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BIOÉTICA

ANA PATRÍCIA DA ROCHA BARBOSA

IMPLICAÇÕES ÉTICAS DAS TAXAS MODERADORAS FACE À ESCASSEZ DE

RECURSOS EM SAÚDE

Trabalho de Projecto apresentado para a obtenção do grau de Mestre em Bioética, sob a orientação da Prof.ª Doutora Guilhermina Rego

6ª CURSO DE MESTRADO EM BIOÉTICA

FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DO PORTO PORTO, 2009

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ANA PATRÍCIA DA ROCHA BARBOSAX

IMPLICAÇÕES ÉTICAS DAS TAXAS MODERADORAS FACE À ESCASSEZ DE

RECURSOS EM SAÚDE

6ª CURSO DE MESTRADO EM BIOÉTICA

FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DO PORTO PORTO, 2009

xFisioterapeuta, aluna do 6º Mestrado em Bioética.

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Agradecimentos

Agradecimentos

Quero agradecer à Doutora Guilhermina Rego não só pela ajuda dada enquanto orientadora deste projecto, mas também pelo apoio demonstrado ao longo destes dois anos!

Um obrigado especial aos meus pais e irmã pelo apoio distinto e ajuda constante que sempre me deram ao longo do meu percurso académico!

Um obrigado especial ao Bruno pela companhia que me fez nas visitas à Universidade do Minho para a realização da pesquisa bibliográfica!

Ao meu amigo António Manuel, um agradecimento especial, pela leitura atenciosa que fez do meu trabalho e ao Rui um agradecimento pelas sugestões de formatação.

Ao Serviço de Bioética e Ética Médica e ao Departamento de Clínica Geral

da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto agradeço todo o apoio

que me deram desde o primeiro ano.

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Resumo

RESUMO

Dados os elevados gastos que se têm verificado na área da saúde em toda a Europa, os governos foram impelidos a tomar decisões no sentido de se alcançar uma maior e melhor contenção de custos (Mossialos e Le Grand 2001).

As taxas moderadoras são um instrumento financeiro, de carácter explícito, que têm como principal objectivo a racionalização da procura de cuidados de saúde (Pinto e Aragão 2003). Contudo, em Portugal, esta medida de contenção de custos tem sofrido sucessivos aumentos e um alargamento aos diferentes sectores da saúde. Tal facto parecer-nos-à colidir com o direito dos portugueses a um sistema de saúde universal geral e tendencialmente gratuito, financiado através de impostos. Mais ainda, em Portugal os indivíduos são englobados em dois grupos: isentos e não isentos; sendo que, tal facto poderá ser gerador de desigualdades entre os não isentos, devido aos diferentes níveis de rendimento dentro deste último grupo.

Este trabalho pretendeu avaliar, do ponto de vista dos profissionais de saúde, o impacto da implementação e existência de taxas moderadoras no comportamento dos agentes da procura.

O instrumento de medida utilizado foi o questionário criado pela autora do trabalho; o qual foi submetido a um pré-teste.

Apesar dos resultados obtidos com a amostra do pré-teste não poderem ser extrapolados para a população, foi efectuada uma análise da opinião dos inquiridos acerca do papel das taxas moderadoras no comportamento dos utentes. Assim os resultados obtidos mostraram que a maioria dos profissionais de saúde concorda com a existência das taxas moderadoras e defendem que as mesmas deveriam apresentar um carácter pogressivo. Quanto às funções das taxas moderadoras, a racionalização da procura é apenas uma delas, sendo que, o seu papel na selecção do serviço a utilizar e na sensibilização dos utentes para os elevados custos dos cuidados de saúde se revelam também de especial importância.

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Resumo

ABSTRACT

Due to the increasing healthcare expenses that have been verified in all Europe, the governments have been impelled to take decisions with the intention to achieve a bigger and better containment of costs (Mossialos e Le Grand 2001).

The charges are a financial instrument, of explicit character which has as main purpose the rationalization of healthcare search. However, in Portugal, this cost containment measure has suffered successive raises and a widening to the different health sectors (Pinto e Aragão 2003). Such fact will seem to us to collide with the Portuguese people’s right to a free healthcare system, financed through taxes. Furthermore, in Portugal individuals are included in two groups: exempt and not exempt; being that such fact could be the generator of inequalities between the not exempted, due to their different ability to pay.

