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O caráter contra-hegemônico da Pedagogia da Libertação no contexto da ditadura civil-militar: uma “escola do povo, pelo povo e para o povo”

Capítulo 2. Do caráter elitista da educação popular no contexto nacional desenvolvimenista à práxis revolucionária da Pedagogia da Libertação

2.1. O caráter contra-hegemônico da Pedagogia da Libertação no contexto da ditadura civil-militar: uma “escola do povo, pelo povo e para o povo”

Na manhã de 2 de abril de 1963, o mais velho dos diplomados da experiência piloto de Angicos, no Rio Grande do Norte, escreveu em um quadro negro para uma plateia repleta de autoridades, contando inclusive com a presença do presidente João Goulart, a quem coube a tarefa de ministrar a quadragésima e última aula: “Há trinta anos, o Dr. Getúlio veio aqui matar a nossa fome de barriga. Agora o senhor veio matar a nossa fome de cabeça” (cf. FERNANDES & TERRA, 1994, p. 18).

Após acompanhar atentamente a fala de Paulo Freire durante a diplomação dessa primeira turma alfabetizada a partir do método por ele desenvolvido junto ao Serviço de Extensão Cultural da Universidade de Pernambuco, o general Castelo Branco que também estivera presente, disse a Calazans Fernandes, um dos integrantes da equipe responsável pela implementação do projeto: “Meu jovem, vocês estão criando cascavéis nesses sertões” (ibidem).

Em plena Guerra Fria fora firmado um convênio entre o Ministério da Educação e Cultura, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), o estado do Rio Grande do Norte, governado por Aluisio Alves, e a United States Agency for International

Development (USAID). Os acordos eram parte da Aliança para o Progresso, fonte dos

recursos para o financiamento da experiência de Angicos.

Buscando firmar-se como liderança local, Aluisio Nunes convocara o governo Jango para uma “Aliança da Paz”, título do discurso por ele proferido em jantar realizado na noite do mesmo dia 2 de abril, em Recife, na casa do governador de Pernambuco, Miguel Arraes. O relato de Calazans Fernandes evidencia a complexidade do momento:

Aluísio colocou o dedo na ferida. Pediu definições. Se o governo não queria a ajuda externa, que dissesse e interrompesse os acordos regionais que continuavam sendo assinados. Se queria, que assumisse e deixasse os governos estaduais trabalharem, sob a coordenação da Sudene. Terminou com uma convocação à concórdia, ao trabalho, uma aliança para a paz. Celso Furtado (criador da Sudene, em 1959, e então Ministro do Planejamento de Jango) ia responder, quando Darcy Ribeiro lhe passou um bilhete recomendando ficar calado (ibidem, p. 19).

Tensionado pelo cunhado Leonel Brizola, Goulart não impedia, porém não facilitava a administração dos acordos internacionais com a “Aliança para o Progresso”, A Aliança havia sido oficializada na reunião do Conselho Interamericano Econômico e Social, entre os dias 5 e 17 de agosto de 1961, em Punta del Este, evidenciado os interesses dos EUA na América Latina e particularmente o estreitamente de suas relações com setores nacionais que apoiavam a intensificação da presença imperialista no Brasil (BANDEIRA, 2007, p. 561).

Moniz Bandeira assim descreve o contexto:

As greves sucederam-se e ampliaram-se. As massas camponesas passaram para níveis mais adiantados de organização e de luta. As ocupações de terras se alastraram pelos Estados do Maranhão, Pernambuco, Paraíba, Bahia, Rio de Janeiro, Goiás, Paraná, Rio Grande do Sul, enfim, por várias regiões do país. A realização do Congresso Camponês (Belo Horizonte), de 15 a 17 de novembro de 1961, reuniu cerca de 1600 delegados. Os camponeses, com faixas cartazes exigiam: Reforma agrária já. Reforma agrária na lei ou na marra (ibidem, p. 575).

Em meio à efervescência da luta de classes, vislumbrava Goulart, na confraternização do Palácio das Princesas: “Como fazermos 6 milhões de eleitores com o método de Angicos, para que possamos realizar a reforma agrária?” (FERNANDES & TERRA, 1994, p. 19), destoando das acusações de seus opositores, segundo os quais Jango preparava uma revolução brasileira nos moldes da Revolução Cubana, de 1959.

É nesse contexto conturbado que a experiência primordial das 40 horas de Angicos se desenvolveu, passando a ser conhecida como “método Paulo Freire”. Uma vez reconhecido o sucesso dessa experiência o método projetou-se no Brasil e no mundo51 (SAVIANI, 2010b, p. 288).

