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2 DIREITO À FILIAÇÃO

2.4 O DIREITO À FILIAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA

2.4.1 Filiação no sistema anterior

A legislação civil codificada em 1916 categorizava a prole de acordo com sua origem. Clóvis Beviláqua, citado por Julie Cristine Delinski, explicava que legítimos eram os filhos concebidos na constância do casamento, enquanto os provenientes de outras uniões recebiam o nome de ilegítimos, vez que o direito não lhes prestava o reconhecimento. Se, por ocasião do parto, o pai ou a mãe se achava vinculado com outrem por matrimônio, ao filho ilegítimo se acrescentava a pecha de adulterino; caso houvesse, entre os pais, parentesco próximo, os filhos eram considerados incestuosos. Tanto o adulterino quanto o incestuoso formavam a espécie dos filhos bastardos ou, antes, espúrios. Naturais eram os filhos ilegítimos que, no entanto, tinham pais com condições de realizarem matrimônio entre si ao tempo da concepção ou do parto75.

Prosseguindo, a autora acrescenta a situação de marginalidade vivenciada pelo filho adulterino a patre, pois era impedido de ser reconhecido pelo pai e excluído da linha familiar paterna, diante da opção legislativa de privilegiar o lar formado pelo casamento do pai, em verdadeira prevalência dos interesses da instituição matrimônio sobre os das pessoas que compunham essa instituição, tanto que a filiação adulterina a matre era albergada pela presunção pater is est, restando ao marido escassas possibilidades de impugnar a paternidade, deixando clara a opção de defesa da família matrimonializada pelo sistema codificado, chegando ao ponto de deixar uma criança sem pai declarado76. Não é outra, aliás, a concepção de Fachin: “Dando abrigo a uma família despoticamente patriarcal, a seu tempo, o Código

refletiu a imagem da família patriarcal entronizada num país essencialmente agrícola.”77

Apontam-se algumas modificações relevantes ao longo do século XX, abrandando rigor inicialmente concebido pelo Código Civil, como a equiparação entre os filhos naturais e os legítimos, além da facilitação do seu reconhecimento, por disposição expressa da Constituição outorgada de 193778.

Outra mudança digna de nota ocorreu com o Decreto-Lei n. 4.737/42, conhecida popularmente como Lei Chateaubriand, que permitia o reconhecimento de filho adulterino após a então vigente figura do desquite. Entendia-se que o referido diploma legal somente aproveitava o filho adulterino a patre, já que o filho adulterino a matre se submetia ao regramento da presunção pater is est79.

75

DELINSKI, Julie Cristine. O novo direito da filiação. São Paulo: Dialética, 1997, p. 17

76 Ibidem. p. 17-18.

77 FACHIN, Luiz Edson. Estabelecimento da filiação e paternidade presumida. Porto Alegre: Sergio

Antonio Fabris, 1992, p. 56.

78 “Art 126 - Aos filhos naturais, facilitando-lhes o reconhecimento, a lei assegurará igualdade com os

legítimos, extensivos àqueles os direitos e deveres que em relação a estes incumbem aos pais.”

79 BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação de paternidade: posse do estado de filho: paternidade

Inovação ainda maior ocorrida naquele período surgiu com o advento da Lei n. 883/49, que permitia a qualquer dos cônjuges o reconhecimento do filho havido fora do matrimônio, após dissolvida a sociedade conjugal, assim também como garantia ao filho reconhecido com base na própria lei, para efeitos econômicos, o direito, a título de amparo social, à metade da herança do filho legítimo ou legitimado. De todas as alterações iniciais por ela promovidas, a prestação de alimentos ao filho ilegítimo, com exigência de tramitação da ação em segredo de justiça, mostrou-se como a mais ousada para a época.

A Lei n. 883/49 foi alterada por duas outras leis posteriores. Primeiramente, a Lei n. 6.515/77, conhecida como Lei do Divórcio, admitiu o reconhecimento de filho fora do matrimônio, mesmo na sua vigência, desde que efetivado em testamento cerrado, e também passou a prever o direito à herança em igualdade de condições independentemente da natureza da filiação. Já a Lei n. 7.250/84 incluiu a hipótese de, mediante sentença transitada em julgado, o filho havido fora do matrimônio ser reconhecido pelo cônjuge separado de fato há mais de 5 (cinco) anos contínuos, embora vigente a sociedade conjugal.

Também houve uma complexa trajetória na evolução da filiação adotiva. De início, o art. 368 do Código Civil de 1916 só permitia a adoção pelos maiores de 50 (cinquenta) anos sem prole legítima ou legitimada, o que foi alterado pela Lei n. 3.133/57 para permitir a adoção pelos maiores de 30 (trinta) anos, sem qualquer restrição no tocante à prole anterior, porém limitando o instituto para os casados, que só poderiam dele adotar após decorridos 5 (cinco) anos de matrimônio, quando o adotante tivesse filhos legítimos, legitimados ou reconhecidos, o adotado não tinha direito à sucessão hereditária. A Lei n. 4.655/65, também considerada como marco na evolução da adoção no Brasil, introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a legitimação adotiva do infante exposto e do menor abandonado, que seria irrevogável, garantindo ao legitimado adotivo os mesmos direitos e deveres do filho legítimo, salvo no caso de sucessão, se concorresse com filho legítimo superveniente à adoção. A Lei n. 6.697/79 instituiu o Código de Menores e criou a adoção plena em substituição à legitimação adotiva, continuando a legislação codificada a regular a adoção simples. Os diversos regramentos sobre a adoção sempre enfatizavam os tratamentos jurídicos diferenciados em relação à prole, dependendo de sua qualificação legal.

Para se chegar ao projeto emancipatório dos membros que integram a família e protetivo da infância e juventude consagrado na Constituição de 1988, nota-se que o caminho percorrido foi longo e tormentoso, já que a cada novo estágio evolutivo, inaugurado por instrumentos legislativos em si mesmos dotados de alto grau de complexidade e restrições, ocorriam debates em nível doutrinário e jurisprudencial para discutir o alcance e a interpretação adequada. Foi realmente a Constituição vigente que incrementou de forma substancialmente democrática a disciplina da filiação em nossa nação.