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12. A Questão da Técnica: o Ponto de Vista de Heidegger

12.3. Perigo e Liberdade

Em esclarecimento do verdadeiro sentido da idéia de destino, Heidegger adverte que, embora este destino de desencobrimento esteja sempre a dominar os homens em sua totalidade, isto não significa, porém, que o faça ao modo da fatalidade ou da coação. E ilustra, dizendo que o homem somente se torna livre na medida em que pertence ao âmbito do destino, como um ouvinte (Hörender) e não como um servo (Höriger).190Essa advertência vem muito a propósito, pois permite fazer a distinção entre uma atitude passiva e uma outra ativa do homem em face do envio do mandamento destinal que acompanha o desencobrir da técnica.

Somente quem ouve obedece ao mandamento e cumpre o seu destino. Porém, nem tudo que se ouve acerca da técnica e do direito que a acompanha deve ser forçosamente cumprido. O servo ouve e deve obedecer cegamente às ordens, quaisquer que sejam; o ouvinte, ao contrário, deve perceber a realidade e por-se num acordo com o envio mandamental que acompanha a técnica. A coação, portanto, deve ser afastada dessa concepção destinal-historial de direito. O destino aqui não é uma ordem a cumprir emanada da divindade. O destino, como já dito, nomeia aquele historial a ser recebido a assumido como poder-ser, isto é, como possibilidades fundamentais e autênticas do homem.

Para Heidegger, a essência da liberdade “não pertence originariamente ao querer humano” nem se reduz à causalidade desse querer191

. Atentemos para o que ele próprio diz a esse respeito:

A liberdade domina o que é livre no sentido do que é focalizado, isto é, do que se desencobre. A liberdade está num parentesco mais próximo e mais íntimo com o acontecimento do desabrigar, isto é, da verdade. Todo desabrigar pertence a um abrigar e ocultar. Mas o que está oculto e sempre se oculta é o que liberta, isto é o mistério. Todo desabrigar surge do que é livre, vai para o que é livre e leva para o que é livre.192

O desabrigar é sempre um desabrigar da verdade. Portanto, a íntima relação afirmada por Heidegger entre o desabrigar e a liberdade não pode senão nos remeter por

190

Heidegger, Martin. Ensaios e Conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Editora Vozes. Petrópolis. 2002. P. 28.

191Heidegger, Martin. Ensaios e Conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Editora Vozes.

Petrópolis. 2002. P. 28.

192 Heidegger, Martin. A Questão da Técnica. Tradução de marco Aurélio Werle.Cadernos de Tradução. N. 2

um caminho de mistério como ele próprio expressamente o declara neste excerto, pois, conforme a palavra recebida em cada alma cristã: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. 193

Essa liberdade que aqui surge na vizinhança do desabrigar técnico não consiste, diz Heidegger, na “independência do arbítrio” nem tampouco “no compromisso com meras leis”. A liberdade é aquilo que “iluminando oculta” é o “âmbito do destino” que sempre envia “um desabrigar para o seu caminho.”

Se a essência da técnica moderna repousa na com-posição e esta pertence ao destino do desencobrimento,194não é verdade, porém, que o destino do nosso tempo, entendido este destino como algo fatal e incontrastável, seja a técnica moderna. Isso porque, ao mesmo tempo que experimentamos a técnica moderna como com-posição, como destino de desabrigar, encontramo-nos num espaço de liberdade dentro desse mesmo destino.

Por não estarmos irremediável e cegamente entregue á tirania da técnica moderna, não devemos agir como tal, “insurgindo-nos contra ela” e “amaldiçoando-a”, como diz Heidegger. A relação com a essência da técnica põe-nos numa perspectiva de um “apelo libertador” ante a técnica moderna195

.

O caminho do homem traçado pelo destino do desencobrimento é ladeado por uma possibilidade: a de que o homem ao seguir sempre neste caminho de desencobrimento favoreça apenas aquele fundo de subsistência que se desencobre de acordo com o requerer da técnica. Aquilo que se reduz a meros fundos de subsistência pode fornecer parâmetros e medidas capazes de enredar toda a vida humana numa calculação e numa mecanicização sem limites.

Ao caminhar ao lado da possibilidade de favorecer tão-somente a o que se desencobre como fundos de subsistência, e de assim tomá-los como parâmetro e medida para a sua vida, o homem abandona a possibilidade de empenhar-se na procura da essência daquilo que se desencobre.

193 João, 8:32.

194 Heidegger, Martin. Ensaios e Conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Editora Vozes.

Petrópolis. 2002. P. 28.

