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LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA ATUAÇÃO EM DEFESA

4 HIPÓTESES DE INCIDÊNCIA DO DIREITO À FILIAÇÃO NA ORDEM

5.4 LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA ATUAÇÃO EM DEFESA

DO DIREITO INDIVIDUAL INDISPONÍVEL AO ESTADO DE FILIAÇÃO

O agir ministerial em prol da preservação de direito individual indisponível, como ficou registrado no item 5.3 supra, encontra forte resistência, tanto no âmbito meramente institucional, como também em obras doutrinárias e até mesmo na jurisprudência.

Todavia, não se pode olvidar a existência de contraponto relevante, exibindo intensa argumentação científica apta a revelar a necessidade de superação das visões restritivas. Para

337 MARINONI, Luiz Gulherme; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil: comentado artigo por artigo.

4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 154.

338 Art. 1.584, § 5º, do Código Civil. 339

Robson Renault Godinho e Fredie Didier Jr, a legitimidade do Parquet para demandar na condição de substituto processual em defesa de direito individual indisponível sequer necessita de previsão infraconstitucional, pois decorre de dispositivo constitucional evidente:

É certo que a substituição processual necessariamente deve ser precedida de autorização normativa, mas no caso do Ministério Público existe uma previsão constitucional genérica de substituição processual para a tutela de direitos individuais indisponíveis (art. 127 da Constituição). Em nosso atual sistema jurídico, toda a legitimidade do Ministério Público decorre diretamente da Constituição, inclusive a substituição processual, de modo que nos parece um desvio de perspectiva negar a possibilidade de o Ministério Público ajuizar uma ação para a garantia de um direito indisponível sob o argumento de inexistir lei ordinária autorizativa.340

Embora reconheçam os autores que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema tenha se apresentado de forma restritiva, prosseguem na exposição de seu pensamento, adjetivando de equivocada e lamentável o posicionamento esposado nos julgados que negam a possibilidade do Ministério Público atuar como substituto processual:

A legitimidade do Ministério Público não está condicionada a nenhum fator externo que não seja a indisponibilidade do direito. O fato de o menor estar sob o poder familiar se mostra irrelevante no particular, especialmente porque, se os pais são omissos, é necessária a atuação de um terceiro – no caso, o Ministério Público – para que o direito seja adequadamente tutelado. Não é por outro motivo que o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 98, II, considera que a situação de risco ensejadora de medidas protetivas pode ser caracterizada pela omissão dos pais.

Não deixa de ser curioso observar que o Superior Tribunal de Justiça admite que o Ministério Público ajuíze ação de investigação de paternidade cumulada com ação de alimentos em favor de menor, estendendo a legitimidade à fase executiva, sem, contudo, mencionar a questão do poder familiar, que obviamente se faz presente, demonstrando uma incongruência jurisprudencial.

A partir do momento em que a Constituição confere legitimidade ao Ministério Público para a defesa de direitos individuais indisponíveis, é evidente que se trata de hipótese de substituição processual decorrente de norma constitucional de eficácia plena e aplicabilidade imediata.341

Se a Constituição impõe ao Ministério Público a defesa dos chamados direitos individuais indisponíveis, sendo o direito à filiação de natureza individual indisponível por excelência, quando titularizado por criança ou adolescente, não há sequer como cogitar em afastar ou impedir a legitimidade ministerial para propor a respectiva ação.

O legislador ordinário, através da Lei n. 8.560/92, fixou as diretrizes do procedimento administrativo de averiguação oficiosa que, quando não culmina com o

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DIDIER JÚNIOR, Fredie; GODINHO, Robson Renault. Questões Atuais sobre as Posições do Ministério Público no Processo Civil. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro. v. 1. n. 55, jan./mar. 2015. Rio de Janeiro: Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, 2015, p. 144. Disponível em: <http://publicacao.mprj.mp.br/rmprj/rmprj_55/#146>. Acesso em: 26 maio 2016.

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reconhecimento paterno, e desde que haja elementos suficientes, acarreta a remessa dos autos para o Ministério Público promover a ação mencionada342.

Cuida-se, portanto, de disposição legal expressa que confere ao Parquet mais uma incumbência, como não poderia deixar de ser. O Supremo Tribunal Federal, aliás, entendeu que a referida legislação, condicionando o exercício do direito de ação ministerial à provocação do interessado e diante de evidências positivas, disciplina legitimação decorrente da proteção constitucional à família e à criança, bem como da indisponibilidade legalmente atribuída ao reconhecimento do estado de filiação, senão vejamos:

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO

PARA AJUIZAR AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. FILIAÇÃO. DIREITO INDISPONÍVEL. INEXISTÊNCIA DE DEFENSORIA

PÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO. 1. A Constituição Federal adota a família como base da sociedade a ela conferindo proteção do Estado. Assegurar à criança o direito à dignidade, ao respeito e à convivência familiar pressupõe reconhecer seu legítimo direito de saber a verdade sobre sua paternidade, decorrência lógica do direito à filiação (CF, artigos 226, §§ 3o, 4o, 5o e 7o; 227, § 6o). 2. A Carta Federal outorgou ao Ministério Público a incumbência de promover a defesa dos interesses individuais indisponíveis, podendo, para tanto, exercer outras atribuições prescritas em lei, desde que compatível com sua finalidade institucional (CF, artigos 127 e 129). 3. O direito ao nome insere-se no conceito de dignidade da pessoa humana e traduz a sua identidade, a origem de sua ancestralidade, o reconhecimento da família, razão pela qual o estado de filiação é direito indisponível, em função do bem comum maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria (Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 27). 4. A Lei 8560/92 expressamente assegurou ao

Parquet, desde que provocado pelo interessado e diante de evidências positivas, a

possibilidade de intentar a ação de investigação de paternidade, legitimação essa

decorrente da proteção constitucional conferida à família e à criança, bem como da indisponibilidade legalmente atribuída ao reconhecimento do estado de filiação. Dele decorrem direitos da personalidade e de caráter patrimonial que

determinam e justificam a necessária atuação do Ministério Público para assegurar a sua efetividade, sempre em defesa da criança, na hipótese de não reconhecimento voluntário da paternidade ou recusa do suposto pai. 5. O direito à intimidade não pode consagrar a irresponsabilidade paterna, de forma a inviabilizar a imposição ao pai biológico dos deveres resultantes de uma conduta volitiva e passível de gerar vínculos familiares. Essa garantia encontra limite no direito da criança e do Estado em ver reconhecida, se for o caso, a paternidade. 6. O princípio da necessária intervenção do advogado não é absoluto (CF, artigo 133), dado que a Carta Federal faculta a possibilidade excepcional da lei outorgar o jus postulandi a outras pessoas. Ademais, a substituição processual extraordinária do Ministério Público é legítima (CF, artigo 129; CPC, artigo 81; Lei 8560/92, artigo 2º, § 4º) e socialmente relevante na defesa dos economicamente pobres, especialmente pela precariedade da assistência jurídica prestada pelas defensorias públicas. 7. Caráter personalíssimo do direito assegurado pela iniciativa da mãe em procurar o Ministério Público visando a propositura da ação. Legitimação excepcional que depende de provocação por quem de direito, como ocorreu no caso concreto. Recurso extraordinário conhecido e provido.343 (grifo nosso)

342 Art. 2º, § 4º, da Lei n. 8.560/92.

343 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 248.869/SP. 2ª Turma, Rel. Min. Maurício

Corrêa. Brasília, 07 ago. 2003. DJ de 12 mar. 2004. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/ paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=257829>. Acesso em: 21 fev. 2016.

Em seu voto, o relator destacou que a indisponibilidade de certos direitos não decorre da natureza da relação jurídica subjacente, seja privada ou pública, mas sim da importância social de tais relações, que constitui interesse público relacionado à preservação do bem comum e estabilidade das relações sociais, de maneira que ao Estado se reconhece não apenas o direito, mas o dever de tutelá-los.344 Contudo, acabou estabelecendo como essencial a iniciativa da genitora para provocar o órgão ministerial, recusando ao último a legitimação ampla e absoluta, impedindo-o de agir ex officio e promover uma verdadeira devassa social em busca dos pais de filhos havidos fora do casamento e não reconhecidos voluntariamente, assegurando-lhe apenas a legitimidade em situação específica, prevista e autorizada pela legislação ordinária. Destacou, por fim, a ausência de Defensoria Pública no local da ação, embora tenha julgado desnecessária essa condição para o caso concreto.

Nos debates, somente o Ministro Cezar Peluso se pronunciou pela legitimação extraordinária do Ministério Público com força o suficiente para suprir as omissões das mães, como representantes legais, pois o Ministro Sepúlveda Pertence enxergou um virtual conflito de atribuições entre Parquet e Defensoria Pública, evocando, desse modo, a tese do processo de inconstitucionalização anteriormente preconizado pela Suprema Corte na questão da legitimidade para a ação civil ex delicto, ou seja, julgados que levaram em conta a ausência de Defensoria Pública para o caso concreto, resultando numa legitimidade preservada em razão dessa carência, mas susceptível ao gradativo processo de inconstitucionalização até sua transferência à Defensoria Pública, na medida em que a estruturação real do órgão fosse sendo efetivada345.

De forma contundente, o Ministro Nelson Jobim nem reconheceu a existência de substituição processual, nem a legitimidade ministerial independente da manifestação da mãe, por representar, no seu entender, “uma enorme intervenção em algo que seria do Estado na intimidade das pessoas. Isto representaria um Estado totalitário de absoluta disponibilidade dos assuntos em relação ao próprio Ministério Público”346

, somente admitindo a propositura no caso julgado porque houve provocação materna.