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Como destaca Saviani, foi em Angicos que tudo começou. A fala proferida por Paulo Freire em janeiro de 1963, durante o curso de formação dos coordenadores de Angicos, evidencia a estruturação dos elementos

Angicos fora o grande teste de uma experiência iniciada em Recife com o Movimento de Cultura Popular (MCP). O MCP era uma resposta ao caráter elitista da universidade brasileira, uma verdadeira “torre de marfim”, onde catedráticos vitalícios cooptavam a jovem docência, impedindo a democratização do espaço universitário. Gradativamente, o movimento popular abriu espaço para o pensamento renovador em educação, absorvendo intelectuais envolvidos com as lutas políticas das classes subordinadas, transformando-se em intelectuais orgânicos dessa política voltada para a cultura popular (CUNHA & GÓES, 1985, p. 16).

Paulo Freire era o diretor do setor de Pesquisa do Departamento de Formação da Cultura do MCP, movimento que teve como principal ideólogo Germano Coelho, intelectual marcado pela influência do pensamento francês: Boimondeau, Peaple culture, Lebret, Dumazedier, Mounier, Freinet, Maritain etc. Dentre as principais realizações do MCP, destacam-se a criação escolas, escolas radiofônicas, centros de artes plásticas e artesanatos, formação de professores e monitores para o ensino de 1º grau, supletivo, educação de base e educação artística; escola para motoristas-mecânicos, praças de cultura para a socialização de bibliotecas, teatro, cinema, tele-clube, música, orientação pedagógica, jogos infantis, educação física, galeria de arte, conjunto teatral, o Centro de Cultura Dona Olegarinha52 etc.

Segundo Cunha e Góes, o movimento estava distante da ideia elitista fundamentada na produção de bens culturais para a posterior doação ao povo, sendo fundamental para o MCP que as camadas populares participassem do processo de elaboração da cultura. Pressuposto que pode ser lido no Plano de Ação para o ano de 1963:

A demanda por uma consciência popular adequada ao real e possuída pelo projeto de transformá-lo é característica do movimento popular porque este se assenta nas três seguintes pressuposições: a) só o povo pode resolver os problemas populares; b) tais problemas se apresentam como uma totalidade de efeitos que não pode ser corrigida senão pela supressão de suas causas radicadas nas estruturas sociais vigentes; c) o básicos da pedagogia freireana, que apesar do amadurecimento e superação do caráter idealista que a caracteriza nessa primeira fase de desenvolvimento, reconhecido por Freire posteriormente, apresentam um fio condutor lapidado pela prática social concreta na qual Freire se viu inserido nas décadas posteriores: “[...] Está provado que as pessoas aprendem a ler e a escrever com mais facilidade, ou com facilidade, na medida em que seu aprendizado se fundamenta na sua própria experiência existencial. Nesse sentido, aliás, há um trabalho, hoje já comprovado, realizado por educadores franceses na África, que está sendo feito também em Pernambuco, que é alfabetizar através da experiência profissional do grupo analfabeto [...]. No trabalho que nós estamos realizando, eu ampliei um pouco, [...] logo depois que tomei conhecimento dessa experiência francesa [...]. No nosso caso, estamos aproveitando, tanto quanto possível, uma faixa grande da experiência existencial do grupo [...] que vai ser alfabetizado [...]” (cf. FERNADES & TERRA, 1994, p. 5). Na atualidade, observa Saviani que talvez a experiência mais importante, inspirada em larga medida em Paulo Freire seja a pedagogia desenvolvida pelo MST. Seguindo os apontamentos de Saviani, na segunda parte da exposição nos apoiaremos na prática pedagógica do MST para realizarmos a crítica à “Escola Cidadã”.

52 O Centro de Cultura “Dona Olegarinha” tornou-se um dos “santuários” mais importantes para os “jovens católicos radicais”. Nele teria ocorrido a primeira tentativa de alfabetização de adultos orientada por Paulo Freire, em janeiro de 1962 (ibidem, p. 20).

instrumento que efetua a transformação projetada é a luta política guiada por ideias que representam adequadamente a realidade objetiva (ibidem, p. 18).

É desse caldo político cultural que emergirá a pedagogia freireana, influenciada por um contexto histórico marcado pela ofensiva imperialista, sobretudo estadunidense, sobre as nações latino-americanas que, a exemplo do Brasil, ousavam forjar projetos autônomos de superação do seu caráter dependente. Do clima de efervescência política e cultural que caracterizou o início da década de 1960, resultaram diferentes experiências de cultura e educação popular, destacando-se os Centros Populares de Cultura (CPCs), os Movimentos de Cultura Popular (MCPs), a “Campanha De Pé no Chão também se Aprende a Ler” (GERMANO, 1989, p. 99) movimento criado em 1961, pela Prefeitura de Natal, além do Movimento de Educação de Base (MEB). Este último, criado por meio do Decreto n. 50.370, de 21 de março de 1961, apesar de ser dirigido pela CNBB, era executado por leigos, distanciando-se dos objetivos catequéticos e assumindo um caráter de conscientização e politização das camadas populares.

