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Capítulo 2. Do caráter elitista da educação popular no contexto nacional desenvolvimenista à práxis revolucionária da Pedagogia da Libertação

2.2. A Teologia da libertação como expressão popular do marxismo latino americano

Por ocasião do centenário de nascimento de Karl Marx, Gramsci publicou em Il grido

del popolo, o artigo apócrifo intitulado O nosso Marx. Rejeitando o posicionamento auto-

reivindicatório daqueles que fazem de expressões como “marxistas”, “do ponto de vista marxista” etc., “moeda de troca”, sentencia Gramsci:

Marx não produziu uma doutrinazinha, não é um messias que nos legou uma série de parábolas impregnadas de imperativos categóricos, de normas indiscutíveis, absolutas, foras das categorias tempo e de espaço. Único imperativo categórico, única norma: “Proletários de todos os países, unam-se!” (GRAMSCI, 2004a, p. 160- 161).

Ao afirmar isso, Gramsci identifica no dever da organização, na propaganda da obrigação de se organizar e associar as massas proletárias, um elemento central na definição do que é ser marxista. A contribuição teórico-metodológica de Marx no campo da história visa instrumentalizar as massas proletárias na tarefa de transformação radical da sociedade, não fazendo sentido seu recolhimento ao restrito espaço acadêmico.

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Antunes destaca a importância do MST como um movimento que conseguiu articular as duas vertentes mais importantes das lutas sociais recentes no Brasil, a Teologia da Libertação e o marxismo (ANTUNES, 2005, p. 249).

Entendemos que a discussão se Paulo Freire seria ou não marxista é puramente escolástica, interessando-nos a capacidade de organização da cultura popular e sua contribuição para a elaboração da vontade coletiva necessária para a construção consciente de um projeto socialista, que permita às classes subalternas apresentarem-se como sujeito histórico, reconhecendo a noção exata do poder que possui e dos meios para expressá-lo (ibidem, p. 164).

Para a organização da vontade coletiva das massas de trabalhadores, oberva Gramsci, é preciso que elas tenham consciência da realidade objetiva, do “segredo que move a sucessão real dos eventos”. E já indicando alguns dos fundamentos que irão compor a sua concepção dialética da história, formulada a partir do materialismo histórico de Marx e Engels, assevera Gramsci:

O homem conhece a si mesmo, sabe o quanto pode valer sua vontade individual e como ela pode se tornar poderosa na medida em que, obedecendo à necessidade, submetendo-se a ela, termina por dominar a própria necessidade, identificando-a com a finalidade que ele mesmo se propõe. Quem conhece a si mesmo? Não o homem em geral, mas aquele que conhece o jugo da necessidade (ibidem, p. 163). Ao desvelar a substância da história, o homem se depara com as relações de produção e de troca, nas quais estão ancoradas as duas classes sociais fundamentais, os detentores dos meios de produção, que ainda que possuam uma consciência confusa e fragmentária, reconhecem seu poder e sua missão, e o proletariado, a quem de fato interessa a sistematização da causalidade histórica real.

No Caderno 11, Gramsci desenvolve os apontamentos presentes em Nosso Marx, afirmando que o “conhece-te a ti mesmo” é o inicio da elaboração crítica, da consciência daquilo que realmente somos como processo histórico até hoje desenvolvido. Inventariar os traços herdados no processo histórico, eis a tarefa inicial do processo de conscientização, ou elaboração crítica da história da humanidade, sem a qual nossa personalidade é composta de maneira bizarra, apresentando:

[...] elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de todas as fases históricas passadas, estreitamente localistas e instituições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado (GRAMSCI, 2006a, p. 94).

É nesse sentido que Lucien Goldmann afirma reconhecer a possibilidade de interlocução dialética entre o marxismo e o cristianismo. Assevera Goldmann:

Uma visão de mundo é um ponto de vista coerente e unitário sobre o conjunto da realidade. Ora, o pensamento dos indivíduos – com pequenas exceções – é raramente coerente e unitário. Submetendo a uma infinidade de influências, sofrendo a ação não somente dos mais diversos meios como também da constituição fisiológica no mais amplo sentido, o pensamento e o modo de sentir dos indivíduos

se aproximam sempre mais ou menos de uma certa coerência, mas não a atingem senão excepcionalmente. Eis porque podem muito bem existir cristãos marxistas, românticos que gostam das tragédias de Racine, democratas que mantém preconceitos raciais etc. [...] Ela é o sistema de pensamento que, em certas condições, se impõe a um grupo de homens que se encontram em situações econômicas e sociais análogas, isto é, a certas classes sociais (GOLDMANN, 1979, p. 73).

