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Capítulo 2. Do caráter elitista da educação popular no contexto nacional desenvolvimenista à práxis revolucionária da Pedagogia da Libertação

2.4. A Pedagogia da Libertação: uma concepção de educação forjada na prática revolucionária da libertação

2.4.3. Trabalho e emancipação humana: o princípio pedagógico do trabalho no processo de libertação

Freire compreende a libertação como um momento privilegiado da realização humana, fruto não da dádiva de elites, ou vanguardas ilustradas, mas como uma produção dos próprios homens. Ao transformar a realidade concreta por meio do trabalho, categoria na qual se encontra inserido o ato de libertar-se, uma vez que por meio do trabalho o homem atua não somente sobre a natureza, mas sobre os outros homens, com os quais se relaciona a partir do condicionamento das relações sociais de produção, o homem produz direta e intencionalmente a sua humanidade, em condições que, apesar de herdadas, deixam de lhe ser estranhas.

Apreender a dimensão pedagógica desse processo não nos permite limitar o trabalho educativo ao momento em que a reflexão filosófica ressalta a teoria, que tem no espaço escolar em sentido restrito um lugar privilegiado. Diferentemente das teorias crítico- reprodutivistas, que no contexto em que Freire se encontrava no exílio ganharam destaque junto aos setores progressistas no campo da educação, a educação tem seu status definido pelas condições históricas e sociais concretas que incidem sobre a prática social dos indivíduos. Assim sendo, não é exclusividade do espaço escolar ser invadido pelos interesses dominantes.

Ao constatarmos que a escola pública empírica está contaminada por tais interesses, orientados pelos fundamentos teórico-práticos da Pedagogia da Libertação não é possível às camadas populares vislumbrarem uma escola abstrata, para um futuro distante, sendo sua tarefa travar no interiro dessa escola a luta hegemônica que se dá em todos os espaços da prática social.

Não há em Paulo Freire espaço para uma escola idealizada, fora da realidade concreta, ou a-histórica. A prática pedagógica se desenvolve em meio às contradições, na tensão entre a “realidade rebelde”103

e o desejo de mudança que se expressa nos diferentes projetos de organização das camadas populares para a conquista da educação que lhes convém, cujo interesse somente pode ser forjado no interior das contradições de sua prática social, jamais resultando de um processo de “invasão cultural”. É por isso que Freire rejeita a caracterização da prática pedagógica da libertação como método, já que os instrumentos para a superação dos entraves não podem ser doados, mas construídos pelo sujeito da transformação, correndo- se o risco em contrário de se mistificar a “transmissão” da técnica como elemento fundamental do processo amplo de organização da cultura. Ao serem doados os instrumentos técnicos, a práxis dos indivíduos permanece inautêntica, como observara Freire, apoiado em Marx, na Pedagogia do oprimido, (FREIRE, 2012, p. 43).

Enquanto a educação para a “domesticação” fundamenta-se na transferência de conhecimento, o que Sartre denomina de “concepção nutricionista do conhecimento” (cf. FREIRE, 2011e, p. 432), a educação para a libertação entende o processo educativo como um “ato de conhecimento e um método de ação transformadora que os seres humanos devem exercer sobre a realidade” (FREIRE, 2011e, p. 146). Uma pedagogia libertadora toma o momento da aquisição do saber como parte do “ciclo gnosiológico”, conforme Álvaro Vieira Pinto (cf. FREIRE, 2011e, p. 236):

A nova pedagogia (que considera a consciência o motor de todo aprendizado eficaz) não pode limitar-se a estruturar, a regular metodologicamente apenas a fase aquisitiva, apropriativa, dos conhecimentos disponíveis, pois esta corresponde unicamente à metade do ciclo gnosiológico, e sim tem de completar-se pela construção teórica da outra metade, a fase investigadora de conhecimentos originais, a fase da descoberta, da criação do conhecimento científico, aquela que corresponde à mais elevada das funções do pensamento, a atividade heurística da consciência (PINTO, 1979, p. 363).

