• Nenhum resultado encontrado

3 A FILIAÇÃO NO CONTEXTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

3.1 CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A própria expressão “direito fundamental” traduz a perfeita compreensão de que eles são tidos como básicos, imprescindíveis, essenciais ao ser humano tutelado por determinada ordem jurídica constitucional. O agigantamento de sua importância passou a ser reconhecido no mundo contemporâneo de forma singular. No âmbito das democracias mais avançadas do ocidente, o compromisso com sua preservação se tornou indissociável da própria concepção de Estado Democrático.

A consagração dos direitos fundamentais, entretanto, é resultado de longa trajetória de luta contra o poder abusivo e a opressão dos povos, marcada pela constante superação de incontáveis obstáculos, conforme exaltava Norberto Bobbio101.

E, mesmo sendo fruto da conquista árdua e de um processo histórico que alcançou tamanho grau de compreensão universal, a ponto de ensejar mais preocupação com sua efetividade do que com sua enunciação, não se pode olvidar que eles permanecem evoluindo, de modo que novos direitos fundamentais surgem, ainda quando não se mostram expressos em rol normativo, dada a ausência manifesta de qualquer taxatividade102. São, portanto, inexauríveis, uma vez que não há rol taxativo de direitos fundamentais expostos em lei, podendo surgir, a qualquer momento, um novo direito fundamental.

A universalidade é outra característica dos direitos fundamentais, devendo ser entendida, como adverte Paulo Branco, em termos, isso porque, se é certo que qualquer pessoa, pelo simples fato de ser humana, já titulariza um catálogo de direitos fundamentais, é igualmente correto ressaltar que alguns deles são restritos a certas categorias de titulares específicos, como os trabalhadores, por exemplo103. Também é importante destacar que nem

101 “Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que

os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. [...] Não é difícil prever que, no futuro, poderão emergir novas pretensões que no momento nem sequer podemos imaginar, como o direito a não portar armas contra a própria vontade, ou o direito de respeitar a vida também dos animais e não só dos homens. O que prova que não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas.” (BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 5 e 18).

102

Dispõe o art. 5º, § 2º, da Constituição Federal: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

103 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 9. ed. São

todos os Estados reconhecem como fundamentais os mesmos direitos, havendo, neste particular, uma pretensão de universalidade que depende de aspectos relacionados ao espaço e ao tempo104.

José Afonso da Silva identifica a inalienabilidade, a imprescritibilidade e a irrenunciabilidade como caracteres dos direitos fundamentais. Eles seriam inegociáveis por lhes faltar o conteúdo econômico-patrimonial, apresentando-se como indisponíveis. Também nunca deixam de ser exigíveis pelo decurso do tempo, pois a prescrição é instituto jurídico limitada aos direitos de caráter patrimonial. Assim também é vedada a renúncia ao direito fundamental, embora ele possa não ser exercido pelo titular105. Mas basta pensar no direito fundamental de propriedade106 que os ensinamentos do autor passam a reclamar uma vírgula, a fim de que não se tenha uma concepção pretensamente absoluta dessas características, pois há de se reconhecer que, apesar de comum a uma grande parcela dos direitos considerados fundamentais, nem todos as possuem.

Virgílio Afonso da Silva aponta ser possível encontrar inúmeros casos em que a irrenunciabilidade, a inalienabilidade e a imprescritibilidade dos direitos fundamentais são colocadas em xeque, citando como exemplos: (a) quem aceita não recorrer à instância superior diante de uma sentença desfavorável em razão de uma proposta em dinheiro da parte adversa, pois está negociando seu direito fundamental ao duplo grau de jurisdição; (b) quem exibe sua cédula na cabine de votação renuncia ao sigilo do voto; (c) ao se tornar padre ou freira, o homem ou a mulher renunciam ao direito de constituir família; (d) quem assume o cargo de juiz renuncia à liberdade de exercitar outro trabalho, salvo o magistério; (e) quem celebra um contrato renuncia a uma parcela de sua liberdade107.

Acrescente-se ao repertório caracterizador dos direitos fundamentais a sua aplicabilidade imediata, expressamente prevista na Constituição da República108. Paulo

104 “A expressão direitos humanos, ou direitos do homem, é reservada para aquelas reivindicações de perene

respeito a certas posições essenciais ao homem. São direitos postulados em bases jusnaturalistas, contam índole filosófica e não possuem como característica básica a positivação numa ordem jurídica particular. [...] Já a locução direitos fundamentais é reservada aos direitos relacionados com posições básicas das pessoas, inscritos em diplomas normativos de cada Estado. São direitos que vigem numa ordem jurídica concreta, sendo, por isso, garantidos e limitados no espaço e no tempo, pois são assegurados na medida em que cada Estado os consagra.” (BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito

constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 147).

