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Características da Procura em Saúde

PARTE I: REVISÃO DA LITERATURA

Capítulo 3- Saúde e Cuidados de Saúde: Especificidades do Sector

3.2 Características da Procura em Saúde

Em qualquer mercado coabitam o lado da oferta e o lado do consumo e o mercado é, simplesmente, um mecanismo de ajuste entre ambos os lados, que permite uma troca de bens ou serviços sem que seja necessária a intervenção do governo (Donaldson e Gerard 1993).

39 Tradução directa do inglês moral hazard, por vezes também designado por “abuso do segurado”.

Trata-se de uma forma de comportamento racional que se observa quando os consumidores aumentam a sua utilização de cuidados de saúde devido ao facto de não terem de suportar o custo total dos tratamentos. Contudo há autores que dão pouca relevância ao fenómeno, dado que a grande fatia dos gastos em saúde está dependente de prescrição médica e não da iniciativa do consumidor. Ver a este propósito Pereira J: Economia da Saúde, Glossário de Termos e Conceitos.

Associação Portuguesa de Economia da Saúde, Documento de trabalho 1, Lisboa, 1993.

Capítulo 3 – Saúde e Cuidados de Saúde: Especificidades do Sector

O objecto de transacção no mercado da saúde consiste nos próprios cuidados de saúde, que apesar de apresentarem características específicas, são um bem económico sujeito às leis da procura (Pestana 1996). Assim, para a compreensão deste mercado será feita uma breve referência às características do mercado normal.

A procura de um bem ou serviço pode ser definida como “a quantidade de bem ou serviço que as pessoas desejam consumir num determinado período de tempo” de acordo com as suas possibilidades económicas (Iunes 1995). Deste modo cada indivíduo, face a opções alternativas, realiza as suas escolhas segundo os seus gostos e preferências procurando o máximo de satisfação, maximizando a utilidade do bem (Donaldson e Gerard 1993, Cillis e West 1984). De acordo com Frank (2006) cada indivíduo faz uma análise de custo-benefício nas suas escolhas ao analisar as seguintes questões: “devo comprar o produto?”,

“posso pagar por ele?” e “que bens poderia adquirir com o mesmo valor?”.

No modelo tradicional, o consumidor define as suas escolhas e combina tal facto com o rendimento disponível. O consumidor possui informação acerca dos produtos que deseja consumir, o que é designado por princípio da “soberania do consumidor”.

Há assim diferentes factores que afectam a procura, tais como: preço40, rendimento41, preferências, o preço de bens sucedâneos e complementares42 e a qualidade percebida sobre um bem ou serviço e a população (Frank 2006, Neves 1996, Mc Connel e Brue

40 Segundo o modelo tradicional da procura, a variável preço constitui o factor da procura mais evidente. Assim mantendo-se os restantes factores constantes, existirá uma relação inversa entre o preço do produto e a quantidade procurada. Com o aumento de preço, o consumidor fica mais pobre e diminui o rendimento disponível para a aquisição do produto (efeito rendimento) ou passa a comprar outros produtos (efeito substituição). A este propósito ver Neves J L: Introdução à Economia, 3ª edição. Verbo, Lisboa, 1996.

41 No que respeita ao rendimento podemos considerar a existência de diferentes tipos de bens. Os bens considerados “normais” são aqueles que vêm a sua procura aumentar quando o rendimento do indivíduo aumenta; os bens “inferiores” são aqueles que vêm a sua procura diminuída com o aumento de rendimentos por parte do indivíduo. A este propósito ver Frank R H: Microeconomia e Comportamentos, 6ª edição. Trad. Mª do Carmo Seabra, Mc Graw Hill, Lisboa, 2006.