344

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 248.869/SP. 2ª Turma, Rel. Min. Maurício Corrêa. Brasília, 07 ago. 2003. DJ de 12 mar. 2004. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/ paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=257829>. Acesso em: 21 fev. 2016.

345 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 147.776. 1ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda

Pertence, Brasília, 19 maio 1998. DJ de 19 jun. 1998. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/ paginadorpub/paginador.jsp?docTP= AC&docID=210449>. Acesso em: 27 set. 2015.

346 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 248.869/SP. 2ª Turma, Rel. Min. Maurício

Corrêa. Brasília, 07 ago. 2003. DJ de 12 mar. 2004. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/ paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=257829>. Acesso em: 21 fev. 2016.

Por sua vez, o Ministro Marco Aurélio, que restou vencido, não enxergou como reconhecer ao Ministério Público, com ou sem autorização da genitora, a legitimidade para propor ação investigatória de paternidade, a ser ajuizada pelo próprio titular do direito substancial personalíssimo, colocando “pelo menos no mesmo patamar, o interesse do menor e o da família, porque, como disse, a investigação de paternidade, principalmente se o suspeito de ser pai for casado, é impactante e acarreta o abalo da própria família”347

.

O Ministro Cezar Peluso reiterou seu posicionamento no sentido de que a questão do direito à intimidade não estaria em jogo no caso, nem haveria intromissão do Estado, mas justa tutela de incapaz, na medida em que tal legitimidade assegura ao infante o direito de não ver postergado, por omissão da mãe, o reconhecimento de sua filiação. Indaga por que se teria de aguardar “que a mãe, lá pelas tantas, resolva tomar a iniciativa, ou, então, que o menor atinja a maioridade? [...] o menor sofreria grande lesão, daí ter sido sábia a atuação do legislador ao atribuir legitimação extraordinária ao Ministério Público”348

.

Sem dúvida, o posicionamento restritivo da Suprema Corte analisado no leading case referido merece ser superado. Não se trata de questão de concorrência com a Defensoria Pública – que, por sinal, obviamente tem legitimidade ad causam em se tratando de investigatória relativa a determinada pessoa economicamente vulnerável – ou qualquer outra instituição, mas de legitimação extraordinária própria, expressamente prevista em lei e absolutamente compatível com a finalidade constitucional de defender os interesses individuais indisponíveis, em especial os da infância e adolescência.

As objeções registradas no aresto, à época em que fora examinado, além de vinculadas ao caso concreto, pecaram pela superlativa preocupação com aspectos advindos da legislação infraconstitucional, quando, em verdade, o direito material subjacente – a filiação – , alçado ao seu justo status de direito fundamental, reclama menos amarras impostas pela interpretação para o exercício da legitimidade do Parquet, na medida em que não há violação ao princípio da intervenção estatal mínima quando se justifica a ação do órgão público no sentido de proteger e preservar preceito constitucional que consubstancia dever de toda a sociedade e do Estado, mormente quando cercado pelas cautelas do resguardo do sigilo processual e circunspecção ao devido processo legal.

Outra leitura que se faz do acórdão é que os Julgadores hesitaram em reconhecer a legitimação extraordinária do Ministério Público de acordo com a concepção largamente

347 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 248.869/SP. 2ª Turma, Rel. Min. Maurício

Corrêa. Brasília, 07 ago. 2003. DJ de 12 mar. 2004. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/ paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=257829>. Acesso em: 21 fev. 2016.

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aceita pela doutrina. Humberto Theodoro Júnior ressalta que o órgão, mesmo quando atua no processo civil tutelando interesses particulares de outras pessoas, a sua função processual nunca é a de um representante da parte material, pois sua posição jurídica é a de substituto processual, em razão da natureza e fins da instituição, agindo em nome próprio, embora defendendo interesse alheio349.

Também não encontra qualquer respaldo a alegação de intromissão indevida no direito à intimidade materna, na medida em que não se presume a obrigatoriedade da genitora abrir mão de sua vida privada para apontar a pessoa do pai, se assim não for sua vontade. Deve-se assegurar ao Ministério Público, porém, a possibilidade de ajuizar a demanda sempre que houver suporte probatório suficiente para acionar judicialmente acerca da paternidade, provas estas que podem ter origem diversa da colaboração materna, embora seja uma realidade suposta e excepcional, que dificilmente se apresentará viável no cotidiano jurídico. Os percalços com os quais se depara o representante ministerial para exercer o seu mister, porém, não constituem motivação bastante para condicionar o direito de ação e, até mesmo, como se verá oportunamente (Capítulo 6), de sua atuação extrajudicial.

349 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 44. ed., v. 1. Rio de Janeiro: Forense,

6 ATUAÇÃO MINISTERIAL EM DEFESA DA CONCRETIZAÇÃO DO