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CAPÍTULO III As experiências das violências:

2. As discussões e as violências: Alexandre e André

3.2. Marcelo

Marcelo é paulistano, casado, mora em Florianópolis há 6 anos, tem 29 anos de idade, se define como salva-vidas de profissão, nível superior incompleto. Eu conheci Marcelo pois sua mãe era minha vizinha, e me apresentou a ele, antes do evento narrado abaixo. Nos tornamos amigos, e quando aconteceu o assalto, ele já conhecia meu tema de pesquisa e se prontificou a me conceder a entrevista. Na entrevista concedida em sua casa em agosto de 2005, inicio já perguntando como foi o assalto que sofreu no seu antigo emprego:

“Eu trabalhava no posto de combustível na Lagoa da Conceição, ali na frente do La Pedrera, o forró, e o assalto aconteceu de madrugada. Eu trabalhava de caixa na madrugada, no período das 23:00 até umas 07:00 da manhã, e por volta das três horas da manhã, mais ou menos, eu estava atendendo pela janela, porque a porta não estava mais aberta, a gente estava fechando para evitar justamente o roubo, e o cara chegou pela janela, assim como se fosse comprar uma cerveja, ele estava com uma cerveja na mão, mas estava encapuzado, estava ele, e depois chegou mais um, e no momento eu estava agachado, mexendo no dinheiro, no momento que eu vi os caras eu ganhei que eles iam me assaltar. Aí eu levantei, e quando eu levantei o cara já estava apontando a arma: “Vai, dá o dinheiro, dá o dinheiro!”. E como o dinheiro estava embaixo, eu fiquei com medo de me movimentar rápido e os caras atirarem, né, e disse pra eles: “Calma, calma, calma!”, já levantando as mãos, daí um deles, o que estava desarmado, virou pro outro e falou assim: “Vai, vai, atira nesse cara aí...”, e me xingando, né, de tudo quanto é coisa... “Atira, atira, atira...”, e o cara atirou, né? Só

que a bala não saiu. Daí, pô, nessa hora que o cara apertou o gatilho, eu, “Pô, calma, calma, espera aí...”, comecei a gritar apavorado, né, não sabia...não sabia na real o que estava acontecendo... Na real, achei que ele tinha me acertado e eu não estava nem sentindo, entendeu? Cara, aí nisso, eu meti a mão embaixo, eu tinha separado uma parte da grana, entendeu? Como eu tava mexendo no dinheiro, quando eu vi os caras chegando, eu separei uma partezinha da grana, então eu dei na faixa de uns duzentos reais pros caras. E nisso, na hora que eu abaixei pra pegar o dinheiro, o cara de novo: “Atira, atira!”, e quando eu peguei o dinheiro assim, o cara disparou outro! Que também não funcionou, mas o cara deu em cima de mim, na direção da cabeça...O primeiro eu acredito que não tinha bala na agulha mesmo, mas o segundo tinha, e falhou...Foi Deus mesmo, o bagulho foi embaçado. E aí eu dei o dinheiro na mão dos caras e eles correram, ‘tá ligado’... Meu, eu não tinha feito nada, nada, nada, não tinha nem me movimentado direito, pra falar a real. Os caras chegaram, a bem dizer, atirando. Porque eu dei uma demorada, não sei, falei pra eles terem calma, que o dinheiro estava embaixo ali, o cara já ficou cabreiro, achou que eu ia pegar algo, ou tentar alguma coisa, não sei. Só sei que o bicho tremia pra caramba. É gente que...pô, toda noite ali no posto tinha um traficantezinho, com certeza é gente que estava por ali que estava vendo o movimento, sabia como que era, entendeu?”