105

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 183.

106 Constituição Federal, art. 5º: “XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a

sua função social”.

107 SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do Direito: os direitos fundamentais nas relações entre

particulares. São Paulo: 2014, p. 62-63.

108 Constituição Federal, art. 5º, § 1º: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm

Gonet, após historiar sobre os efeitos corrosivos da neutralização de direitos fundamentais em episódios do passado, quando prevalecia a noção de que eles não se aplicavam imediatamente, por necessitarem de intervenção legislativa, realça que a Lei Fundamental alemã, além de outras constituições como as da Espanha e Portugal, reagiram aos períodos históricos de menoscabo dos direitos fundamentais positivando expressamente o princípio da aplicabilidade imediata, a exemplo do que fez a Constituição pátria, dotando-os de força normativa a partir da própria Lei Maior, podendo e devendo ser aplicados pelo Poder Judiciário independentemente de intervenção legislativa infraconstitucional, posto que são “normas diretamente reguladoras de relações jurídicas”, de maneira que os juízes podem aplicá-las à despeito da omissão do Legislador e, “mais do que isso, podem dar aplicação aos direitos fundamentais mesmo contra a lei, se ela não se conformar ao sentido constitucional daqueles”109

.

Por uma questão de justiça, vale registrar que o autor não assume uma postura absolutista quanto à questão, destacando em sua obra exceções à aplicabilidade imediata110, sendo que a opção trazida por Ingo Wolfgang Sarlet, situando-se entre os extremos, apresenta- se como consentânea com os posicionamentos adotados neste trabalho, na medida em que o doutrinador enxerga na norma em comento um inequívoco cunho principiológico111, como uma espécie de mandamento de otimização que determina ao Estado conferir a máxima eficácia possível aos direitos fundamentais, similarmente ao magistério de Flávia Piovesan e Gomes Canotilho112.

Há outras características, mencionadas de acordo com a concepção adotada por cada estudioso. Para a perquirição ora empreendida, a vinculação dos poderes públicos aos direitos fundamentais deve ser enfatizada. Na lição de Gilmar Mendes, os direitos fundamentais foram originariamente concebidos como direitos subjetivos públicos do cidadão em face do Estado, obrigando o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, para especificar, adiante, que a vinculação do legislador na limitação de um direito fundamental necessita respeitar a proteção do núcleo essencial e a proporcionalidade, estando também compelido a concretizar normas indispensáveis para aqueles direitos dotados de âmbito de proteção estritamente normativo113.

Ingo Sarlet, referindo-se à vinculação dos órgãos administrativos (Poder Executivo)

109

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 153-154.

110 Ibidem, p. 154. 111

Sobre a noção de princípio, vide item 3.2.1.

112 SARLET, Info Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2005, p. 270.

113 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito

aos direitos fundamentais, adverte que não existe consenso quanto a todos os aspectos, mas esclarece que tal vinculação alcança tanto as pessoas jurídicas de direito público quanto de direito privado com atribuições de natureza pública, na medida em que atuam no interesse público, como guardião e gestor da coletividade. Desse modo, o autor compreende que a vinculação dos órgãos administrativos significa que cabe a eles a execução e aplicação das leis interpretando-as em conformidade com os direitos fundamentais, podendo ocorrer a invalidação judicial de atos administrativos contrários a tais direitos114.

Por fim, a vinculação do Poder Judiciário aos direitos fundamentais é tratada por Paulo Gonet como da essência de sua função, controlando os atos dos demais Poderes e devendo, conforme entendimento doutrinário, conferir máxima eficácia possível àqueles direitos, impondo aos juízes o dever de respeitá-los no curso do processo e conteúdo das decisões, existindo ainda, sob o ângulo negativo, “o poder-dever de recusar aplicação a preceitos que não respeitem os direitos fundamentais”115.

Em suma, relacionam-se como relevantes à pesquisa ora empreendida as seguintes características dos direitos fundamentais: são essenciais, históricos, inexauríveis, imediatamente aplicáveis e sempre vinculam o Poder Público, valendo observar que alguns deles ainda apresentam uma tendência à universalização características específicas, como a irrenunciabilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade.