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A escolha do termo “sistema” por Jacques Ellul para definir a técnica moderna, ou, a técnica no mundo moderno, apóia-se na imprescindibilidade dessa ferramenta conceitual a fim de formar uma compreensão adequada sobre o que seja essa técnica moderna. Ele ilustra com o exemplo da medicina. A descrição dos modelos ideais de doenças configura uma perspectiva sistemática de observação de sintomas e elaboração de diagnósticos que acolhe a maioria, senão a totalidade, das manifestações de certa moléstia. Essa moléstia se enquadra na descrição exaustiva e articulada da moléstia ideal, ainda que se venha a revelar sob forma atípica, denotando poucos sintomas clássicos relacionados ao modelo. A sistematicidade do modelo ideal da moléstia permite acolher essas formas atípicas de maneira a conservar o que há de essencial naquela manifestação mórbida. Daí extrai-se uma forma de controle sobre a realidade que apenas o sistema permite alcançar.

A representação ideal da doença considerada se sobrepõe à realidade da atipicidade da doença faticamente encontrada. Essa representação que controla o juízo do médico acerca de uma moléstia estar presente ou não (diagnóstico) resulta, na medicina moderna, de um juízo calculado e mecânico, geralmente fundado em exames laboratoriais e de imagens, nos quais a matemática exercerá um papel determinante. Essa medicina diagnóstica é aqui uma forma de técnica diagnóstica que se reduz, contudo, a uma técnica moderna de diagnóstico amplamente dependente de toda a “armação” (Gestell) da medicina moderna. Esta produz, antes de qualquer coisa, diagnósticos, que são juízos baseados na representação de “sintomas calculáveis e aferíveis” por meio de informações produzidas em maquinário cada vez mais acurado.

Considerando que o sistema da técnica é um sistema aberto, segue Ellul, isto é, um sistema inserido no campo de estudo das ciências sociais, cuja especialização é extrema e cuja dinâmica não se apóia exclusivamente em sua própria lógica interna, propõe-se a análise desse sistema e da sua evolução88.

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Ellul, Jacques. The Technological System. Tradução de Joachim Neugroschel. The Continuum Publishing Corporation. New York. 1980. Pág. 78.

A lógica que compõe o sistema da técnica assenta-se na integração do fenômeno técnico e do avanço técnico, conforme a análise proposta por Ellul. 89 Assim, o fenômeno técnico seria algo típico da civilização ocidental. O autor localiza o seu surgimento à partir do século XVIII. Seu caráter é estático e exibe certos traços distintivos tais como o caráter crítico, a consciência e a racionalidade.

Esse elemento estático, contudo, não basta, adverte Ellul, para a constituição do sistema da técnica. Isso se explica em razão de o sistema aqui concebido trazer consigo essencialmente implicitamente a idéia de evolução. O sistema técnico exige, pois, o reconhecimento de sua dimensão dinâmica, a saber, do seu caráter evolutivo.

Nessa análise de Ellul temos, portanto, que o sistema técnico compõe-se de duas dimensões, a estática e a dinâmica, o fenômeno e o progresso. Não obstante, somos advertidos para a especificidade dos processos de mudança no âmbito da técnica. Diz Ellul que, diferentemente de outros aspectos da realidade que se deixam dominar por fatores externos e por eles têm seu progresso no tempo e seu destino determinados, a técnica opera a sua própria mudança. Isso se explica pelo fato de que o progresso é, desde sempre, parte constitutiva da técnica moderna.90

Não há técnica moderna sem o progresso que a caracteriza, diz Ellul. Não se trata aqui, de afirmar que os objetos da técnica moderna, ao mesmo tempo artefatos, produtos e instrumentos, sejam melhorados ou que tenham sua qualidade e quantidade de processos assimilados adicionada de fora para dentro. Ocorre justamente o contrário: a técnica exige a partir de si mesma um aperfeiçoamento que é produto de seu estágio anterior e ao mesmo tempo instrumento para o estágio posterior. Em suma, ela progride ou avança em seus processos a partir de si mesma de maneira incessante e auto-suficiente. Ellul resume da seguinte maneira a questão:

A técnica tem um dado específico, um traço pelo qual ela requer sua própria transformação por si mesma. A partir do exato momento em que ela existiu na sua realidade moderna, ela produziu o fenômeno do progresso. O progresso do qual estamos imbuídos e cuja ideologia inspira os nossos julgamentos é um resultado direto da técnica91.

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Ellul, Jacques. The Technological System. Tradução de Joachim Neugroschel. The Continuum Publishing Corporation. New York. 1980. Pág. 78.

90 Ellul, Jacques. The Technological System. Tradução de Joachim Neugroschel. The Continuum Publishing

Corporation. New York. 1980. Pág. 79.

