquisador possa observar o que acontece na vida das pessoas que sofreram com as violências. Isso se deve ao fato do tema das violências estar sempre ligado, no imaginário social, ao medo, à negação, ao sofrimento, à exterioridade, à indignação, ao

risco, ao perigo, à dor, à morte. Por isso os despistes, a evitação têm grande significação aqui: representam formas culturalmente partilhadas de percepção social sobre o tema.

Porém, como dito acima, a análise das narrativas de experiência pessoal permitiu uma abordagem do tema que não replicasse o discurso. Tentou-se demonstrar as diferentes formas pelas quais, através de suas narrativas, os sujeitos expressaram os eventos violentos que sofreram, e como, nesse ato de narrar, acabaram reconstruindo, reordenando suas experiências de forma narrativa, numa espécie de catarse. Para atingir esse objetivo, recontaram os eventos, e ao fazê-lo, construíram identidades, e as contra-identidades dos que os ameaçaram ou agrediram, freqüentemente caracterizando-os com estereótipos, como monstruosos, “de fora”, drogados, briguentos, etc.; e desta reconstrução pudemos ver emergir um sujeito social, com críticas, indignação, medo, preconceitos. Esse sujeito que emerge das narrativas coletadas, em geral, atribui relações causais para as violências sofridas: a exterioridade do “Outro”, a inércia da sociedade, a guetificação, o preconceito racial e social, as drogas, a exclusão, a precariedade das instituições de ordem, entre outras, e criticando os que consideram responsáveis por seu sofrimento. Tais críticas têm caráter reivindicativo, e mesmo político, mas também se ligam a concepções morais, pois, como vimos, a interpretação e a própria categorização de atos como violentos se deve à qualificação moral imposta pelos sujeitos a esses atos, ao que Ochs e Capps (2001) denominam “moral stance”, ou o posicionamento moral do narrador, identificável nas narrativas de experiência pessoal.

As narrativas recolhidas demonstram que os eventos violentos têm uma produtividade (conforme vimos na discussão de Simmel, 1964, e Rifiotis, 1997,1999): geram posicionamentos, rompem ou alteram relações sociais e familiares, produzem alterações na vida das pessoas, na forma como se vêem e como encaram a vida, causam doenças psicossomáticas, traumas físicos e psicológicos. Geram o medo, a desconfiança, a evitação, a indignação, a depressão, a tristeza, a