195 Heidegger, Martin. Ensaios e Conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Editora Vozes.

Ao oscilar entre estas duas possibilidades, o homem defronta-se, então, com o “perigo” (Gefahr). Este, não está dito de maneira clara por Heidegger, porém, dizemo-lo nós: é uma força que se apodera do caminhar e do percorrer humanos, interpelando-os ameaçadoramente no seu caminho. O Gefahr acomete o frequentador da senda traçada pelo destino, ele reúne todos os riscos num só e grande perigo: o risco de que o verdadeiro (essencial) retire-se do correto (certificável).

Esse perigo de que se retire o essencial daquilo que é correto do ponto de vista da previsibilidade calculável e operativa é também o grande perigo do direito e para o direito na época do domínio da técnica e do direito guiado por ela. O direito da nossa época se ressente dessa correção extrema que nos impõe o imperativo de segurança jurídica. A segurança, que implica esse cálculo e essa previsibilidade, exige a renúncia ao cuidado jurídico. Tive ocasião de me manifestar acerca da segurança jurídica de maneira breve em trabalho anterior, nos seguintes termos:

Ao entregar-se a si mesmo à ditadura do impessoal o ser-aí se ‘liberta’ do encargo de responder pela própria compreensão e interpretação de si mesmo a partir do seu mundo seguindo uma tendência de superficialidade e de facilitação196. Essa alienação da responsabilidade própria confere ao ser-aí um sentimento tranqüilidade e de segurança que lhe é necessário para que possa viver na cotidianidade da convivência. A segurança, revestida da forma específica de segurança jurídica, vem a ser justamente um dos pressupostos de um sistema jurídico. Ela é necessária para que os atores do direito possam realizá-lo no dia-a-dia, sem ter que questionar, a cada negócio jurídico, a exercício de um direito subjetivo, enfim, se este será ou não cumprido, respeitado, garantido. De fato, as pessoas não se perguntam, normalmente, se as leis que regem uma compra e venda, ou uma locação, um contrato de trabalho, ou um tipo penal, são justas ou não. Podem até fazê-lo posteriormente, quando do surgimento de um conflito de interesses num caso concreto, mas quando da realização da ação que faz surgir o direito ou a obrigação, tudo que se deseja é que as normas sejam válidas para todos e reciprocamente para as partes, quaisquer que sejam elas, pois, do contrário, seria impossível legitimar qualquer ato de forma pacífica e civilizada.

Etimologicamente a palavra segurança nos remete, coincidentemente ou não, novamente ao tema do cuidado. Segurança não quer dizer outra coisa senão ausência de cuidado. Segurança jurídica, portanto, quer dizer, ausência de cuidado jurídico. Não ausência de cuidado no sentido de cautela ou precaução, mas sim cuidado como atitude ontológica do ser-aí capaz de lhe repor a sua autenticidade.197

196

HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1963, p. 127-128.

197 FELICORI, Sergio T. Direito e Ética na Filosofia de Martin Heidegger. UFMG. Belo Horizonte. 2005.

O homem que renuncia ao cuidado em qualquer esfera da vida pacifica o temor e vive em paz, mas a paz, cujo conceito original romano tanto se distingue da concórdia, cobra um alto preço: a perda da essência da verdadeira coexistência jurídica. Se viver sem cuidado, isto é, em segurança jurídica, equivale a viver a vida pacata (que paga tributo ao sistema), viver no cuidado jurídico próprio afasta o perigo (Gefahr) que o destino do desencobrimento indica no caminho ladeado por aquela possibilidade apontada por Heidegger de perda da verdadeira essência do que a técnica desencobre. Também no direito, que deve desencobrir, por sua técnica normativa e interpretativa próprias, verdades jurídicas como a justiça, a ordem, a concórdia, etc., deve resguardar-se naquele cuidado fundamental com a essência das coisas e com as interações com entre os homens numa convivência espontânea.

Observe-se que não se trata aqui de analisar velhas questões jurídicas como a oposição frequente entre legitimidade e legalidade ou entre justiça e ordem. Refiro-me aqui a uma característica do sistema jurídico que permite ao homem, ou dele exige, que se submeta como elemento do próprio sistema e que abandone o papel de pastor do ser no seu ser em comum que se realiza na convivência espontânea e autorregulada entre os homens.

O homem jurídico, que sempre haveria de constituir uma face fundamental e original do ser humano dispersa-se na operatividade do sistema que, ora justificado em si mesmo como sistema normativo pura e simplesmente, ora arrastado pelo requerer da técnica, oscila assim entre dois cálculos, entre duas medidas incongruentes e ambas estranhadas com o ente ao qual afinal destinam o produto da sua atuação.