Esta questão de ordem gnosiológica está intimamente articulada à problemática político-pedagógica e ideológica da conscientização colocada por Freire. Assim como o ciclo pedagógico não se fecha com a aquisição do conhecimento existente, estendendo-se na fase de criação do novo conhecimento, o processo de conscientização não termina com o

103 No parágrafo 17 do Cd. 13, ao fundamentar seu método para as análises histórico políticas, com vistas a superar os limites da fórmula político histórica da revolução permanente, Gramsci desenvolve a questão das relações de força, destacando as ondas de oscilação na luta hegemônica entre as classes fundamentais, a burguesia e o proletariado. Gramsci distingue três níveis das relações de força em: 1) relações de forças ligadas à estrutura objetiva; 2) relação de forças políticas; 3) relação das forças militares. A “realidade rebelde” é destacada no primeiro nível das relações de força como resultante do grau de desenvolvimento das forças materiais de produção que definem os diferentes agrupamentos sociais. Trata-se dos dados objetivos que não podem ser modificados, mas que devem ser considerados pelo analista (GRAMSCI, 2007a, p. 40).

desvelamento da realidade, já que o ato de conhecê-la encontra-se em uma dinâmica unidade dialética com a prática de transformá-la (FREIRE, 2011e, p. 238).

Em Extensão ou comunicação? Freire rejeita o conceito de “extensão”, dando continuidade à crítica ao equívoco gnosiológico da invasão cultural, desenvolvida na

Pedagogia do oprimido. Freire também reitera o caráter gnosiológico da dialogicidade,

defendido em Ação cultural para a liberdade como um dos elementos fundamentais no processo de ensino e aprendizagem na perspectiva da libertação. Assevera Freire:

[...] se o conhecimento científico e a elaboração de um pensamento rigoroso não podem prescindir de sua matriz problematizadora, a apreensão deste conhecimento e do rigor deste pensamento filosófico não pode prescindir igualmente da problematização que deve ser feita em torno do próprio saber que o educando deve incorporar104 (FREIRE, 2010, p. 54).

A isso Freire denomina de “problematização dialógica”, em contraposição ao pensamento formalista, fundamentado em “narrações verbalistas”, cujo único objetivo é a aquisição passiva do conteúdo a ser recebido e memorizado, para em seguida ser repetido.

No entanto, ao acentuar o caráter dialógico do momento da problematização, Freire não incorre no equívoco de secundarizar o papel do professor no exercício do pensamento crítico de seus alunos. O momento da problematização deve ser uma oportunidade para que ambos, educador-educando e educando-educador, organizem um pensamento correto.

Assim, ao questionar o papel pedagógico exercido pelo “agrônomo-educador”105 no processo de reforma agrária chileno, que, como vimos anteriormente, deve distanciar-se da mera extensão de conhecimentos, Freire propugna que a capacitação técnica seja acompanhada do processo de transformação cultural, já que entre o técnico e o cultural não há dicotomia. Neste ponto de Extensão ou comunicação? Freire retoma o pressuposto enfatizado em Educação como prática da liberdade, segundo o qual as soluções para os problemas concretos do povo devem ser construídas “com ele”, e nunca “para ele”, já que, como vimos anteriormente na referida obra, a responsabilidade não poder se incorporada ao homem intelectualmente, mas existencialmente.

Freire tem por pressuposto a “socialização da subjetividade” (DÍAZ, s/d) no processo de transformação social. Não basta, como observa Torres, a mera tomada de consciência da realidade:

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Assim, a um professor de História não basta situar os fatos históricos na totalidade. É preciso proporcionar aos educandos o exercício do pensamento crítico, por meio da elaboração de interpretações próprias dos fatos (FREIRE, 2010, p. 53).

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Jacques Chonchol, vice-presidente do INDAP, denominava Freire de “educador-agrônomo” (Boletim UniFreire, Edição 06).

Numa perspectiva genuinamente freiriana, a conscientização penetra no dinamismo da transformação coletiva (consciência de mundo), unindo-se à consciência coletiva dos grupos e das classes. Se o fator subjetivo for reconhecido em todo o processo de transformação social (e, a partir daí, as propostas colocadas em prática por Freire em áreas educacionais bem definidas, como a educação não-formal de adultos), então, aceita-se que esse processo de transformação só poderá ter lugar quando subjetivo e objetivo começarem a convergir, opondo-se e unindo-se um ao outro, constituindo- se mutuamente num processo e num projeto únicos de transformação social (TORRES, 1997, p. 26).