This work intended to evaluate the impact of charges implementation and existence in the demand agents’ behaviour, regarding the healthcare professionals’ point of view.

The instrument of measure used was the inquiry created by the authoress of the paperwork;

which was submitted to a daily pre-test.

Although the results obtained with pre-test couldn’t be generalized to the population, it was made an analysis of the inquired people’s opinion, concerning the charges` role in the patients` behaviour. Thus the results showed that the majority of the healthcare professionals agree with the existence of charges and defend that the same ones should have a gradual character. Regarding the charges functions, the demand rationalizing is just one of many, being that its role in the selection of the service to use and in the patients’

sensitization for the increased healthcare costs reveals itself of special importance.

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Índice

ÍNDICE

Agradecimentos ... …I Resumo ... II Índice ... IV Índice de Figuras e Gráficos ... VI Índice de Tabelas ... VII

Introdução ... 1

PARTE I: REVISÃO DA LITERATURA Capítulo 1- Justiça Distributiva 1.1 Conceito e Teorias da Justiça ... 8

1.1.1 Igualitarismo Qualificado ... 10

1.1.2 Utilitarismo ... 13

1.1.3 Teoria Libertária ... 15

Capítulo 2- Direito da Saúde e Caracterização do SNS 2.1 Direito Constitucional da Saúde em Portugal ... 18

2.2 A Natureza Mista do SNS Português ... 23

2.3 Equidade e Solidariedade ... 27

2.4 Eficiência e Public Accountability ... 32

Capítulo 3- Saúde e Cuidados de Saúde: Especificidades do Sector 3.1 Especificidade do Bem “Cuidados de Saúde” ... 36

3.2 Características da Procura em Saúde ... 41

3.3 Característica da Oferta e do Financiamento no Sector da Saúde ... 53

Capítulo 4- Taxas Moderadoras 4.1 Racionalização da Procura ... 62

4.2 Papel das Taxas Moderadoras... 67

4.2.1 Argumentos a Favor ... 72

4.2.2 Argumentos Contra ... 75

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Índice

4.3 Efeito das Taxas Moderadoras na Procura de Cuidados de Saúde no Serviço de

Urgências ... 77

4.4 Efeitos das Taxas Moderadoras na Equidade de Acesso ... 80

PARTE 2: ESTUDO DE INVESTIGAÇÃO Capítulo 5- Metodologia de Investigação 5.1 Desenho do Estudo ... 86

5.2 Hipótese de Trabalho ... 86

5.3 Local do Estudo ... 87

5.4 Tipo e Técnica de Amostragem ... 87

5.5 Selecção dos Participantes no Estudo ... 87

5.6 Instrumento de Medida ... 88

5.7 Recolha de Dados ... 89

5.8 Análise Estatística ... 89

Capítulo 6- Pré-Teste: Análise Preliminar 6.1 Pré-Teste ... 90

6.2 Caracterização da Amostra do Pré-Teste ... 90

6.3 Resultados do Pré-Teste ... 92

6.4 Discussão dos Resultados do pré-Teste ... 100

Considerações Finais ... 105

Referências Bibliográficas ... 110

ANEXOS Anexo I.a : Decreto-Lei n.º 173/2003, de 1 de Agosto: ... 123

Anexo I.b: Decreto-Lei n.º 201/2007, de 24 de Maio ... 125

Anexo I.c: Decreto-Lei n.º 79/2008, de 8 de Maio ... 126

Anexo II: Portaria n.º 395-A/2007,... 128

Anexo III: Lei de Bases da Saúde ... 130

Anexo IV: Questionário ... 154

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Índice de Figuras e Gráficos

ÍNDICE DE FIGURAS E GRÁFICOS

Figura 1: Sistema de saúde com preço zero e com co-pagamento ………….…. 69

Gráfico 1: Distribuição dos indivíduos pelos diferentes serviços/ especialidades clínicas ………... 91