A partir desses apontamentos teórico-metodológicos iniciais, desenvolveremos a seguir um duplo movimento analítico. Inicialmente, realizaremos um inventário da Pedagogia da Libertação, situando-a no contexto de emergência dos movimentos de libertação nacional na América latina, África e Ásia, destacando o seu diálogo com a Teologia da Libertação, entendida por Löwy como sendo a expressão popular do marxismo latino-americano.

Em seguida, buscando a interlocução entre Paulo freire e o marxismo, apontaremos no método freireano elementos que nos possibilitam afirmar que no processo de organização cultural das massas oprimidas que compõe o núcleo central de suas estratégias, o “conhece-te a ti mesmo” gramsciano possui centralidade, o que se evidencia em termos teórico-práticos, ainda que Freire não o tenha explicitado textualmente64.

Como observa Löwy, a religião continua sendo um “baluarte de obscurantismo e conservadorismo”. Da Opus Dei às várias vertentes evangélicas, destacando-se o que Löwy denomina “igreja eletrônica”, com seu culto à “prosperidade” ou, melhor dizendo, “ideologia da prosperidade”, vários são os exemplos de práticas de manipulação financeira, lavagem

cerebral e anticomunismo fanático65 (LÖWY, 2006, p. 271). Porém, no que se refere à emergência da Teologia da Libertação na América Latina,

esse tema desafia o campo do marxismo, exigindo uma “renovação da análise marxista da religião” (ibidem). Exemplos concretos como a revolução nicaraguense, marcada pela participação efetiva de cristãos, leigos e clérigos na Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) (LÖWY, 1989), desconcertaram setores marxistas que usualmente recorrem ao

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A inserção de Paulo Freire na problemática da autoconsciência, ou, em termos gramscianos o “conhece-te a ti mesmo”, certamente sofreu a influência de Álvaro Vieira Pinto, a quem, segundo relato de Dermeval Saviani na Introdução de Sete lições sobre educação de adultos, Freire reconhece como “mestre brasileiro” (PINTO, 1997, p. 10).

65 Em nossa dissertação de mestrado, observamos a preocupação da Igreja Católica com o conteúdo político da religiosidade popular inspirada na Teologia da Libertação. Já nos anos de 1960, a ala conservadora da Igreja buscou neutralizar o caráter revolucionário da Igreja popular por meio da criação da Renovação Carismática Católica, movimento de cunho espiritualista que ao chegar ao Brasil rapidamente se identificou com as estratégias das elites empresariais de prevenção dos conflitos sociais, identificando-se com a intelectualidade que ainda nos primórdios da ditadura civil-militar estruturava uma sociabilidade compatível com os interesses do capital monopólico internacional, que por meio do golpe estrangulara o projeto nacional-desenvolvimentista em curso no país (LIMA, 2012).

caráter regressivo e idealista da ideologia religiosa para desqualificar as práticas sociais da igreja.

Sentindo-se incomodados ao constatarem a prática revolucionária da Igreja popular, setores do marxismo enfatizaram a desarticulação entre a prática social dos cristãos, aceita como válida, e sua ideologia, considerada retrógrada e idealista. O que não esclarece muita coisa, já que a Teologia da Libertação apoia a sua própria luta social em conceitos marxistas (idem, 1991, p. 8).

Para Löwy, existem apontamentos na obra de Marx e Engels, assim como nos escritos dos marxistas modernos, que nos ajudam a superar os limites da concepção clássica da religião, sobretudo, a sua versão vulgarizada, reduzida ao materialismo e anticlericalismo dos filósofos burgueses do século XIX (ibidem, p. 9).

É bastante conhecida a passagem de Marx sobre a religião em sua Crítica da filosofia

do direito de Hegel - Introdução (1844): “A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura

oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e alma de situações sem alma. A religião é o

ópio do povo” (MARX, 2005, p. 145).

Segundo Löwy, essa passagem da crítica a Hegel expressaria ainda a influên cia feuerbacheana sobre Marx, ainda um neo-hegeliano de esquerda. Somente a partir de A

ideologia alemã (1845) evidencia-se o estudo estritamente marxista da religião, entendida

como “realidade social e histórica”:

[...] uma análise da religião como uma das numerosas formas de ideologia, de produção espiritual de um povo, da sua produção de ideias, de representações e de uma consciência – necessariamente condicionada pela produção material e pelas relações sociais correspondentes (LÖWY, 1991, p. 12).

Marx e Engels superaram a crítica do hegelianismo de esquerda, segunda a qual a religião seria a alienação da essência humana. A partir daí, Marx passou a dedicar pouca atenção à religião, entende-a como universo cultural/ideológico de significação específica (ibidem).