Tal assertiva está distante tanto do humanismo vago, quanto do fetichismo da ciência e da tecnologia, já que a transformação social não pode prescindir da conjunção de homens e instrumentos e trabalho. Estes dois elementos fundamentais da transformação social, ao serem articulados reiteradamente no conjunto da obra freireana, vão ganhando contornos mais precisos, que buscaremos evidenciar como fundamentos de uma possível concepção do campo das pedagogias socialistas, centradas no princípio educativo do trabalho. O desenvolvimento ocorrido na concepção pedagógica freireana está intimamente relacionado à participação efetiva de Paulo Freire em processos revolucionários na América Latina e na África, não podendo ser compreendido somente pelo acúmulo teórico, ainda que a recorrência ao marxismo não possa ser desconsiderada.

O contato com os camponeses chilenos possibilitou uma base empírica para a proposição de que a prática social ou existencial em que estão inseridos os indivíduos é o ponto de partida da atividade pedagógica. E após destacar os procedimentos técnico-empíricos dos camponeses, assim como, a base cultural em que se constituem suas formas de proceder e de perceber a realidade, como ponto de partida da intervenção do agrônomo-educador, Freire dá um passo significativo na superação da dicotomia entre a educação formal e não-formal, escolar e não-escolar, já que a ação pedagógica direta e intencional, evidente no trabalho educativo realizado pelo agrônomo-educador, ganha maior dimensão ao articular-se ao processo global de transformação social. A mudança não pode se limitar ao domínio das técnicas de produção, a este esforço deve estar articulado o da transformação cultural, intencional, sistematizada e programada (FREIRE, 2010, p. 58).

Aqui é possível compreendermos o sentido dos conceitos de educador-educando e educando-educador106, ambos inseridos no processo de organização cultural e transformação social, concretizando-se o vínculo com a proposição marxiana presente na Tese III Sobre Feurbach, reiterada inúmeras vezes na obra freireana, da coincidência entre o processo

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Em Sobre a educação, Mao Tsé-Tung desenvolve uma reflexão próxima à do educador-educando e educando-educador freireanos: A fonte de nossa fortaleza está nas massas. Se algo não representa as aspirações do povo, não é bom. Devemos aprender com as massas, formular nossas políticas, e educar as massas. Portanto, se queremos ser professores, paracomeçar temos que ser alunos. Nenhum professor começa [sua carreira] como professor. Após se converter em professor, deve seguir aprendendo com as massas para entender como ele mesmo aprende. É por isso que existem cursos de psicologia e educação no treinamento dos professores. O que se aprende torna-se inútil se não entende a realidade (MAO TSÉ-TUNG, 1964).

transformação social e a educação. O asentamiento deixa de ser apenas uma unidade de produção, tornando-se também uma “unidade pedagógica107” (ibidem).

Freire nos apresenta uma acepção ampla de unidade pedagógica, em que todos aqueles que estão ligados ao processo de transformação são educadores, desde o professor que atua no centro de educação básica, agrônomos, administradores, planificadores, pesquisadores etc. Isso porque a formação nas unidades de produção não pode se limitar ao ensino da técnica, já que, como vimos anteriormente, a alteração na base de produção deve ser acompanhada de um processo intencional de transformação cultural. Adverte Freire que:

Somente a ingenuidade tecnicista ou mecanicista pode crer que, decretada a reforma agrária e posta em prática, tudo o que antes foi já não será; que ela é um marco divisório e rígido entre a velha e a nova mentalidade [...] Na visão crítica do processo da reforma agrária, esta, pelo contrário, é uma ação totalizada que incide sobre uma totalidade, que é a realidade que será transformada, sem que isto signifique que a nova realidade que vai surgir não esteja marcada pela anterior (FREIRE, 2010, p. 61).

No processo de organização e transformação cultural, ocorre a “inter-conscientização” entre o corpo técnico e os camponeses, ambos agentes no processo de transformação social, cuja percepção da realidade transita no processo de transformação das circunstâncias do puro intelectualismo do primeiro, e o praticismo e empirismo dos segundos, para uma práxis verdadeira, na acepção freireana vincula à Tese III, como práxis revolucionária108.

