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12. A Questão da Técnica: o Ponto de Vista de Heidegger

12.4. O Perigo Ético da Técnica e sua Superação

Parto do pressuposto de que a técnica contenha em sua essência, na qual se entrelaçam homem e requerer numa só com-posição, a possibilidade de uma negação moral que equivale mais ou menos à idéia de mal ontológico.

Que o mal é uma possibilidade real da técnica, que esta pode ser posta em ação para fins destrutivos, não é necessário comprovar muito além da experiência histórica mais imediata, com acidentes nucleares, guerras e experimentos biológicos cruéis. No entanto, mesmo quando voltada para fins inteiramente benéficos, sabemos que a técnica pode revelar um lado sombrio.

Destrutiva e fora de controle: assim Zuben resume os grandes problemas éticos relacionados à técnica:

As técnicas trazem em seu seio um potencial destruidor. A tecnociência tem como projeto conhecer o mundo e agir sobre ele; isso subentende certa afinidade entre técnica e violência. Tal afinidade se vincula à própria natureza da pesquisa tecnocientífica que é essencialmente ambivalente: inevitavelmente criadora de bem-estar e de perigo. (...) Uma outra idéia que retém nossa atenção é a velocidade das inovações técnico-científicas que se configura como obstáculo ao nosso domínio sobre elas.198

No entanto, destrutividade e ausência de controle não são atributos exclusivos da técnica. Ao contrário, a natureza pode ser tão ou mais destrutiva e incontrolável quanto a própria técnica.

Os entes da natureza e aqueles outros cuja essência a técnica desencobre não se distinguem em seu aspecto existencial, senão no fundamento de sua existência. Os primeiros contêm em si mesmos o seu princípio (arché), já os últimos têm seu princípio em outro ente. Formam, contudo, em seu conjunto, uma totalidade de sentido que não pode ser cindida por uma oposição que não se sustenta de maneira originária. A natureza e seus entes são a base para a atuação da técnica e para a essência desencoberta dos seus entes. Somente numa especificação em relação à natureza pode a técnica obter o seu produto. Neste sentido, a técnica não pode superar a natureza, senão realizar suas possibilidades infinitas.

Realizar possibilidades infinitas, o incondicionado, na linguagem de Schelling, implica realizar as boas e as más possibilidades, pois está fora do alcance limitado da natureza humana realizar tão-somente o bem e afastar todo o mal. Muito pelo contrário, a natureza limitada do homem e o fato mesmo da individuação que compõem a sua condição, indicam uma negação do espírito incondicionado. Essa negação, que a própria finitude posta como individuação, é a fonte de todo egoismo e de toda vontade pervertida do eu absoluto tornado ser humano livre.

Sabe-se que, para Schelling, a liberdade humana tem como condição a hipótese do mal. O mal é poder exclusivo do homem entre todos os entes. Da mesma forma, a técnica é um modo de desencobrimento da verdade que apenas ao homem está acessível. O mal da

técnica está implicado na essência da liberdade humana e o homem, como único titular da liberdade e do mal, carrega consigo esse “privilégio” para dentro daquela reunião com o requerer da técnica que constitui a com-posição. Nela e a partir dela o homem enfrenta aquele perigo de perda da própria essência, que ocorre quando ele favorece o que se desabriga como fundo de subsistência e disso faz sua medida e seu parâmetro.

O mal da técnica e o perigo da perda da própria essência se encontram assim no interior da com-posição. Heidegger diz que,

“a com-posição é o perigo extremo porque justamente ela maeaça trancar o homem na dis-posição(subsistência), como pretensamente o único modo de desencobrimento. E assim trancado, tenta levá-lo para o perigo de abandonar a sua essência de homem livre.”199

A vigência da técnica “dura” e nessa duração algo se concede. Nessa concessão da vigência da técnica alberga-se a possibilidade de “salvação” da essência do homem. Este encontra-se já ameaçado em sua essência, porém, no viger da técnica o conceder atua como o que resiste à completa desessencialização do homem, aquela última amarra que o prende à beira do abismo. Essa concessão da técnica ao próprio homem conserva-o em seu caráter humano e o mantém a salvo, isto é, intocado em sua essência.

O que resiste ao mal da técnica é o bem, o amor, diria Schelling. O que resiste ao processo de perda da essência humana em face da técnica é a própria afirmação desta essência pela contrariedade ao mal inerente à própria técnica. A essência humana é o bem que se opõe ao mal da técnica, ainda que, originariamente esta essência se afirme como poder tanto para o mal quanto para o bem.

