• Nenhum resultado encontrado

5. A Época da Técnica

5.3. O Super-homem

Cumpre dizer que a superação em Nietzsche está personificada no super-homem. “Mortos estão todos os deuses: agora queremos que viva o super-homem!” Assim anuncia Nietzsche na sua Gaia Ciência, 1883, o advento da “nova raça” que, uma vez liberada da tirania dos deuses, agora mortos, deve reinar livre sobre a terra. O homem liberado dos deuses é o homem que se libertou do mundo supra-sensível, ou, por outra, que se libertou do mundo do pensamento representativo.

O super-homem é essa figura essencial, diz Heidegger, que encarna a humanidade que superou a antiga raça. E ele esclarece que, com super-homem Nietzsche não quis designar um indivíduo isolado, ou um grupo de indivíduos, que pudesse desenvolver suas capacidades até um estágio inédito para a raça humana atual. Também não se trata de aplicar as possíveis diretrizes oriundas da leitura da filosofia desse filósofo. O super- homem, na verdade, “nomeia a essência dessa humanidade que, enquanto moderna, começa a entrar na consumação da essência da sua época80”.

Segundo Heidegger, o “super” (Über) da expressão “super-homem (Übermensch) que significa ir mais além, passando por sobre o homem atual. Essa partícula que indica a superação do homem indica também uma negação que se dirige contra toda a interpretação metafísica do mundo mediada por uma concepção platônica e de moral cristã, quaisquer que seja ela81.

Como conceito geral de super-homem Heidegger indica aquele que se refere “à essência niilístico-histórica da humanidade. “82 Além disso, prossegue, o super-homem aponta para uma humanidade que pensa a si mesma de uma maneira nova. E pensar de uma maneira nova a si mesma quer significar aqui para Nietzsche, segundo Heidegger, uma humanidade que se queira si mesma.

80 Heidegger, Martin. Holzwege. Vittorio Klostermann. Frankfurt am Main. 1972. Pág .232.

81 Heidegger, Martin. Nietzsche. Volume II. Tradução de Juan Luis Vermal. Ediciones Destino. Barcelona.

2000. P. 236.

82 Heidegger, Martin. Nietzsche. Volume II. Tradução de Juan Luis Vermal. Ediciones Destino. Barcelona.

Benedito Nunes assim se refere dessa forma à gênese do super-homem:

Estreitamente solidárias, a doutrina da vontade de potência e a doutrina do Eterno Retorno compõem o cenário historial da época, onde aprece, trazido por Zaratustra, esse homem diferente, o Übermensch (super- homem), que já estendeu o seu poder sobre a terra inteira, e para quem, impronunciado porque se dissipou, o ser converte-se num “erro, numa fumaça, numa ilusão”. O aparecimento do super-homem prenunciaria a necessidade de criarem-se as novas tábuas, os novos códigos da cultura ocidental, corroída por incurável decadência, que desvalorizou, depois de falseá-los, os seus “mais altos valores”. 83

No prólogo do Zaratustra, onde a saga do super-homem será narrada e suas virtudes exaltadas, Nietzsche apresenta a personificação da superação metafísica nos seguintes termos:

“Vede, eu vos apresento o super-homem! O super-homem é o sentido da terra. Que a vossa vontade diga:

Seja o super-homem o sentido da terra!”

Heidegger afirma que o super-homem nega a essência daquilo que o homem tem sido até o momento. Postado no interior da metafísica, diz ele, o homem é o animal racional, e nesta determinação de racional se sustenta toda história ocidental. Na origem desta determinação metafísica do homem como animal racional assenta algo ainda incompreendido e que não foi posto ainda para ser pensado de uma maneira essencial. Negando a essência do homem tal como ele foi compreendido até o momento como essencialmente racional, o super-homem afirma uma visão niilista, afetando a concepção racional do homem. E a essência metafísica da razão consiste, prossegue o filósofo, no fato de que o ente em sua totalidade é interpretado de acordo com o pensamento da representação, ou pensar representante84.