91 Ellul, Jacques. The Technological System. Tradução de Joachim Neugroschel. The Continuum Publishing

Vemos, portanto, que a técnica moderna ultrapassa a si mesma na sua autodeterminação ao modo do progresso incessante e toca nossos próprios julgamentos. Desde uma perspectiva de uma ideologia perpassada pela idéia de progresso cuja origem não se apega ao desejo de felicidade ou de aperfeiçoamento ou melhoria das condições gerais de vida do homem, mostra-se esse progresso ideológico profundamente arraigado na dinâmica que sustenta a perpetuação da própria técnica moderna92.

Por essa concepção exposta por Ellul, “a conjunção do fenômeno técnico com o progresso técnico é o que constitui o sistema técnico.” Ele enxerga, assim, traços, regulações e “leis” em ambos os aspectos constituintes desse sistema. A forma como o progresso da técnica se desenvolve, argumenta Ellul, reveste-se de certas peculiaridades que a distinguem de outros tipos de evolução. Ele refere especialmente os processos econômico e cultural de evolução para reforçar essa sua tese. Nem o progresso econômico nem a progressiva elaboração cultural seriam similares ao progresso técnico.

A diferença entre o progresso técnico e todos os outros tipos de progresso estaria no fato de que, enquanto estes se comporiam de fatores exógenos, mistos, aquele, ao contrário, compõe-se preferencialmente de fatores endógenos. A economia evoluiria tanto em razão da atuação de suas próprias leis específicas, como a lei da oferta e da procura, como em função de saltos tecnológicos que permitam correspondentes saltos de produtividade, ou ainda, de fatores políticos ou jurídicos, como a imposição de barreiras comerciais, e até físicos, como catástrofes naturais. Igualmente no que se refere á cultura, uma miríade de acontecimentos pode repercutir nos rumos da história cultural de um povo ou de uma civilização, a saber, os mesmo que influem no progresso econômico e tantos outros, inclusive o próprio progresso econômico.

O progresso técnico, ao contrário, exibe uma singularidade em relação a essas outras formas de evolução. Essa singularidade reside, segundo Ellul, no fato de que, na evolução da técnica, os fatores técnicos atraem-se preferencialmente uns aos outros. Vige uma atração essencial entre os fatores técnicos no âmbito do progresso técnico. A relação com os fatores exógenos, atinentes à economia, à política, à cultura e outros conservam tão-somente um valor secundário na determinação desse progresso da técnica moderna.

92 Ellul, Jacques. The Technological System. Tradução de Joachim Neugroschel. The Continuum Publishing

Em prosseguimento a essa análise do sistema técnico, Ellul observa que não se trata de um algo que possa afirmar sua existência fora do corpo social. Ao contrário, o sistema técnico somente existe “na medida em que se integra á sociedade”. Não pode, portanto, ser concebido como uma natureza que possa existir por si mesma93. A “natureza social”, emenda Ellul, é que se pode afirmar como preexistente ao sistema técnico e este apenas encontra suas condições de existência a partir desta sociabilidade. Não obstante, ele adverte, o sistema técnico não poupa a sociedade da sua capacidade de transformação.

Esse passo é importante para esclarecer a relação entre o sistema técnico e as instituições sociais. A família, exemplo trazido pelo autor, é profundamente impactada pela atuação do sistema técnico, pois deixa de ser explicada e influenciada pelas concepções exclusivamente sociológicas e passa a integrar uma realidade nova, uma realidade que dependerá doravante essencialmente do sistema técnico, tornando-se, assim, uma “família num ambiente técnico”.94

O ambiente técnico revela uma esfera social colonizada pela técnica moderna. Os esforços de automatização e informatização das tarefas que compõem o trabalho humano são a medida dessa tecnicização do ambiente social. O trabalho humano não seria assim ajudado pela técnica, auxiliado na eficiência da sua consecução. A melhora da eficiência é um subproduto da instalação do sistema técnico como ambiente técnico. A sistematicidade técnica inerente aos processos automatizados e informatizados precede-os, ou deve precedê-los, a fim de justificar a sua instalação. A ligação íntima e logicamente justificável entre as partes e tarefas individualizadas afirma-se como uma ligação sistêmica, isto é, uma relação de controle e de dominação a partir da idéia do sistema técnico em progresso.

A unidade do sistema técnico, bem como o seu caráter preponderante sobre a sociedade, é mais de uma vez afirmada nas ponderações de Ellul, por exemplo, quando ele diz que o sistema técnico não se fragmenta em inúmeros fatores técnicos que se integram aos vários contextos econômicos, culturais, políticos e outros. Ao contrário, há sempre um só sistema técnico que, a partir de sua unidade e coesão, intervém sob diversas modalidades eliminando a fragmentação que já é aquela fragmentação preexistente do

93 Ellul, Jacques. The Technological System. Tradução de Joachim Neugroschel. The Continuum Publishing

Corporation. New York. 1980. Pág. 81.

94 Ellul, Jacques. The Technological System. Tradução de Joachim Neugroschel. The Continuum Publishing

tecido social e não do sistema técnico que agrega esses fragmentos à sua dinâmica de progresso contínuo e irrefreável95.

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Ellul, Jacques. The Technological System. Tradução de Joachim Neugroschel. The Continuum Publishing Corporation. New York. 1980. Pág. 81.