Engels, por sua vez, interessou-se pelos fenômenos religiosos, articulando a questão religiosa às questões sociais concretas. Diferentemente de Feuerbach, que entendia o cristianismo como uma essência atemporal, Engels o entendia como uma manifestação cultural determinada historicamente, o que lhe possibilita uma análise dialética da religião. Longe de conceber a igreja como uma entidade homogênea, Engels evidencia seu vínculo com a luta de classes. Assim, a religião pode apresentar tanto um caráter conservador e

reacionário, como um caráter revolucionário, dependendo do jogo de forças sociais antagônicas ao qual estão vinculados os fenômenos religiosos.

Na Introdução de As lutas de classe na França de 1848-1850, publicada em 1895, ao demonstrar que as condições da luta de classes haviam se alterado no último quartel do século XIX, tornando-se anacrônicas as tentativas de tomada do poder de assalto pelo proletariado nas sociedades modernas, Engels nos apresenta um exemplo concreto de aplicação do método dialético à análise das religiões.

Engels estabelece uma analogia entre o cristianismo primitivo e o movimento socialista. Negando o ataque frontal como estratégia, ambos os “partidos” ousaram em suas épocas, o primeiro no contexto do Império Romano, e o segundo no século XIX, período das grandes revoluções resultantes da emergência da sociedade urbano industrial, estabelecer uma relação com as massas populares, furtando-se de um ataque frontal favorável ás forças conservadoras.

Aos socialdemocratas, Engels propõe observarem como os cristãos atuavam como um verdadeiro partido revolucionário, que negando o poder do imperador, conquistava legiões inteiras, extrapolando, inclusive, as fronteiras imperiais. Diante da ineficiência da perseguição aos cristãos, o imperador Constantino incorporou o cristianismo ao império, em 325, durante o Concílio de Nicéia, tornando-o contraditoriamente religião oficial do Estado (ENGELS, s/d, vol. 1, p. 110).

Ao estabelecer um paralelo entre o cristianismo primitivo e o socialismo moderno, enfatiza Engels que ambos os movimentos de caráter popular anunciavam a libertação iminente da escravidão. A ênfase na analogia é tamanha que Engels cita recorrentemente a frase do historiador Frances Ernest Renan: “Se quiserdes fazer uma ideia do que foram as primeiras comunidades cristãs, ide ver uma seção local da associação local dos trabalhadores” (cf. LÖWY, 1991, p. 14-15).

Surpreendentemente, numa obra datada de 1850, ou seja, 45 anos antes da publicação da Introdução de 1895, Engels faz apontamentos metodológicos fundamentais para os marxistas que se aventuram na análise histórica das religiões. Trata-se de As guerras

camponesas na Alemanha (ENGELS, 1977). No prefácio de 1874, produzido por ocasião da

reedição da obra, Engels nos apresenta os limites das obras históricas idealistas alemãs da época. Apesar de reconhecer os méritos presentes nos três tomos da obra de W. Zimmermann,

História da guerra camponesa, da qual extrai toda a documentação utilizada em sua pesquisa,

da luta de classes, vendo nas lutas camponesas apenas oprimidos e opressores, bons e maus, triunfando finalmente estes últimos. E demonstrando a humildade intelectual que lhe é própria, Engels advoga a concepção materialista da história desenvolvida por Marx como instrumento teórico metodológico de sua análise:

Traçando o curso histórico da luta apenas em suas linhas gerais, minha exposição procura mostrar, como consequências necessárias da vida social das classes, a origem da guerra dos camponeses, as posições tomadas pelos diversos partidos que dela participaram, as teorias políticas e religiosas através das quais esses partidos procuravam explicar sua atitude e, enfim, o resultado da luta. Em outras palavras, empenho-me em provar que o regime político da Alemanha, os levantes contra esse regime, as teorias políticas e religiosas da época não eram causas, mas resultado do grau de desenvolvimento a que tinham chegado, naquele país, a agricultura, a indústria, as vias de comunicação terrestres, fluviais e marítimas, as finanças e o comércio (ibidem, p. 8).

Aqui claramente aparecem os pressupostos apontados em A Ideologia alemã, apresentando Engels o vínculo entre as guerras camponesas, destacando-se o movimento dirigido pelo teólogo Thomas Münzer, e a produção material de sua época, com suas relações sociais correspondentes.

Engels demonstra que o verdadeiro fundamento das lutas camponesas é a luta de classes, já que ao reivindicar uma sociedade sem propriedade privada, diferenças sociais e sem a autoridade do Estado, os camponeses se chocaram com os interesses da aristocracia da terra, a nobreza e a Igreja. Como reconhece Löwy, assim procedendo metodologicamente, Engels revelou o potencial contestatório da religião, abrindo caminho para uma abordagem da religião distinta da filosofia das luzes, que a entendia como conspiração do clero, assim como, da alternativa neo-hegeliana, que via na religião a alienação da essência humana (LÖWY, 1991, p. 15).

2.3. Marxismo e Teologia da Libertação: apontamentos para uma interlocução

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