O homem é aquele que é sempre necessário. A transformação do homem em fundo de subsistência jamais ocorrerá de forma completa e irreversível. Isso porque a com- posição envolve o homem naquele requerer da subsistência que, nesse desencobrir, recebe uma concessão para que continue a ser. Nisso reside a possibilidade de salvação: o homem continua, e continua a despeito da imensa ameaça à sua essência, continua apesar de se deparar com “o perigo”, o maior deles que a técnica lhe reserva. Dessa maneira, diz Heidegger que:

199 Heidegger, Martin. Ensaios e Conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Editora Vozes.

De um lado, a com-posição impelem a fúria do dis-por (requerer) que destrói toda a visão do que o desencobrimento faz acontecer de próprio e, assim, em princípio, põe em perigo qualquer relacionamento com a essência da verdade. De outro lado, a com-posição se dá, por sua vez, em sua propriedade na concessão que deixa o homem continuar a ser _ até agora sem experiência nenhuma, mas talvez no porvir com mais experiência _ o encarecido pela verificação da essência da verdade. Nestas condições é que surge e aparece a aurora do que salva.200

O desafio proposto por Schelling de compatibilizar liberdade humana com o sistema filosófico da natureza traduz-se numa contradição moral fundamental que opõe o mal original ao espírito do amor. O mal é a negação do bem, no sentido da ausência deste, porém, não é apenas isto. Rosenfield, ao comentar o caráter positivo do mal na concepção de Schelling explica que,

“... o mal não é simples privação do bem, simples negação da harmonia, mas desarmonia positiva. É desarmonia na medida em que a harmonia das regras é negada, tratando-se de um desregramento não-acidental ou eventual, mas de um desregramento que se quer positivo como tal.”201 O mal considerado de forma positiva, como algo que não apenas se mostra como privação do bem, senão como vontade de negar e substituir as regras dadas, este mal vive no caráter sistemático da técnica (a com-posição), que une homem e desafio ao seu meio (o requerer). Ao desregrar o que está ordenado no sentido do bem, propondo um regramento novo que contraria o antigo, a técnica assume um caráter positivamente malévolo, que representa um perigo extremo para a essência humana. No entanto, essa positividade do mal pensada por Schelling e que se coaduna com a idéia de perigo de perda da essência humana apontada como consequência da técnica moderna por Heidegger, apresenta-se como a condição sine qua non para a afirmação da liberdade humana.

Dito de outra forma, o homem dispõe da sua liberdade, que implica o mal e a perda da própria essência, como forma de definir-se a si mesmo em face da natureza e mesmo em face do seu semelhante. Para isso, utiliza-se da técnica, submete o mundo e a paisagem a um modo de desencobrir a realidade que distorce essa mesma realidade e por último, sente- se forçado a chegar ao limite: o próprio homem como reserva de subsistência. É quando o homem passa a andar à beira do abismo que lhe subtrai a essência.

200 Heidegger, Martin. Ensaios e Conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Editora Vozes.

Petrópolis. 2002. P. 35.

201 Rosenfield, Denis L. Do Mal: Para Introduzir em Filosofia o Conceito de Mal. L&PM Editora. Porto

O homem para Schelling é, portanto, duplamente determinado: pela natureza e pela liberdade. Pela natureza como espírito que gradualmente desperta da inconsciência para o estado de consciência. Pela liberdade, quando, negando momentaneamente o caráter absoluto e incondicionado do espírito, ele se reconhece como ente individualizado. A finitude do indivíduo contrasta com o caráter absoluto do espírito. E a liberdade absoluta, transformada em liberdade para o bem e para o mal no homem, acaba por negar aquilo que para a liberdade humana está posto como negação de si mesmo, a saber, a natureza. Dessa forma, o homem se diferencia da natureza. Schmied-Kowarzik aborda esse problema que chama de “possibilidade de alienação humana da natureza”:

Mit dem Bewusstsein hat die Natur im Naturwesen Mensch _ gemeint ist niemals nur der Einzelmensch, sondern die gesamte gesellschaftliche Praxis der Menschen in der Geschichte _ eine Gestalt hervorgebracht, die selbständig geworden ist, selbständig sowohl in der Bestimmung ihrer selbst als auch gegenüber der sie umgebenden Welt. Gerade weil das bewusste Dasein der Menschen eine Gestalt der Natur ist, die alles, was für sie ist, mit Bewusstsein aus sich selbst produzieren muss, die als Naturwesen nur überleben kann, wenn es gesellschaftlich-geschichtlich ein Wissen von der Welt aufbaut, das sie gleichzeitig befähigt, in die Welt einzugreifen, gerade weil diese Naturgestalt in der eigenen bewussten Produktion mithin Freiheit impliziert, kann dieses durch die Natur hervorgebrachte Naturwesen sich doch auch gegen die Natur stellen.202

O homem é parte da natureza, não apenas em função de sua animalidade e corporeidade, senão porque, em si mesmo retém uma parte do espírito inconsciente. O homem não sabe tudo de si como não sabe da natureza em si, mas constrói um saber que pode conduzi-lo a esse desencobrimento da verdade natural que nele repousa inconsciente. Por isso ele lança mão da técnica: para desencobrir a verdade das essências que jazem sob o manto inconsciente da natureza, aí inclusa a sua própria essência. Por isso ele quase a perde para o modo desencobridor da com-posição, atuando momentaneamente contra a própria natureza, mas acaba por retê-la, graças à concessão de que nos fala Heidegger. A última amarra que a com-posição concede ao homem em face da perda de sua essência é