Gráfico 2: Progressividade do pagamento das taxas moderadoras ... 94

Gráfico 3: Implementação e existência das taxas moderadoras ………... 97

Gráfico 4: Desempenho do SNS ……….... 98

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Índice de Tabelas

ÍNDICE DE TABELAS

Tabela 1: Profissão dos indivíduos da amostra ……….. 91

Tabela 2: Valores da média, máximo, mínimo e desvio padrão relativos à

idade e anos de prática clínica ……… 92

Tabela 3: Eficácia das taxas moderadoras no controlo da procura excessiva de

cuidados de saúde ………... 92

Tabela 4: Diminuição da procura em diferentes serviços ………. 93

Tabela 4.1: Serviços em que a procura diminuiu ………... 93

Tabela 5: Diminuição da procura pelos indivíduos de estrato sócio-económico

mais baixo ……….. 94

Tabela 6: Principais funções das taxas moderadoras ………...…. 96

Tabela 7: Causas do défice do SNS no desempenho das suas tarefas…………... 99

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Introdução

INTRODUÇÃO

A Ética exige uma reflexão crítica sobre os comportamentos e um maior e melhor respeito pela dignidade humana. Uma das questões basilares da Ética, senão mesmo a primeira, é a da fundamentação da moral (Brito 2000). O conhecimento da Ética estimula a reflexão, permite emitir juízos de valor mais correctos, aumenta a sensibilidade para detectar problemas morais e melhora a capacidade para tomar decisões (Simões 2005).

Intimamente ligada à área da saúde encontramos a Bioética. Esta surge em 1971, sendo Van Potter o primeiro a utilizar o termo Bioética. Contudo, é Hellegers o fundador do primeiro instituto dedicado ao estudo da Bioética1. O objectivo desta nova disciplina era a combinação dos conhecimentos da cultura científica com os conhecimentos da cultura humanista (Martinez 2005). Pretendia-se, então, a construção de uma “ponte” entre duas áreas de pensamento divergentes. Luís Archer define a Bioética como “expressão da consciência pública da humanidade. É charneira entre o possível e o conveniente. Entre tecnologia galopante e humanitude imprescindível.”2

Em Bioética não é possível decidir tendo uma certeza absoluta, é necessário actuar com prudência, devendo ser tomadas decisões que se apresentem como as mais correctas após um processo reflexivo intenso (Serrão 1996). Assim, para a tomada de decisões em Bioética temos um conjunto de quatro princípios idealizados por Beauchamp e Childress que, não sendo absolutos, são orientadores para a reflexão e a tomada de decisão. Os princípios são:

 Autonomia: respeito pela autonomia do doente e pelas suas escolhas conscientes, livres e esclarecidas; é condição de quem é autor da própria lei;

1 A Bioética apresenta um nascimento bilocado (“bilocated birth”), pois terá surgido mais ou menos ao mesmo tempo com Van Potter e Hellegers. Van Potter terá sido o primeiro a utilizar o termo “bioética” numa publicação com o título “Bioethics: a bridge to the future”. Contudo, é Hellegers o fundador do primeiro instituto universitário dedicado ao estudo da Bioética. Ver a este propósito Martinez J L: De la Ética a la Bioética In Brito J H: Do Início ao Fim da Vida.

Publicações da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, Aletheia, Braga, 2005.

2 A este propósito ver Nunes R M: Bioética e Deontologia Profissional. Gráfica de Coimbra, Colectânea Bioética Hoje, Coimbra, 2002.

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Introdução

 Beneficência: promover positivamente o bem do doente; alguns denominam por princípio de “utilidade” ou de “proporcionalidade”;

 Não maleficência: não fazer mal ao outro;

 Justiça: considerar que todos os homens são iguais em direitos e na justa distribuição de recursos da sociedade (Cabral 2003).

A principiologia de Beauchamp e Childress não dá uma resposta única para a resolução dos problemas. Esta apresenta uma estrutura para a abordagem dos problemas, representando uma framework para o pensamento e a reflexão. Não há uma hierarquia pré- definida dos princípios, pelo que, de acordo com os problemas que emergem, devem ser ponderados de forma diferente (Martinez 2005).

A dimensão ética da saúde foi durante muitas décadas reduzida ao plano da relação interpessoal médico-doente. Porém, o desenvolvimento dos sistemas de saúde, a evolução social que se caracteriza por uma procura de mais e melhores cuidados de saúde e o aumento do número de intervenientes (Estado, seguradoras, empresas) implica uma reflexão de carácter ético, onde se observem os valores e os princípios da Bioética em conformidade com os valores inerentes a cada sociedade (Ramos 1994).