Tendo como referência o CPC da União Nacional dos Estudantes (UNE)53, os CPCs expandiram-se por todo o país, dedicando-se à comunicação com as camadas populares por meio das artes, destacando-se o teatro, cinema, artes plásticas, música, fotografia, literatura de cordel. A cultura popular, à qual se subordinava a educação popular, estava ligada diretamente à ação política, expressando de forma autêntica a consciência, os interesses e necessidades das massas, preparando-as para a revolução54 (FÁVERO, 1983, p. 9).

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O Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE) foi criado em 196, por Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha. Entre os anos de 1962 e 1964, as caravanas da UNE Volante espalharam os CPCs por vários estados. Vianinha fizera parte do Teatro Paulista de Estudantes (TPE), integrando posteriormente o Teatro de Arena popularizado pela peça Eles não usam Black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri. Devido a divergências quanto ao papel político que o Teatro de Arena deveria assumir, Vianinha aproxima-se do movimento estudantil, sindicatos, partidos políticos e instituições científicas, destacando-se o vínculo ideológico estabelecido entre o CPC da UNE e o Partido Comunista do Brasil (PCB) e o ISEB (GONZÁLEZ, 2014, p. 103). No CPC da UNE/MANIFESTO, Arte Popular Revolucionária, destaca-se o entendimento de que a arte deveria estar ao vinculada ao processo de transformação social: “Não ignorando as forças propulsoras que, partindo da base econômica, determinam em larga medida nossas ideias e nossa prática, não podemos ser vítimas das ilusões infundadas que convertem as obras dos artistas brasileiros em dóceis instrumentos da dominação, em lugar de serem, com deveriam ser, as armas espirituais da libertação material e cultural do nosso povo” (cf. FÁVERO, 1983, p. 60-61).

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Segundo Kosik: “O homem pode perder-se no mundo ‘exterior’ porque na sua existência ele é um sujeito objetivo, que só existe enquanto produz subjetivamente o mundo histórico objetivo. A filosofia moderna revelou uma grande verdade: o homem não nasce jamais em condições que lhe são ‘próprias’, ele é sempre ‘jogado’ no mundo, cuja autenticidade ou inautenticidade ele tem de comprovar por si mesmo, na luta, ‘na práxis’, no processo da história da própria vida, no curso do qual a realidade é possuída e modificada, reproduzida e transformada” (KOSIK, 1976, p. 75). A partir dos fundamentos presentes nas teses sobre Feuerbach, assevera Kosik que “a verdade da realidade não pode ser apenas representada ao homem, tem de ser praticada pelo próprio homem, já que este ao desejar viver na autenticidade, deseja também realiza-la”. E na tarefa de destruição da pseudoconcreticidade do mundo alienado da cotidianidade é preciso se compreender que a passagem da inautenticidade à autenticidade não é um processo de caráter especulativo, mas histórico, que se

Inspirados na experiência realizada junto à Prefeitura de Recife, os MCPs visavam à conscientização das massas por meio da alfabetização fundamentada na própria cultura popular. Por meio do diálogo, os intelectuais deveriam se aproximar do povo, “despindo-se de todo espírito assistencialista” (SAVIANI, 2010a, p. 318).

Por sua vez, o MEB colaborou para uma profunda transformação na prática da Igreja, nas condições de vida da população, além de mudanças na prática dos agentes pedagógicos, colaborando para a construção da contra-hegemonia popular, forjando os embriões da Igreja popular55 (WANDERLEY, 1984, apud, SAVIANI, 2010a, p. 319). Para Semeraro, Paulo Freire é quem melhor representa no campo educativo as posições defendidas pela juventude católica, tendo por fundamento a valorização da vida concreta das pessoas e o respeito pelas camadas populares e suas capacidades, pronunciando-se a favor de uma cultura que almeja levar o homem a assumir uma posição de sujeitro da criação cultural e de operário consciente do processoi histórico em que se acha inserido (SEMERARO, 1994, p. 178).