Leandro Konder reconhece ser esse um dos grandes desafios da filosofia da práxis na atualidade, caso mantenha-se fundada em princípios dialéticos originários, como o diálogo e a intersubjetividade. O que não pressupõe a eliminação das contradições, já que elas são um pressuposto da dialética. É na relação com o outro que passo a ter uma referência capaz de conter o ímpeto voluntarista que me leva ao isolamento. A liberdade que anuncia se concretiza e se completa por meio do reconhecimento da “necessidade” que o outro

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Conceito que tem o mesmo significado de “unidade cultural”, utilizado em Ação cultural para a liberdade e outros escritos (FREIRE, 2011e, p. 51). Muito próximo a Mao, que afirma: Há uma fábrica junto às faculdades de ciências e engenharia da Universidade Tsinghua porque os estudantes devem aprender com os livros e trabalhar ao mesmo tempo. Mas não podemos estabelecer fábricas para as faculdades de artes, assim como uma fábrica de literatura, uma fábrica de história, uma fábrica de economia, ou uma fábrica de novelas; estas faculdades devem considerar toda a sociedade como sua fábrica (MAO TSÉ-TUNG, 1964).

108 Karel Kosik confronta a postura do “comissário”, mistura de revolucionário e burocrata, que busca transformar os homens sem transformar-se a si mesmo, acreditando que sua atividade terá mais sucesso se o objeto da sua transformação e educação for passivo. Advém com isso a antinomia apontada por Marx, segundo a qual os homens são rigidamente subdivididos em dois grupos, sendo um deles elevado acima da sociedade. A isto Kosik contrapõe a assertiva presente na terceira das Teses sobre Feuerbach, em que Marx e Engels afirmam que “os homens modificam as circunstâncias e os educadores são educados” (KOSIK, 1969, apud, KONDER, 1992, p. 138).

representa. Na relação com o outro sou posto em contato com a realidade, cujo isolamento pode impedir-me de enxergar (KONDER, 1992, p. 139).

A questão da inter-conscientização no processo de transformação, desenvolvida na

Pedagogia do oprimido (FREIRE, 2012) como fundamento de uma teoria da ação

revolucionária é retomada na última parte de Extensão ou comunicação?. Ao avançar na crítica ao conceito de extensão, Freire reitera o caráter gnosiológico da educação, advertindo para o equívoco do educador ao pretender estender os conhecimentos técnicos até os camponeses, em vez de tomar como objeto de compreensão mútua o fato concreto, buscando- se por meio da comunicação eficiente a superação do equivoco da invasão cultural. A invasão cultural tem suas raízes na não compreensão por parte dos educadores de que o modo mágico de pensar dos educandos é condicionado pelas relações sócio-culturais concretas nas quais estão inseridos, equivoco característico de um humanismo fundado em bases idealistas, que desconsidera as determinações históricas do seu “estar sendo” (FREIRE, 2010, p. 73).

Como afirmamos em outro momento, Freire não secundariza o papel do professor, o que implicaria na aceitação do espontaneísmo dos alunos. Exige-se dele um “diálogo problematizador” (FREIRE, 2010, p. 53), que realize a articulação entre os conteúdos postos a serviço da transformação revolucionária e a forma como se desenvolve a educação para a libertação. Assim, o processo revolucionário exige do professor a disposição:

[...] para “morrer” enquanto exclusivo educador dos educandos no sentido de renascer, no processo, como educador-educando dos educandos. Por outro lado, tem de propor aos educandos que também “morram” enquanto exclusivos educandos do educador para que renasçam como educandos-educadores do educador educando (idem, 2011e, p. 150).

Se fizermos um exercício reflexivo de ampliação do conceito de “educador”, extrapolando os limites da figura do professor, perceberemos a crítica contundente que Freire faz à redução do pensamento marxista pelo stalinismo. O Estado ainda que sob a égide de uma vanguarda revolucionária, mantém o caráter domesticador da educação burguesa, necessitando ser ele próprio educado109.

Em Ação cultural para liberdade e outros escritos, conclui Freire que:

[...] a ação cultural [...] não pode, de um lado, sobrepor-se à visão do mundo dos camponeses e invadi-los culturalmente, de outro, adaptar-se a ela. Pelo contrário, a tarefa que ela coloca ao educador é a de, partindo daquela visão, tomada como um problema, exercer com os camponeses, uma volta crítica sobre ela, de que resulte sua inserção, cada vez mais lúcida, na realidade em transformação (ibidem, p. 53).