Um primeiro valor é o da dignidade humana; um segundo é o cuidado pela pessoa doente;

e um terceiro é o do rigor dos recursos financeiros, que são sempre escassos (Serrão 1996).

A dignidade da pessoa humana coloca-se como primeiro princípio ético, e nenhum outro princípio se poderá sobrepor ao da dignidade da pessoa humana. Ela é pois considerada pedra angular em todas as decisões que se relacionam com os cuidados de saúde (Parecer 14/CNECV/95, Melo 1998). Contudo, a actual escassez de recursos em saúde, não permite que tudo possa ser fornecido aos doentes em matéria de cuidados de saúde. É necessária a existência de um pacote básico de cuidados que esteja ao acesso de todos os cidadãos (Gruskin e Daniels 2008). O princípio da justiça da Principiologia de Beauchamp e Childress já enunciada está estreitamente relacionado com a distribuição de recursos em saúde (Hsu et al 2008). Vários foram os autores que construíram teorias da justiça que visam a distribuição da riqueza e o bem comum.

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Introdução

Actualmente, as nossas políticas de saúde pretendem garantir uma igualdade equitativa de oportunidades em que se discriminem positivamente os mais desfavorecidos. A igualdade equitativa de oportunidades vai de encontro ao igualitarismo qualificado de Rawls.

Contudo, valores do utilitarismo e da teoria libertária devem também ser atendidos no que se refere ao direito à saúde e à construção do anel básico de cuidados (Nunes 2003b). Isto porque a contenção de custos é necessária (valor nomeadamente utilitarista) e as análises de custo-benefício3, custo-utilidade4 e custo-efectividade5 são também pertinentes para as escolhas que se realizam na área da saúde dada a pertinente escassez de recursos (Gruskin e Daniels 2008). Por outro lado, a liberdade de escolha (conceito libertário) de doentes e de prestadores deve ser atendida (Nunes 2003b).

Segundo o Professor Daniel Serrão (1996): “a atribuição de recursos escassos para o financiamento de cuidados de saúde é uma questão eticamente muito difícil e será, provavelmente, a primeira de todas as questões de ética dos cuidados de saúde no futuro próximo”.

Num sistema de saúde que é considerado por muitos como estando “doente” é pertinente que se reúnam esforços de modo a que as diferentes teorias da justiça sejam consideradas e que princípios como equidade, solidariedade, efectividade, eficiência e accountability sejam referência no sistema de saúde português (Nunes 2003b).

3 Segundo Campos o custo-benefício corresponde à forma de avaliação económica onde os custos e as consequências são expressos em termos monetários. Assim é possível verificar qual das alternativas maximiza a relação entre custos e benefícios. Ver Campos A C: Avaliação Económica de Programas de Saúde. Colecção Cadernos de Saúde, nº 10, Escola Nacional de Saúde Pública, Lisboa, 1986 (a).

4 Segundo Campos o custo utilidade corresponde à forma de avaliação económica semelhante ao custo-efectividade, mas em que as consequências dos programas são medidas numa unidade física combinada com elementos qualitativos como por exemplo os anos de vida ajustados segundo a qualidade de vida (QALY’s). Ver Campos A C: Avaliação Económica de Programas de Saúde.

Colecção Cadernos de Saúde, nº 10, Escola Nacional de Saúde Pública, Lisboa, 1986 (a).

5 Segundo Campos o custo-efectividade corresponde à forma de avaliação económica em que os custos são expressos em termos monetários mas onde algumas das consequências são expressas em unidades físicas (ex: anos de vida ganhos, casos detectados). Campos A C: Avaliação Económica de Programas de Saúde. Colecção Cadernos de Saúde, nº 10, Escola Nacional de Saúde Pública, Lisboa, 1986 (a).

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Introdução

Na área da saúde não há dúvida de que se pode falar na existência de um mercado (Matias 1995). Mercado com financiamento público e privado. Em muitos países europeus, o problema que se coloca neste sector relaciona-se com a sustentabilidade do sistema de saúde adoptado, já que os gastos com a saúde têm crescido nos últimos anos, e em países como Portugal, tal crescimento ultrapassa já o PIB (Produto Interno Bruto)6.