Marcelo principia sua narrativa de evento violento com uma contextualização, uma orientação, para dar verossimilhança à narrativa, já que o caso é “incrível”, dada sua sobrevivência aos tiros: conta o que estava fazendo, onde, e o horário. Relata que o posto estava com a porta da loja fechada, atendendo pela janela, uma forma de medida preventiva frente aos inúmeros assaltos a postos de gasolina na Grande Florianópolis. Estes já se tornaram locais visados pelos assaltantes. Narra também como estava mexendo no dinheiro e percebe dois encapuzados com a cerveja na mão se aproximando, e já antevê o assalto à mão armada. Quando os assaltantes apontaram a arma, e pediram o dinheiro, ele levanta as mãos, tem medo de se movimentar rápida ou bruscamente, pede calma, uma mostra de que seguiu a padronização de comportamentos em situação violenta: não reagir, não se movimentar bruscamente, erguer as mãos. Mas a despeito dele ter a atitude esperada, os assaltantes atiram, mas a bala não sai: Marcelo sofreu uma tentativa de homicídio. Ou melhor, duas, pois eles atiram novamente, e mais uma vez a cápsula não é deflagrada. Ele começa a gritar “...apavorado...não sabia na real o que estava acontecendo...”. Dá mostras aqui da confusão mental, da desorientação causada pelo ato violento; pensou até que tivesse sido atingido e não estava sentindo.

Marcelo mostra mais uma vez um comportamento padronizado em relação aos assaltos: quando percebeu que seria assaltado, separou uma pequena quantia para lhes entregar sem comprometer tudo. Em sua avaliação ao final, diz que acreditar que o primeiro disparo não tinha bala na agulha, mas o segundo tinha e falhou. Sem explicação para tamanha sorte, a atribui a Deus. Aqui revela outra tendência dos entrevistados quando se deparam com um evento incontrolável ou inexplicável: remeter a explicação à religiosidade, ou à sorte. Clifford Geertz (1989) afirma que a religião, e os símbolos associados a ela, funcionam no sentido de trazer interpretabilidade ao que aparece na realidade como caótico, desordenado, incompreensível. Fornecem um modelo da realidade, e um modelo para a realidade, facilitando assim as relações, os processos nos sistemas físicos, orgânicos, sociais e psicológicos. No caso em questão, a sobrevivência foi incrível, e ele não encontra outra explicação a não ser na religião. Mas voltemos a Marcelo:

Alegando sua inocência na situação, pois segundo ele não havia feito nada, reafirma ter tido o comportamento esperado e padronizado. Assim não compreende porque os assaltantes “chegaram, a bem dizer, atirando”: falta interpretabilidade, falta motivo para a ação violenta, além de revelar a imprevisibilidade do comportamento do agressor. Mas mesmo assim ele tenta interpretar os motivos da agressão: “...talvez porque demorei, abaixei, acharam que ia pegar algo...”. Mas ele percebe o medo também nos agressores: lembra que tremiam muito.

Ele também formula a identidade dos agressores: afirma que se trata de traficantes, que sempre estavam por ali e sabiam como era o movimento. Além disso:

“Como estavam encapuzados, não reconheci, mas eles eram daqui, tinham aquele sotaque manezinho inconfundível...Devem ser os mesmos que assaltaram quase todos os postos de combustível do leste da Ilha...E ficam fazendo tráfico em vários lugares, na Lagoa mesmo, ali naquele Querubim...E nos postos de gasolina, sabe...Esperaram matar um lá no Rio Tavares (referência à morte do frentista no posto Gallo do RT) para realmente parar às três da manhã...Agora na real nem é três da manhã, antes parava de vender bebida essa hora, agora nem

abre mais...Agora todos fecham meia noite e só reabrem às seis ou sete da manhã, não sei direito, mesmo porque depois disso eu parei de trabalhar lá.”