42 Segundo o modelo tradicional, se os bens forem sucedâneos, o aumento de preço num deles reduz a sua procura e aumenta a quantidade procurada do bem sucedâneo. Caso se tratem de bens ou serviços complementares o aumento de preço de um bem ou serviço reduzirá a quantidade procurada dos bens ou serviços normalmente consumidos em conjunto. Ver a este propósito Samuelson P, Nordhaus W: Economia, 18º edição. Trad. Elsa Fontainha e Jorge Pires Gomes, Mc Graw Hill, Lisboa, 2005.

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2001). Um sistema baseado no preço formado livremente no mercado apresenta diversas vantagens, sendo que o preço representa uma medida de valor e actua como mecanismo regulador da procura e da oferta (Pinto e Aragão 2003). O que acontece na saúde é que se

“prescindiu” durante muitos anos do factor “preço” no momento do seu consumo, o que pode dificultar a valoração deste bem.

Na área da saúde, a procura é influenciada por diversas particularidades que estão directamente relacionadas com as especificidades do mercado da saúde, especificidades já elucidadas na temática anterior. Arrow43 (1963, cit. Iunes 1995) define como características peculiares:

 no que respeita ao consumidor a sua procura é irregular e imprevisível, uma vez que este desconhece qual o momento em que irá adoecer;

 a procura de cuidados de saúde ocorre em circunstâncias anómalas, ou seja, quando o indivíduo está doente, o que poderá comprometer a racionalidade da decisão;

 dada a ignorância do consumidor, torna-se necessária a existência de uma ligação de confiança entre o agente da procura e o agente da oferta;

 nesta relação de confiança depreende-se que o conselho do prestador é dissociado de interesse próprio (existência de uma relação de agência perfeita);

 a ética médica condena a propaganda e a competição entre médicos no que diz respeito aos bens e serviços disponíveis;

 a relação agente da procura / agente da oferta é assimétrica no que respeita à informação.

Podemos afirmar, com base nas características apresentadas, que a procura de cuidados de saúde é imprevisível, não depende da vontade do indivíduo nem dos seus recursos. A procura em saúde é determinada pela percepção que o indivíduo tem de necessidade, e do reconhecimento da presença de um problema de saúde (Mulholland et al 2008). Contudo, é o agente da oferta o que possui mais conhecimento da situação clínica do indivíduo.

Pestana (1996) defende que a ignorância do consumidor sobre o seu estado de saúde, bem como relativamente ao efeito dos cuidados médicos, é a causa da assimetria de informação,

43 Ver a este propósito Iunes R F: Demanda e Demanda em Saúde, In Piola S, Vianna S M:

Economia da Saúde: Contribuição para a Gestão da Saúde. IPEA, Brasília, 1995.

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sendo esta a responsável principal pela existência do fracasso no mercado de cuidados de saúde. Esta assimetria de informação leva à criação de uma relação de agência, ou seja, o indivíduo delega uma parte das decisões no profissional de saúde.

Esta relação de agência é “omnipresente e imperfeita”, estigmatizando designadamente o comportamento do agente da procura, o qual tem necessidade de transferir as suas decisões para o agente da oferta (Matias 1995). Segundo o mesmo autor, o encontro destes dois agentes no mercado resulta num equilíbrio instável, em que quer o preço quer a quantidade podem ser influenciados pela oferta. Isto é, parece estar em causa o conceito de procura induzida. Ou seja, o agente da oferta pode conduzir a que o doente receba mais cuidados que o necessário (Rego 2008).

No que se refere ao conceito de “necessidade”, este conceito admite que o indivíduo não tem consciência do seu estado de saúde, sendo o profissional de saúde quem define se o doente necessita ou não de cuidados. O conceito de necessidade44 é, no mercado da saúde, conflituoso com o de soberania do consumidor. Portanto, necessidade é uma definição exógena determinada pelos prestadores de cuidados de saúde (Pestana 1996). Por sua vez, a “procura” é um conceito que está centrado sobre a liberdade e autonomia de escolha do consumidor. Desponta ainda o conceito de “utilização de cuidados de saúde”, que diz respeito ao consumo efectivo de cuidados de saúde.