202 Schmied-Kowarzik, Wolfdietrich. Die existentiell-praktische Einheit von Mensch um Natur. In Natur und

Subjektivität. Zur Auseinanersetzung mit Naturphilosophie des jungen Schelling. Frommann-Holzboog. Stuttgart-Bad Cannstatt. 1985. P. 386. Tradução: Com a consciência a natureza produziu no ente natural humano _ e aqui é considerado não o homem individual senão a Praxis social conjunta de homens dos homens na história _ uma forma que se tornou independente, independente até mesmo na determinação de si mesma como também oposta ao seu mundo circundante. Exatamente porque o Dasein humano é uma forma da natureza, a qual tudo que é para ela deve ser produzido a partir de si mesma, com a consciência, a qual somente pode sobreviver como ente natural se construir para si um saber socio-histórico a partir do mundo, saber este que a habilita, ao mesmo tempo, a intervir no mundo, exatamente porque essa forma natural, na sua própria produção consciente, compreende a liberdade, pode este saber por-se em oposição contra a natureza, por meio dos entes naturais produzidos. (Tradução do Autor).

eficaz exatamente porque o homem é também um ente natural e não pode jamais renunciar totalmente a essa condição fundamental.

No perigo e no mal que necessariamente acompanham a técnica moderna encontramo-nos numa indisposição ética fundamental. A técnica moderna lança o homem contra si mesmo e põe em risco a sua essência pela possibilidade extrema de que o homem “pro-duza tecnicamente a si mesmo”.203Este perigo de “vaporização da sua essência

enquanto subjetividade” que Heidegger aponta como uma possibilidade futura realizável a um preço alto demais, seria, contudo, muito menos que a perda completa dessa essência conforme ele próprio destacou no seu ensaio sobre a questão da técnica, onde ele afirma que o homem é sempre necessário e que por uma concessão final, a com-posição, a saber, a essência da técnica, resguarda a possibilidade de permanência do homem como homem.

A crer nesta necessidade e essencialidade do homem afirmadas ppor Heidegger, poderíamos propor que as possibilidades da técnica fossem sempre liberadas para se realizar até este ponto da continuidade humana a fim de que em algum momento, técnica moderna e homem estejam num acordo fundamental, sob uma regência não conflituosa e capaz de garantir o direito como modo de ser do ser-aí fundamentado na mais autêntica forma de existência possível.

Não é possível regular a técnica por antecipação, pois a técnica é um saber e não se pode impor limites ao saber em função da simples possibilidade do mal acompanhar a sua construção a partir do mundo e a sua projeção sobre ele. Não havendo, portanto, como controlar sequer o acúmulo de informações que os processos técnicos provocam, tampouco se poderá controlar a sua realização caso tal saber seja, como é, compartilhado por um número crescente de agentes.

Expor o direito e a consciência ética de um povo à pre-realização das possibilidades técnicas as mais extremas e as mais perigosas: esta é a forma mais consistente de produzir uma juridicidade permanente que acompanhe o comportamento dos homens encarregados ou atingidos pelos efeitos da técnica.

203

Heidegger, Martin A Essência e o Conceito da Physis em Aristóteles. In Marcas do Caminho.Editora Vozes. Petrópolis, 2008.pág. 269.

Lembremos, a titulo de ilustração, o manejo da energia atômica pelos principais países industriais no período pós-Segunda Guerra Mundial. A corrida armamentista entre as duas maiores potências vencedoras do conflito envolveu a criação e aperfeiçoamento constantes de arsenais atômicos. Essa competição estendeu-se até o limite da possibilidade de descontinuidade da paz imposta em cada um dos dois grandes blocos políticos. Somente a certeza da destruição mútua e do episódio dos mísseis de Cuba, considerado uma quase guerra, pôde levar à detente, que levou as partes envolvidas a viver o período pacífico mais longo de suas respectivas histórias. Esse ganho não teria ele se originado da exposição ao perigo e ao mal da técnica nuclear elevados à máxima possibilidade numa pré-realização que, à maneira de uma vacina, usa o veneno para fortalecer e obstar a enfermidade maior?

Isso significa que o mal da técnica há de ser encarado em algum momento e instrumentalizado para os fins benéficos, e não evitado a todo custo. É necessário viver o inevitável: a técnica e o seu mal são aquele inevitável ao qual o direito e a ética devem ceder o passo a fim de que a sua quase realização aponte para as verdadeiras normas a serem adotadas. Favorecer essa imensidão de normas voltadas para a implementação de uma política de “precaução” ou de responsabilidade é atitude fadada ao fracasso. O saber técnico necessita ser posto à prova a fim de que o homem possa frequentar a beira do abismo com menos dúvidas a respeito do quão profundo ele é.