Assim, os criminosos aparecem para Marcelo como ligados ao tráfico de drogas, como manézinhos, isto é, nativos da Ilha de Santa Catarina, e autores da onda de assaltos a postos de combustível em Florianópolis. Quanto a isso, revela indignação com a falta de preocupação das autoridades e dos donos de postos com a possibilidade de assaltos, e que estes só têm uma postura reativa, e não pró-ativa: esperaram que morresse um frentista em serviço para tomarem providências. Quando pergunto a ele sobre as possíveis motivações dos assaltantes, ele me responde que:

“Decerto para usar droga. Ou para comprar droga para vender, ou para usar, e tal, loucura... Não digo que é para adquirir nada, porque, sabe... o cara que tá fazendo desta forma não quer adquirir nada, juntar, adquirir nada maior. Se ele quisesse adquirir alguma coisa e mudar de vida depois, estava só fazendo seu pé-de-meia, adquirir e dar uma mudada naquela situação que ele tá naquele momento, ele não ia chegar atirando. Ele ia ser o mais sutil possível pra não se queimar, pra poder fazer mais uma vez, duas, como tem ladrão por aí que tem ‘sucesso’, né, entre aspas...”

Aqui, Marcelo fornece uma interpretação da motivação dos criminosos, que ele remete ao uso e tráfico de drogas. Fornece também uma explicação da lógica que o levou a essa conclusão: diferencia o crime “por necessidade”, para “adquirir”, fazer seu “pé-de-meia”; ou por “loucura”, ou seja, drogas. Pergunto então a ele se o episódio foi o motivador de sua saída do emprego:

“Foi, foi. Era um trabalho para o qual na verdade eu não estava acostumado, já tive comércio próprio, nunca tinha trabalhado assim com carteira assinada, trabalhei um tempão como salva-vidas antes de ir pra lá, vi um monte de coisa que não estava legal, até essa parada aí da violência aqui em Floripa, eu vivia falando pra quem dirigia lá: “Olha, isso aí, enquanto não morrer um, isso não vai mudar, vocês têm que fazer diferente, tem que fechar, o fluxo de pessoas de madrugada é diferente, é só gente que vem aqui só comprar 5 cervejas, se gastar 50 reais aí é muito, não vale a pena, dá prejuízo, e tal”, falava, falava, e não adiantou nada. Só depois que mataram um lá no Rio Tavares, no posto de lá, que eles resolveram fechar aí à meia noite, não deixar mais beber bebida alcoólica no pátio do posto, entendeu? Esperou acontecer, esperou morrer um pra neguinho acordar...Sindicato de dono de postos, e até autoridades, aí, polícia, e quem tá fazendo as leis aí, tava todo mundo dormindo, e a gente lá tomando tiro.”

Nesta avaliação do evento, relata as mudanças em sua vida: a falta de segurança e “essa parada aí da violência” em Florianópolis foram dois dos motivos que o levaram a sair do

emprego como caixa no posto de combustível. Além disso, transparece a formulação de sua auto- identidade: já teve comércio próprio, nunca tinha trabalhado assim, foi salva-vidas muito tempo. Revela também uma visão do crescimento das violências em Florianópolis: estava já prevendo a morte de alguém em um dos inúmeros assaltos a postos, o que acabou acontecendo. Inclusive, alega ter dito isso diversas vezes para os responsáveis pela administração do posto, mas sem efeito. Daí seu sentimento de impotência frente às violências sem deter o poder decisório, e seu inconformismo com os “poderosos e autoridades”, que deveriam cuidar da segurança, mas não o fazem, enquanto os funcionários de postos de combustível são vitimizados: “...todo mundo dormindo e a gente lá tomando tiro...”.

Podemos perceber que Marcelo se caracteriza como alguém que deve a Deus sua sobrevivência, e que não aceita mais trabalhar numa situação que envolva tamanho risco à sua vida. Se identifica como de outra profissão (salva-vidas), e que não precisa trabalhar em tais condições. É um sujeito que critica a inércia e a falta de preocupação de “poderosos e autoridades” com a falta de segurança nos postos de combustível de Florianópolis, a quem remete a culpa pelo evento violento que sofreu. Quanto aos assaltantes, os caracteriza como motivados pelas drogas, pelo consumo ou pelo tráfico, uma associação muito comum quando se trata de identificar os agressores. É um sujeito que ressalta também a falta de interpretabilidade dos eventos violentos: mesmo sem ter reagido, se tornou alvo de disparos, revelando que nem sempre a atitude padronizada em situação violenta ameniza o ímpeto dos agressores.

4. Ameaças como “violência”: