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CAPÍTULO IV: Tematizando as violências

7. Refletindo sobre as violências

Até hoje, não há uma definição precisa de “violência”. O fenômeno é de tal forma inexpugnável a explicações que mesmo os mais clássicos autores, os mais brilhantes sociólogos, antropólogos e filósofos, falharam em definí-la. Há muito debate, mas poucas certezas neste campo. Por isso, tentei captar nesta pesquisa o significado das violências para aqueles que a

sofreram, o seu significado vivencial, a teoria que os entrevistados forjam quando forçados a refletir sobre suas próprias experiências. Vejamos:

Alguns entrevistados vão de encontro à definição de Levinas apresentada na discussão teórica desta pesquisa, a saber: “...violência será encontrada em qualquer ação na qual alguém age como se estivesse só para agir; como se o resto do universo estivesse ali apenas para receber a ação”. (LEVINAS, apud DE VRIES, 1997, p.16). Assim, para André “violência” seria qualquer interferência negativa na vida dos outros ou na sua própria, e nem precisa ser humano, pode ser qualquer ser vivo. Então, qualquer ação que interfira na vida dos outros sem o consentimento deles. E, quando perguntei a ele sobre se achava que “a violência” estava aumentando, ele respondeu sobre aumento da criminalidade, revelando uma equiparação de conceitos, tal como Eduardo. Este também repete a pergunta, como a maioria, e faz várias pausas para pensar. Sua definição só inclui “violência” física, contra a pessoa: porrada, el kabong, soco, chute, tiro, facada, estupro, homicídio, “violência” doméstica, contra a mulher e a criança, afirma ter sofrido maus tratos por parte do pai na infância, e nega qualquer “violência” contra os futuros filhos. “O que mais? Acho que é isso aí...” – mas não tem certeza, sempre fica meio incompleto, e os próprios entrevistados têm consciência disso. Quando perguntado o que seria crime, afirma que há dois tipos – quando não te pegam, você está (é) do crime; e quando te pegam, você foi condenado por tal crime. Relaciona crime e punição, e exibe o crime como categoria que abarca os criminosos enquanto grupo – “o crime” representa todos os que vivem à margem das leis, que não as seguem em sua vida cotidiana. E, como André, equipara “violência” e crime, mas para Eduardo, “violência” é quando se faz, é o ato, e o crime é a punição.

Outro que segue, em linhas gerais a definição de Levinas é Marcelo, que, quando perguntado o que seria a “violência”, pausa 10 segundos para pensar, repete a pergunta, diz três vezes que não sabe direito, e diz que para ele é desde “tratar mal uma pessoa” (seria a

discriminação?), “falar mal de alguém” (“violência” das palavras e atitudes relacionais), e mais a “violência” física (agressões, brigas). Quanto ao que seria crime, diz que é “...quando invadem sua privacidade, tocar no seu corpo, sem você deixar, ou prejudicar” – crime aqui é associado com a violação da sacralidade do corpo, da individualidade. É prejudicar outras pessoas no seu benefício, e “...não querer nem saber...”. Para ele, “...ninguém quer saber de nada, ninguém se importa com os outros”. Relaciona assim “violência” e crimes com o individualismo, o egocentrismo, a falta de preocupação com os outros, a falta de empatia pela alteridade, como está em Levinas.

Outra entrevistada que ressalta a falta de relação, a falta de empatia, de se colocar no lugar do outro é Marta: ela define a “violência” pela falta de atitudes relacionais: “...falta de amor, de carinho, de diálogo com as crianças” – falta relação, falta comunicação, no que tem paralelo com o que afirma Arendt (1988), que afirma que há erupção de violências por causa de falhas na capacidade de diálogo. E também vimos que para ela a arma de fogo é a essência da “violência”, é a “pura violência”, que traz a morte “a maior das violências”. E ela diz também que não sabe nem o que dizer sobre isso, revelando a estupefação, a falta de definição, falta de compreensibilidade e interpretabilidade do fenômeno da “violência”.

Outros relacionam diretamente, como vimos anteriormente, as violências às drogas, como Alexandre e Joanna: Alexandre, como muitos outros, repete pergunta, como que ganhando mais tempo para pensar, pois não é tarefa fácil definir as violências; e quando responde, associa diretamente a “violência” atual e drogas. Para ele, as violências nos morros e periferias estão intrinsecamente ligadas às drogas, às dívidas causadas por drogas, ao acerto de contas do narcotráfico. Joanna, como Alexandre, também faz esta associação: “Ah, violência pra mim é droga, né? Pelo menos eu acho...”. Além disso, vê “a violência” como falta de auto-controle, o

que o álcool e as drogas fazem de melhor: “A bebida, as drogas, levam a pessoa a não se controlar, né?”.

Para Janayna, o que passou, sua experiência, foi uma “tripla violência”: “violência” física, moral e psicológica. Agora, para ela, “...tudo que vem dele, até uma palavra, é violência”. Obrigá-la a se prostituir também é “violência”, o jeito como fala com ela, as ameaças que faz de espalhar o fato dela se prostituir também são encaradas como formas de “violência”. Tudo vindo do agressor agora é identificado como “violência”: palavras, atitudes, agressões, humilhações, danos psicológicos.

Outros nos revelam o senso comum das violências, como Bárbara: “...perguntar a idade é uma violência”. Além disso, ela vê a “violência” como arena central de debates na sociedade: “hoje em dia o que mais se fala é sobre a violência, é a violência, violência, violência em todos os cantos, não é?”, revelando também uma visão de excesso de “violência” na sociedade. Sua definição é bem ampla: “Para mim violência é um ato, uma fala, algo que se faça para alguém. A violência hoje tá mais assim entendida como dar uma facada, dar uma punhalada, dar um tiro, mas a violência é ainda muito mais coisas, como por exemplo, o frio, quanta gente morre na estrada por causa do frio, não é uma violência? A fome, pra que né, uma violência maior que a fome não existe...”. Assim, Bárbara vê a “violência” presente nas ações, nas palavras, nas intenções. Se opõe à visão da “violência” como simplesmente física: é bem mais que isso – frio, fome, pobreza, miséria. Diz que a “violência maior” acontece quando as pessoas não têm o que fazer, não têm dinheiro e querem comprar alguma coisa – a falta de emprego, somada ao desejo de consumo, leva as pessoas a cometerem atrocidades. Afirma que as mortes no trânsito também são violências, como nos rachas, onde as pessoas se arriscam – para ela, isso é “violência” contra si mesmo, falta de apreço à vida humana, mesmo à própria vida. Também vê o analfabetismo como “violência”: “Porque não saber ler para mim também é violência...”.

Como ela, Luís Fernando também apresenta uma definição bem ampla, relacional – “...situações ou atitudes que contrariam a vida, que atentam contra a dignidade da pessoa, que degradam as relações humanas, degradam a própria pessoa consigo mesma, são ações, são atos, são condições de vida que às vezes são violentas...Mas eu nunca pensei assim, o que é a violência, porque na verdade a gente sempre acha que é uma coisa tão banal”. Percebe-se nas falas de Bárbara e Luís Fernando a multidão de ações, atitudes, situações que podem ser abarcadas no rótulo “violência”, pois, como diz Rifiotis (1999), “a violência” é um significante com o significado em aberto, dentro do qual vão sendo inseridas novas significações de acordo com a pessoa que a define.

Interessante ressaltar que Luís Fernando também vê as condições de vida de certas camadas da população como “violência”, e também a desigualdade social é vista como uma “violência”: “...Eu já perguntei para os meninos aqui o que é ser jovem e pobre, e eles falam que é conviver com violência, e daí você já sabe de que violência eles falam: o mundo das drogas eles dizem que é um mundo macabro, depois eles falam que vêem os outros andando com certa camiseta, e querem mas não podem...Aí você já imagina a violência que está embutida nesta situação de desigualdade.”. Outro que credita como “violência” a desigualdade social é Aírton: para ele, “violência” é a inércia da sociedade e dos detentores do poder que não cumprem suas funções, “violência” é a desigualdade social, a pobreza e a falta de direitos fundamentais. Mas não dá uma definição.

Vera, como quase todos, repete a pergunta. Percebe a multiplicidade de conceitos abarcados no rótulo “violência”: “...tem tantos conceitos, né?”. Tem uma visão do excesso, do aumento exponencial da “violência”: “...o quadro de violência que a gente vê agora é algo muito além do que se pensava ser violência”. Vê a “violência” como fora ou como ausência do social, da civilidade, conforme já discutido antes: “...quase como se a gente estivesse voltando àquela

coisa da barbárie, mesmo, ali de um matando o outro, pelo simples ato de matar” – afirmando a banalidade da morte, o “matando por matar”. Para ela a “violência” tem causas anteriores, no que concorda com Aírton: o abandono do governo de comunidades pobres, negras e jovens, a quem as violências atingem preferencialmente. Tem dificuldades de conceituar “a violência”: “...até nas madrugadas fiquei pensando o que é violência”. Acredita que o ambiente torna os jovens violentos, e que quanto mais novo mais violento: quer proteção e pertencimento ao grupo, “...quer entrar num contexto para se sentir protegido...” – as violências aparecem aqui como busca de relação, como linguagem, como dizem Maffesoli (1987) e Rifiotis (1997, 1999). Em outro trecho de sua entrevista, percebe a incompreensibilidade das violências, a falta de interpretabilidade do fenômeno “violência”: “Então que eu fiquei pensando: será que a gente consegue conceituar a violência?”.

Percebe-se a multiplicidade de conceituações, relações e associações feitas pelos entrevistados quando perguntados sobre “o que seria “a violência”? ”. Cada um acha um novo significado para incluir no significante, mas todos a vêem como um mal, como algo extremamente negativo e moralmente condenável, relativa a atitudes relacionais interpessoais, mas também como ligada e fazendo parte de problemas sociais, como a droga, a desigualdade, a pobreza, a falta de emprego. Pode-se ver as dificuldades de conceituação e enunciação, como revela o fato de quase todos repetirem a pergunta, como que buscando tempo para pensar; e também no fato de ficarem se perguntando: “será que é só isso?”. Ou, como no caso de Luís Fernando: “Mas eu nunca pensei assim, o que é a violência, porque na verdade a gente sempre acha que é uma coisa tão banal...”. Vê-se aqui que ele percebe a naturalização do significante, do rótulo “violência”: parece uma palavra simples, sem mistério, banal, como ele diz, que todos sabem do que se trata, que todos sabem o significado. Mas na verdade, por trás deste rótulo simples se escondem significados tão complexos, tão variados, que é praticamente impossível

abarcá-los. E, como vimos, as violências parecem estar em todo lugar, permeando toda a vida social. Como afirma Rifiotis (1999, p. 8): “...é a crescente extensão deste campo semântico que nos leva a pensar que estamos frente a um constante e inelutável aumento da violência. A própria memória, atualizando sem relativizar o passado, atua como portadora de referências que avaliam a realidade presente como uma degradação. A memória alimenta o medo, que se nutre da força do fantasma que ela representa...”.