Heidegger adverte que a negação niilista da razão não deve ser entendida como uma negação do pensamento racional ( ratio). Ao contrário, diz ele, essa negação recupera esse pensamento racional a fim de pô-lo a serviço da animalidade do homem. Assim, se o pensar racional e a animalidade, que compõem o ente humano, estão em pólos invertidos,

83 Nunes, Benedito. Passagem para o Poético. Filosofia e Poesia em Heidegger. Editora Ática. São Paulo.

1986. 234.

84 Heidegger, Martin. Nietzsche. Volume II. Tradução de Juan Luis Vermal. Ediciones Destino. Barcelona.

também invertida estará em sua própria concepção a animalidade. Esta não deve ser considerada como aquela sensibilidade grosseira que nasce e habita o que há de mais inferior no homem.

A esse respeito, descrevendo o que Heidegger teria entendido acerca do super- homem de Nietzsche, e no sentido de esclarecer essa relação entre o animal racional e a animalidade que se oporiam dentro desta categoria nietzscheana, Schürmann assim se manifesta:

O super-homem é contracategoria que se opõe ao nous, bem como à sua figura mais propriamente metafísica, o animal rationale. A sua oposição à ratio, a razão, não significa qualquer projeto irracional; “super-homem” é o nome da figura que responde por uma forma peculiar de racionalidade. É o nome do agente duplo por trás da alta estima na qual o Ocidente tem mantido a razão, o agente duplo que a vontade de potência é, neste seu sentido e imediatidade, o eterno retorno. O super-homem é o agente da racionalidade da dominação.85

Para Heidegger, contudo, a animalidade que o niilismo nietzscheano resgata é aquela do “corpo vivente” (leibendes Leib). Este corpo vivente é um feixe de impulsos que se orientam, a partir do corpo e da sensibilidade mais íntima, para a afirmação da vida e de si mesmo no sentido mais amplo e mais intenso86. Deste modo, em Nietzsche o corpo é elevado à dignidade de razão superior. O corpo e a multiplicidade de impulsos que dele brotam e para sua afirmação se orientam são princípios de determinação da razão humana. A razão corpórea fundamenta o vivente submetendo a racionalidade inerente ao homem à animalidade. Essa mudança de perspectiva afasta aquela visão de mundo fundada na metafísica tradicional, de inspiração platônica, racionalista e cristã.

Assim, podemos dizer, ainda com Schürmann, que a era da metafísica pode ser considerada encerrada, e a da técnica iniciada, quando a técnica moderna puder mostrar-se capaz de “permutar espírito e corpo”, ou” quando o homem da técnica puder valorar o seu corpo”. 87

Dessa forma, podemos dizer que a era da técnica constitui a época sucessora da superação da metafísica. A era que, apoiada na crença científica combinada com a

85

Schürmann, Reiner. Heidegger. In Being and Acting: From Principles to Anarchy. Indiana University Press. Bloomington. 1990. P. 200.

86 Heidegger, Martin. Nietzsche. Volume II. Tradução de Juan Luis Vermal. Ediciones Destino. Barcelona.

2000. P. 238.

87 Schürmann, Reiner. Heidegger. In Being and Acting: From Principles to Anarchy. Indiana University

descrença suprema em Deus, ou a descrença na supremacia divina como fundamento último de todas as coisas e de todas as ações humanas, rejeita o que não seja sensível como elemento de avaliação ou de valoração das coisas, porém, ao mesmo tempo, é capaz de levar o pensamento representativo, a calculação e a maquinação e extremos jamais imaginados. Nessa época da técnica, o próprio corpo torna-se objeto de uma valoração singular que implica uma calculação e uma maquinação no controle da animalidade humana, isto é, da vida humana em seu viés materialista e concreto, o único passível de uma abordagem propriamente técnica ou tecnológica.