Do exposto verifica-se que a quantidade de serviços considerada como necessária é, com certeza, diferente da procurada. Do mesmo modo, as necessidades não são facilmente estabelecidas entre prestadores de cuidados já que não existe um padrão que defina claramente o que é “boa saúde”, não existe um conhecimento perfeito das condições de saúde da população e não existe um conhecimento perfeito da capacidade das intervenções

44Segundo Pereira, não há na literatura uma definição única de necessidade. Contudo, é muitas vezes utilizada uma taxionomia que permite a distinção de três tipos de necessidades: necessidades sentidas, necessidades expressas e necessidades normativas. As necessidades sentidas são aquelas que são identificadas pelos indivíduos e as expressas são as que se referem à procura de cuidados de saúde pelos utentes. As normativas são aquelas que são definidas e identificadas pelos profissionais de saúde. Ver a este propósito Pereira J: Economia da Saúde, Glossário de Termos e Conceitos. Associação Portuguesa de Economia da Saúde, Documento de trabalho 1, Lisboa, 1993.

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(Iunes 1995, Pauly 2004). Isto leva-nos a afirmar que “necessidade” não deve ser vista como um conceito absoluto, mas antes relativo e dinâmico (Matias 1995).

Na saúde verifica-se a existência de ausência de soberania do consumidor, que está aglutinada ao contexto de incertezas relativamente à saúde e à doença. Numa situação em que o consumidor deseja comprar uns óculos novos ou comprar uma caixa de lentes de contacto para o próximo mês, ele pode prever os gastos envolvidos e gerir os seus recursos, ou poderá mesmo adiar a sua aquisição se os recursos disponíveis não lhe permitirem a compra. Contudo, na grande maioria dos itens relacionados com doença, não é possível fazer uma previsão e esta surge muitas das vezes de forma inesperada (Donaldson e Gerard 1993).

E porque existem incertezas na procura e possibilidade de perdas económicas significativas, a sociedade recorre aos seguros de saúde, privados45 ou públicos46 (Barros 2006, Donaldson e Gerard 1993). Tal facto pode levar à má utilização de recursos, distorcendo a procura, já que no momento de utilização o indivíduo está disposto a obter os benefícios do pagamento do seguro (Pauly 2004, Farnsworth 2006).

Outro conceito importante de se explorar é o conceito de elasticidade da procura. A elasticidade é definida como a medida do grau de correspondência de uma variável dependente (procura, oferta) a alterações numa das variáveis que a determinam (por exemplo preço, rendimento, nível de instrução). Para a avaliação da elasticidade apenas uma das variáveis independentes pode ser alterada, sendo que os restantes factores devem

45 Um seguro de saúde não é mais do que a transferência das responsabilidades financeiras associadas a cuidados de saúde a uma terceira entidade, a troco de um pagamento fixo, o denominado prémio de seguro. Assim o consumidor quando necessita de cuidados de saúde apenas paga uma pequena fracção do custo dos cuidados no momento do consumo. O seguro privado cumpre a primeira função assinalada cobrando prémios de seguro tipicamente relacionados com as características de risco do segurado. Ver a este propósito Barros P P: Economia da Saúde:

conceitos e comportamentos. Livraria Almedina, Coimbra, 2006.

46 O seguro público recolhe os fundos necessários para o pagamento aos prestadores através dos impostos ou de outro sistema contributivo, tipicamente compulsório, sendo o pagamento do indivíduo determinado pelo nível de rendimento. A adesão a um sistema público pode ser garantida pela capacidade coerciva do Estado. Ver a este propósito Barros P P: Economia da Saúde:

conceitos e comportamentos. Livraria Almedina, Coimbra, 2006.

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manter-se constantes47. No domínio da saúde podemos falar de dois tipos de elasticidade: a elasticidade da procura relativamente ao preço, que corresponde à alteração percentual na quantidade procurada em relação à alteração de preço; e a elasticidade da oferta relativamente ao rendimento dos prestadores, que corresponde à alteração na quantidade oferecida em relação à alteração percentual no rendimento dos prestadores (Pereira 1993).

A elasticidade da procura relativamente ao preço, é na saúde, considerada como sendo uma procura inelástica ou rígida, pois a quantidade procurada varia menos que proporcionalmente em relação à alteração do preço.

A inelasticidade da procura de cuidados de saúde relaciona-se com o facto de a maioria dos Estados que têm subjacente o princípio do “Welfare State” possuir um SNS de carácter universal e geral tendencialmente gratuito (Rodriguez et al 2008). A gratuitidade do bem no momento da utilização estimula um consumo do bem superior ao necessário. Aqui verificamos a presença do risco moral no consumo (Matias 1995). Há autores que consideram que quanto mais o utente “sentir” que paga, menor será o risco moral do lado da procura (Pauly 2004, Farnsworth 2006, Rodriguez et al 2008).

Contudo, apesar da maioria dos estudos apontarem que a procura de cuidados de saúde é inelástica dadas as características específicas dos cuidados de saúde, já aludidas neste trabalho, Lucas (1990)48 demonstra no seu estudo que os grupos sociais mais desfavorecidos apresentam alguma sensibilidade às variações de preços, indicando que estão dispostos a trocar os cuidados de saúde por outros bens se for caso disso.

47 A elasticidade da procura pode ser unitária quando uma alteração de 1% no preço de um produto implica uma alteração na quantidade procurada igualmente de 1%, no sentido inverso, ou seja, a percentagem de variação da quantidade é exactamente igual à percentagem de variação no preço. A procura pode também ser inelástica ou rígida quando a quantidade procurada varia menos que proporcionalmente em relação à alteração do preço, por exemplo, uma alteração de 1% no preço implica uma alteração em sentido inverso na quantidade procurada de 0,8%. A procura pode ainda ser elástica quando a quantidade procurada varia mais que proporcionalmente em relação à alteração do preço, por exemplo, a uma alteração de 1% no preço de um produto, ocorre uma alteração em sentido inverso de 1,5% na quantidade procurada. Ver a este propósito Iunes R F:

Demanda e Demanda em Saúde, In Piola S, Vianna S M: Economia da Saúde: Contribuição para a Gestão da Saúde. IPEA, Brasília, 1995.

48 No que se refere à subutilização de cuidados de saúde pelos trabalhadores manuais, embora não esquecendo factores de índole cultural, parece legítimo associar esta subutilização à existência de taxas moderadoras. Ver a este propósito J S: Taxas moderadoras e equidade na utilização de cuidados de saúde primários. “Em foco”, Revista Portuguesa de Saúde Pública, n.º 1; Lisboa, 1990:

17-27.

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Donaldson e Gerard (1993) asseveram que para que o mercado da saúde funcionasse com uma eficiência máxima e a menores custos teriam de existir ausência de incertezas, inexistência de externalidades, um conhecimento perfeito49, consumidores livres na sua escolha e existência de numerosos e pequenos produtores50.

Mas, tal mercado não existe. Então as características do bem “cuidados de saúde”

(nomeadamente o risco e o contexto de incertezas associados à doença) num mercado sem regulação acentuariam os problemas de deseconomias51 de pequena escala, de risco moral e de selecção adversa52 (Cardon e Hendel 2001). Assim sendo, e tendo também em conta a existência de externalidades e de assimetria de informação e a necessidade de certificação dos profissionais de saúde, o Estado apresenta uma intervenção no sector da saúde que se processa de forma mais profunda que na maioria dos outros sectores da economia, apesar de, menos questionada na razão da sua existência (Escoval 1999, Lucena et al 1996, Donaldson e Gerad 1993).

49 O conhecimento perfeito permitiria ao consumidor, neste caso ao paciente, determinar que decisões tomar para manter ou melhorar o deu estado de saúde, pois teriam um conhecimento pleno da sua situação clínica. Ver a este propósito Rego G: Gestão Empresarial dos Serviços Públicos, uma aplicação ao sector da saúde. Tese de Doutoramento, Vida Económica, 2008.

50 A existência de muitos e pequenos produtores favoreceria a competição entre eles, o que acarretaria maior eficiência. Ver a este propósito Rego G: Gestão Empresarial dos Serviços Públicos, uma aplicação ao sector da saúde. Tese de Doutoramento, Vida Económica, 2008.

51 A economia de escala ocorre quando as grandes companhias distribuem o seu custo fixo entre todos os seus produtos e assim conseguem uma diminuição do custo por unidade de produto. Diz-se que existem economias de escala quando os custos médios de produção duma actividade diminuem à medida que o volume de produção vai aumentando. A desvantagem da existência de economia de escala é a tendência para a formação de monopólios que passam a determinar sozinhos o preço de mercado, já que não têm concorrentes, e o consumidor não tem escolha. A

“deseconomia de escala” ocorre quando aumenta o custo médio do produto com o aumento do volume de produção. Isto pode mesmo ocorrer numa grande firma quando há perdas de eficiência devido ao menor controlo sobre a produção ou ao maior distanciamento entre administrativos e empregados. No mercado de seguros de saúde podem surgir deseconomias de escala dado que se indivíduos de alto risco adquirirem seguros, o valor do prémio aumenta em geral, sendo que os indivíduos de baixo risco rejeitariam o seguro. Isto significa um custo médio final por unidade de produto maior. Assim o custo final de seguro será maior para o consumidor. Ver a este propósito Donaldson C, Gerard K: Economics of Health care Financing. Mc Millan, London, 1993 e Barros P P: Economia da Saúde: conceitos e comportamentos. Livraria Almedina, Coimbra, 2006.

52 Segundo Cardon e Hendel a selecção adversa é considerada a principal causa para a falha no mercado da saúde. Ver a este propósito Cardon J H, Hendel I: Assymmetric information in health insurance, evidence from the National Medical Survey. Rand J Econ., vol. 32, nº3, Autumn, 2001:408-27.

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O sector da saúde, em todos os países desenvolvidos, tem sido objecto de importante intervenção e regulação do Estado, com amplitudes e graduações diversas, com base em diferentes sistemas organizativos e igualmente diversos modelos de financiamento (Gonçalves 2003).

Em Portugal, o papel regulador do Estado revela-se, por exemplo, na regulação dos preços (preço dos medicamentos), na quantidade de médicos (numerus clasus de estudantes de Medicina) e qualidade dos profissionais de saúde (exigência de qualificações adequadas) (Pinto 1995).

Para além da função reguladora do Estado, este pode assumir a função de prestador ao fornecer inúmeros bens e serviços neste sector, tais como hospitais, centros de saúde, programas de vacinação, entre muitos outros (Barros 2006). O papel do Estado pode ainda ser mais extensivo ao assumir-se como financiador. Tal papel é desempenhado através da recolha de impostos para em troca assumir a responsabilidade financeira das despesas em cuidados de saúde, quer fornecendo directamente esses cuidados quer pagando a terceiros o fornecimento desses cuidados (Barros 2006). A Lei de Bases da Saúde53 (Base VI – Responsabilidade do Estado) afirma que “Os serviços centrais do Ministério da Saúde exercem, em relação ao Serviço Nacional de Saúde, funções de regulamentação, orientação, planeamento, avaliação e inspecção.”.

Matias (1995) no seu documento de trabalho “O Mercado de Cuidados de Saúde” aborda a questão que se refere em saber que entidade deverá ser prestadora de cuidados de saúde, se o Estado ou seguros de saúde. De acordo com este autor, apela-se que o Estado seja responsável pela provisão de cuidados de saúde. Isto porque um serviço público de saúde, tipo o SNS no caso português, tem como mais valia a não exclusão de nenhum cidadão.

Contudo, no caso português o papel do Estado enquanto prestador tem vindo a atenuar-se com a empresarialização da gestão hospitalar. É de salientar que a nova forma de gestão surgiu dada a baixa eficiência que o SNS foi apresentado ao longo dos últimos anos.

53Lei nº 48/90: Lei de Bases da Saúde. Diário da República, I série, 24 de Agosto, 1990. Esta Lei foi alterada pela Lei nº27/2002, de 8 de Novembro, que também aprova o novo regime jurídico da gestão hospitalar. A este propósito consultar o anexo III deste trabalho.

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De uma forma sucinta podemos referir que a procura de cuidados de saúde é influenciada pelos custos implícitos no consumo de cuidados de saúde, pela oferta, por factores culturais e demográficos e pela forma de financiamento dos cuidados de saúde (Rego 2008). Os custos implícitos no consumo de cuidados de saúde constituem um factor determinante do nível de utilização, já que, embora o seu preço possa ser nulo no ponto de consumo, existem outros custos associados ao consumo dos cuidados, nomeadamente o tempo exigido pelos tratamentos54 e as perdas de rendimento monetário em consequência do tratamento médico, que vão ser integrados no processo de decisão do consumidor (Pestana 1995, Sorkin 1984, Cillis e West 1984).

Após verificarmos as características gerais da procura de cuidados de saúde, esta mesma procura é em si influenciada pela oferta devido à já referida procura induzida. O fenómeno da procura induzida55 surge com Roemer e Robert Evans e está estritamente ligado à protecção social (Rego 2008, Barros 2005). Este pode explicar-se de diversas maneiras (Beresniak e Duru 1999):

 “o aumento da demografia médica dá lugar a formas mais ou menos directas de publicidade;

 a concorrência profissional incita ao tratamento médico mais completo do paciente;

 a forte densidade médica nas grandes cidades constitui um apelo directo ao consumo de cuidados de saúde;

 os hospitais públicos ou privados atraem a população na proporção da sua capacidade;

54 O preço de tempo corresponde à estimativa monetária do valor do tempo perdido pelo consumidor para utilizar os serviços de saúde. No cálculo do preço de tempo dever-se-á incluir tanto o tempo de permanência no local de atendimento como o tempo de deslocação para esse local. O conceito reflecte a ideia de que os preços monetários não constituem a única barreira de acesso aos serviços de saúde. Ver a este propósito Pereira J: Economia da Saúde, Glossário de Termos e Conceitos. Associação Portuguesa de Economia da Saúde, Documento de trabalho 1, Lisboa, 1993.

55Os trabalhos iniciais sobre a indução da procura são devidos a Shain e Roemer (1959) e Roemer (1961) que encontraram uma forte correlação entre a disponibilidade de camas hospitalares e a sua utilização, sendo sugerida a explicação de que se um hospital tinha a cama vazia tenderia a preenchê-la. Evans (1974) apresentou a ideia de que o médico tem uma desutilidade pelo facto de induzir a procura. Assim, um médico ao decidir a quantidade de indução da procura que realiza tem em conta o benefício marginal (maior rendimento), mas também um custo marginal (menor utilidade). Ver a este propósito Barros P P: Economia da Saúde: conceitos e comportamentos.

Livraria Almedina, Coimbra, 2006.

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 a informação da população sobre as possibilidades crescentes da medicina é cada vez maior.”

Outro dos factores que influencia a procura é a vertente cultural. Na verdade, os indivíduos de classes mais desfavorecidas apresentam uma taxa de hospitalização superior à média56 e os indivíduos de classe mais favorecidas economicamente são os responsáveis pelo maior consumo de cuidados em ambulatório e menor em cuidados hospitalares (Lucas 1990).

Os factores demográficos são também uma das causas que pode influenciar a procura, sendo este agente bem visível nos países desenvolvidos, em que o envelhecimento da população está ligado ao aumento das despesas em saúde. Por último, referimos o modelo de financiamento de cuidados de saúde como factor que afecta a procura (Beresniak e Duru 1993), sendo que tal factor será analisado de forma detalhada na próxima temática.

De um modo geral os economistas utilizam três modelos fundamentais para estudar a procura no campo da saúde: o modelo tradicional, o modelo de Grossman e o modelo comportamental de Andersen. De forma sucinta, podemos afirmar que o modelo tradicional analisa o consumo de cuidados de saúde à semelhança de outros bens económicos, isto é, em função do preço, rendimentos, gostos. Através dos estudos empíricos, este modelo conclui que à medida que o preço aumenta o consumo diminui e que, com a existência de seguros, o consumo aumenta à medida que aumenta o grau de cobertura (Farnsworth 2006, Gravelle e Siciliani 2008). No que respeita ao rendimento, quanto maior o seu valor, maior o encorajamento para o consumo de cuidados de saúde.

Relativamente ao “preço de tempo”, este é muitas vezes tão ou mais importante que os pagamentos directos (Sorkin 1984).

56 Este índice de internamento mais elevado nos indivíduos de baixo rendimento relaciona-se provavelmente com o facto destes indivíduos recorrerem aos serviços de saúde numa fase mais tardia da doença e recorrerem menos frequentemente aos cuidados preventivos. A este propósito Lucas J S: Taxas moderadoras e equidade na utilização de cuidados de saúde primários. “Em foco”, Revista Portuguesa de Saúde Pública, n.º 1; Lisboa, 1990: 17-27.

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O modelo de Grossman trata a saúde como um stock e considera a saúde como um processo de produção conjunto, requerendo contribuição quer do indivíduo quer de consumo de bens e serviços apropriados, denominados de cuidados médicos. Assim, a saúde é vista como um bem de consumo, um bem de investimento. Uma vez que a saúde não depende somente dos serviços e cuidados de saúde, o próprio indivíduo vai investindo na sua própria saúde, sendo que contribuem para este “stock de saúde” factores como:

idade, alimentação, rendimento, habitação e educação. Este capital humano irá depreciar-se ao longo da vida devido ao próprio envelhecimento e como resultado das nossas acções (Cillis e West 1984, Barros 2006). O bem saúde é interpretado como um bem duradouro que produz um fluxo desejado que se designa por “tempo saudável livre de doença”. Como resultado, a partir de um determinado período, os indivíduos consomem mais cuidados de saúde para compensarem a depreciação que esta vai sofrendo (Sorkin 1984).

O modelo de Grossman pressupõe um conjunto de decisões simultâneas para o indivíduo:

afectar o tempo entre trabalho e lazer, dividir o tempo restante de lazer na produção de saúde e do bem de consumo puro, dividir o rendimento gerado entre bens intermédios para a produção de saúde e do bem de consumo puro, investir em saúde para o período seguinte.

Com o investimento em saúde, o indivíduo altera o número de dias saudáveis no período seguinte, isto é, faz-se a endogeneização do tempo máximo disponível para dedicar a lazer ou ao trabalho. A restrição total de tempo disponível num período é afectada pelas decisões do indivíduo relativamente ao seu “stock de saúde”. Esta característica significa que o investimento em saúde aumenta o rendimento potencial do indivíduo (Barros 2006).

A apoiar este modelo existem alguns estudos que demonstram o efeito de alguns agentes no stock de saúde no indivíduo, como por exemplo, os que revelam o efeito negativo do tabaco no nível de saúde. A este respeito Giraldes (1997a) procura explicar a diferença na esperança média de vida entre homens e mulheres recorrendo ao modelo de Grossman. O aumento de contactos médicos está associado a um aumento na esperança de vida e, conclui que, só por si, um incremento de 30% nesta variável tem um impacto de 0,4 anos na esperança média de vida à nascença, o que não será de desprezar (Giraldes 1997a). Este aumento de contactos médicos no sexo feminino está associado às consultas de