Os debates educacionais em torno da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, realizados no período compreendido entre os anos de 1948 e 1961, haviam sido marcados pela polarização entre os privatistas e os defensores da escola pública, gratuita e laica. Os primeiros articularam-se em torno do Substitutivo Lacerda, apoiado pelos católicos sob a liderança da Associação de Educação Católica (AEC), que deflagrou a Campanha de Defesa da Liberdade de Ensino (CDLE), opondo-se à Campanha de Defesa da Escola Pública (CDEP). As posições conservadoras da AEC resultaram em um “racha” que deu origem à Juventude Estudantil Católica (JEC) e a JUC56, estas últimas defendendo o movimento em defesa da escola pública57. Retomando o pensamento liberal norte-americano e europeu do realiza tanto pela humanidade, como pelo indivíduo (ibidem, p. 77). Assim, a modificação existencial não é, ainda, a transformação revolucionária do mundo, mas, o “drama individual de cada um no mundo”. Nela o indivíduo desperta para as próprias potencialidades e as escolhe, alterando seu posicionamento diante do mundo (ibidem, p. 79).

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Destaca-se como material de formação a Cartilha “Viver é lutar”, apreendida como material subversivo, após o golpe de 1964. O texto base para a 4ª lição da referida cartilha era utilizado para o desenvolvimento de noções de gramática, possibilitando ao mesmo tempo a reflexão sobre as contradições da sociedade em que estão inseridos os adultos em processo de alfabetização: “Pedro trabalha. Sua Mulher também trabalha. Eles trabalham para sustentar a família. Mas a família de Pedro passa fome. O povo trabalha e vive com fome. É justo a família de Pedro passar fome? É justo o povo viver com fome? “(MEB, 1963).

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Juntamente com a Juventude Operária Católica (JOC), a Juventude Universitária Católica (JUC), Juventude Estudantil Católica (JEC), Juventude Agrária Brasileira (JAC), Juventude Independente Católica (JIC) integravam a Ação Católica Brasileira (ACB).

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Conjecturando sobre as razões que influenciaram a mudança de perspectiva política dos quadros universitários, Aída Bezerra destaca o acesso da classe média ao nível superior, ocorrido durante o governo de Juscelino Kubitschek, no âmbito discente e docente; a influência dos estudos das ciências, fornecendo instrumentos de análise distintos da perspectiva metafísica que embasava as análises anteriores. O fato é que inseridos na dinâmica desse contexto histórico as organizações estudantis superaram os limites institucionais da universidade (BEZERRA, 1980, p. 23).

final do século XIX, ao qual se somaram os marxistas, a CDEP mobilizou as camadas progressistas, os movimentos operário e estudantil, obtendo o apoio operário nas I e II Convenções Operárias em Defesa da Escola Pública, organizadas pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, em 196158 (CUNHA & GÓES, 1985, p. 13).

Ainda que existissem particularidades e diferenças entre os movimentos de cultura e educação popular desenvolvidos nesse contexto, tais movimentos possuíam em comum o objetivo de transformação das estruturas sociais, com vistas a uma contra-hegemonia dirigida pelos subalternos, advogando-se a libertação nacional59 da dependência estrangeira. Como reconhece Saviani, a concepção pedagógica freireana é a expressão mais acabada da orientação seguida pelos movimentos de cultura e educação popular (SAVIANI, 2010a, p. 319).

Ao apoiarem-se na pedagogia freireana, os movimentos populares haviam se tornado uma ameaça à hegemonia das elites nacionais e à estabilidade do regime ao final dos anos de 1950 e início dos anos de 1960. Após o golpe de 1964, o regime militar buscou legitimação por meio da construção de organismos de estabilização da nova ordem (RIDENTI, 1993, p. 247), chocando-se frontalmente com as iniciativas de educação popular orientadas pela pedagogia freireana.

Durante os debates que antecederam o II Congresso Nacional de Educação de Adultos, de 1958, foi realizado em Pernambuco o Seminário Regional Preparatório, tendo por eixo a necessidade da consciência popular do processo de desenvolvimento do país e a emersão do povo na vida pública (PAIVA, 2003, p. 238). No Seminário, Paulo Freire abordou o tema