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Ao modelo stalinista Freire contrapõe as experiências das revoluções cubana e chinesa de Mao-Tse-Tung, cuja influência sobre o pensamento freireano é evidente.

Um projeto revolucionário mostra sua autenticidade ao cumprir sua vocação natural de “selar a unidade, a comunhão entre as lideranças e as massas populares” na prática da transformação da sociedade de classes e construção da sociedade socialista. Tanto menor será o risco de burocratização das lideranças revolucionárias, quanto maior for sua unidade com as massas (ibidem, p. 128).

É nas relações dialéticas com a realidade que deve ser debatida a educação popular, como um processo de constante libertação do homem, que não pode se desenvolver caso o isolemos do mundo, ou, por outro lado, isolemos o mundo do homem:

A história, na verdade, não existe sem os dois. Não é, de um lado, um processo mecanicista, em que os homens sejam meras incidências dos fatos; de outro, o resultado de puras ideias de alguns homens, forjadas em sua consciência [...] Pelo contrário, como um tempo de acontecimentos humanos, a história é feita pelos homens, ao mesmo tempo em que nela se vão fazendo também. E, se o que-fazer educativo, como qualquer outro que-fazer dos homens, não pode dar-se a não ser “dentro” do mundo humano, que é histórico-cultural, as relações homens-mundo devem constituir o ponto de partida de nossas reflexões sobre aquele que-fazer (idem, 2010, p. 76).

Ambos inacabados, mundo e homens se relacionam permanentemente num processo histórico-cultural dinâmico, em que o homem não somente o transforma, sentindo os efeitos dessa transformação. Também as novas gerações sentirão os efeitos da transformação, herdando as marcas da realidade objetiva.

O que não significa a adaptação ou acomodação dos indivíduos a esta realidade, o que para Freire seria impossível do ponto de vista científico, já que a realidade é um constante devir, negando-se aos homens a possibilidade de transformar o mundo. A educação verdadeiramente humanista, por outro lado, é necessariamente libertadora, aprofundando (ou radicalizando) a tomada de consciência que se opera nos homens durante suas ações, enquanto trabalham (ibidem).

E ao relacionar o processo de conscientização com a ação humana sintetizada no conceito de trabalho, Freire se choca frontalmente com as perspectivas individualistas e intelectualistas, que almejam atingir a conscientização pela via psicologista, idealista, subjetivista, ou multiculturalista. A conscientização somente pode ocorrer na confrontação dos homens com o mundo e a realidade concreta, tornada presente como objetivação, em um sistema de relações no interior da totalidade. Somente assim a mera percepção do fato pela consciência, ainda em seu nível mágico, pode atingir um nível mais complexo, tornando-se conscientização (ibidem, p. 77).

Ao situar o processo de conscientização no sistema de relações que se dão no interior da realidade, Freire exclui a possibilidade de que o esforço para se atingir o nível da conscientização seja de caráter individual. Tal esforço somente pode ser de caráter social, já que a conscientização não pode ser operada em seres abstratos, mas em indivíduos concretos, como práxis concreta que não é passível de ser reduzida à mera atividade da consciência.

É por isso que a problematização não pode ser um ato intelectualista, e assim como o ato cognoscente, ela é inseparável das situações concretas. E para não deixar dúvidas quanto ao vínculo da problematização com as situações concretas, assevera Freire que a problematização implica num retorno crítico à ação, ponto de partida e de chegada. Para Freire:

O que importa fundamentalmente à educação [...], como uma autêntica situação gnosiológica, é a problematização do mundo do trabalho, das obras, dos produtos, das ideias, das convicções, das aspirações, dos mitos, da arte, da ciência, enfim, o mundo da cultura e da história, que resultando das relações homem-mundo, condiciona os próprios homens, seus criadores (ibidem, p. 83).

Enfatizar as situações concretas como o ponto de partida da prática educativa não significa a permanência no “todo isolado”, que deve ser entendido como parte de uma totalidade maior, que deve ser desvelada por meio de um “esforço totalizador” que supere as limitações da mera transferência das técnicas, problematizando a estrutura na qual elas desenvolvem.

Reiterando elementos teórico-metodológicos apresentados na Pedagogia do oprimido

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