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Para Cunha e Góes, a defesa da escola pública nas décadas de 1950 e 1960 dava continuidade ao movimento resultante do pensamento sintetizado pelos renovadores da educação brasileira, destacando-se Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Pascoal Leme, Lourenço Filho, entre outros. Desse movimento seriam tributários a Associação Brasileira de Educação, criada em 1924, a IV Conferência Nacional de Educação, realizada em 1931, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, o I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em 1945, a Universidade do Povo e os Comitês Democráticos, ambos criados no Distrito Federal pelo PCB, durante o período de legalidade dos anos de 1945-1947 (CUNHA & GÓES, 1985, p. 13-4). Além do “Manifesto dos educadores: mais uma vez convocados”, redigido por Fernando de Azevedo, em 1959, subscrito por 190 dos mais expressivos intelectuais da época. A LDB de 1961 acabou se caracterizando por uma tentativa de conciliação dos interesses representados nos debates pelo Projeto Mariani, identificado com os interesses do MDEP, e o Substitutivo Lacerda, representando os interesses privatistas. A grande figura pública que representava os defensores da escola pública era Anísio Teixeira, que apesar das inúmeras tentativas de esclarecimento, fora acusado de adesão ao comunismo por setores da Igreja Católica interessados na administração não-estatal da educação (SAVIANI, 2010a, p. 287-288). É possível perceber no Manifesto de 1959 o receio dos liberais renovadores de que a “zona de pensamento perigoso” (comunismo) destacada por Fernando de Azevedo em A cultura brasileira pudesse orientar os debates sobre a LDB (idem, 296).

59 O conceito de libertação de Paulo Freire se vincula diretamente à estratégia de emancipação do “Terce iro Mundo”, sendo-lhe centrais as categorias de colonização e descolonização. Blackburn enfatiza a diferença entre a vertente stalinista do comunismo e o comunismo associado à libertação nacional (BLACKBURN, 1995, apud SADER, 1995, p. 10).

Educação dos adultos e as populações marginais: o problema dos mocambos, vinculando o

analfabetismo ao pauperismo que acometia grande parcela do povo brasileiro. Já no II Congresso, como contraponto à concepção predominante de “educação para o homem”, propõe Freire a “educação com o homem” (CUNHA & GÓES, 1985, p. 11), antecipando um dos fundamentos da prática pedagógica da libertação.

A Carta síntese do Congresso de 1958 expressou o caráter conservador e privatista que prevaleceu nos debates. Dois anos após o golpe, estranguladas as iniciativas de cultura e educação populares, o governo retoma a questão da educação de adultos, apoiando a Cruzada Ação Básica Cristã (ABC)60, em colaboração com a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), cujo foco seriam as regiões que haviam adotado o método Paulo Freire de alfabetização (PAIVA, 2003, p. 289).

Em sintonia com a Carta de 1958, a Cruzada ABC defendia o financiamento público de entidades educativas privadas e a parceria entre entidades governamentais e privadas61, alinhando-se perfeitamente ao espírito da Aliança para o Progresso, buscando disseminar as ideias de interdependência das nações e a legitimidade de uma coordenação supranacional, suavizando, assim, a interferência externa (ibidem, p. 298).

A partir de 10 de agosto, de 1967, o MEC expandiu o programa para todo o território brasileiro, integrando-o aos acordos MEC-USAID. Disseminando as estratégias comunitaristas de cunho americano por todo o país, a Cruzada tinha por objetivo sedimentar o poder político e as estruturas sócio econômicas, almejando anular os efeitos ideológicos das iniciativas populares anteriores (ibidem).

O Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), criado por meio da lei nº 5.379, de 15 de dezembro de 1967, acompanhando ainda as orientações privatistas da Carta de 1958, foi outro instrumento ideológico de sedimentação social e prevenção dos conflitos provenientes da luta de classe decorrente da adequação da econômica brasileira aos interesses do capital monopólico internacional, sobretudo estadunidense. Conquistando o espaço anteriormente ocupado pela Cruzada, seus defensores se contrapunham abertamente à pedagogia freireana, por eles vinculada diretamente ao comunismo internacional. Assim, pregando a conciliação entre as classes sociais e a integração nacional, seu objetivo era

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A Cruzada ABC foi criada por um grupo de professores do Colégio evangélico Agnes Erskine de Pernambuco, que por meio do financiamento dos acordos MEC-USAID e da Fundação norte americana Agnes Erskine, pode expandir suas ações, resultando na fundação da Cruzada ABC, em meados de 1964 (ibidem, p. 299).

61 Já em 1966, por meio do Decreto nº 57.895, o governo garante financiamento público a entidades privadas para a realização de atividades educativas. O objetivo era estimular Estados, municípios e instituições privadas a desenvolverem atividades de educação “cívico-democrática” e de iniciação no trabalho produtivo para jovens acima de 10 anos, estimulando sua participação na vida comunitária (ibidem, p. 292).

ideológico, transferindo aos indivíduos a responsabilidade por seu fracasso ou sucesso (PAIVA, 2003, p. 358), sendo uma medida de cooptação e contenção do operário (FREITAG, 2005, p. 156) o que justifica a sua manutenção até a década de 1980, mesmo diante do evidente fracasso na erradicação do analfabetismo.

Como observa Freitag, o Mobral é o primeiro movimento por meio do qual o governo

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