Em Portugal, o SNS (Serviço Nacional de Saúde) absorve diariamente 23 milhões de euros, segundo os valores inscritos no Orçamento de Estado de 2007. O financiamento advém essencialmente dos nossos impostos (cerca de 91%). Contudo, aos elevados gastos na saúde está também associado um elevado nível de desperdício, já que o mesmo ronda os 25% (Galope 2006).

Diversas razões têm sido apontadas para o aumento de gastos com a saúde. Contudo, na generalidade, têm sido apontadas como razões principais: a inflação específica do sector (mais elevada que a taxa de inflação geral), o desenvolvimento tecnológico, as características demográficas e de morbilidade dos consumidores, e as suas expectativas e comportamentos. Béresniak e Duru (1999) adicionam ainda outros factores como: o surgimento de novos flagelos (o síndrome de imunodeficiência adquirida, cancro), o grande desenvolvimento da demografia médica que incita à procura induzida e o desenvolvimento inexorável de numerosas formas de esbanjamento de recursos.

Esta problemática da escassez de recursos patenteia-se nas sucessivas remodelações da forma de financiamento que têm ocorrido nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), assim como nas crescentes medidas que têm como objectivo a racionalização da procura de cuidados de saúde. Tais medidas são adoptadas quer na ala da procura, quer na ala da oferta.

Assim, a introdução de novas formas de gestão, nomeadamente a empresarialização dos hospitais, a introdução de novas formas de financiamento hospitalar, a regulação do uso de tecnologias, o controlo dos investimentos na área da saúde e a introdução de taxas

6 Em 2004, os gastos com a saúde ultrapassaram pela primeira vez os 10% do PIB. Ver a este propósito, Galope F: “Check-up” aos dinheiros do SNS. “Portugal, Saúde”, Visão, 23 de Novembro; 2006: 56-58.

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Introdução

moderadoras reflectem a necessidade dos governos limitarem os gastos na saúde (Pinto e Aragão 2003).

Em Portugal, a introdução de taxas moderadoras surgiu com o objectivo de racionalizar a procura. Tal facto é referido no Decreto-Lei n.º 173/20037 ao afirmar que estas se apresentam como um “instrumento moderador, racionalizador e regulador do acesso à prestação de cuidados (…) que garanta o reforço efectivo do princípio da justiça no Sistema Nacional de Saúde”.

Porém, muitos autores têm revelado algum cepticismo acerca da eficácia deste instrumento de contenção de custos, dado que esta medida de racionamento da ala da procura apresenta quer argumentos a favor, quer, e não menos pertinentes, argumentos contra a sua existência.

Em Portugal, este instrumento financeiro tem sofrido, nos últimos tempos, sucessivos aumentos, ocorrendo também a introdução de novas taxas8 (internamento e cirurgia de ambulatório). Tal facto sugere que estas constituam já uma fonte de receita num SNS que se apresenta frágil e economicamente debilitado.

De facto o mercado da saúde apresenta características muito peculiares, tal como a relação de agência, intimamente relacionada com a assimetria da informação. Esta relação de agência coloca-nos perante a procura induzida, e que, por sua vez, nos coloca perante a problemática de uma procura de cuidados que pode ter como sombra uma procura determinada pelos agentes da oferta (Sorkin 1984). Assim, muitos autores sugerem que as medidas de racionalização da procura deveriam ser concentradas no agente da oferta.

7 Decreto-Lei n.º 173/2003: Taxas moderadoras no acesso à prestação de cuidados de saúde. Diário da República, Série I-A, nº176 de 1 de Agosto de 2003. Este Decreto-Lei encontra-se nos anexos deste trabalho.

8 O pagamento de taxa moderadora no internamento e em cirurgia de ambulatório teve início em Abril de 2007. A este respeito ver Portaria nº395-A/2007 que se encontra em anexo neste trabalho.

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Introdução

Assim, podemos questionar se será eticamente correcta a dissuasão do consumo de cuidados de saúde, através de uma taxa moderadora que representa um segundo pagamento dos cuidados, uma vez que já foram pagos por via de impostos, sendo que, a actual carga fiscal dos portugueses é elevada e o rendimento disponível é baixo. Mais ainda, muitos indivíduos acabam por realizar uma tripla tributação (impostos, taxa moderadora e pagamento do seguro de saúde ou dedução no salário para o subsistema).

Também se pretende apurar neste trabalho se esta taxa de carácter regressivo não será demasiado penalizadora para os mais pobres. A este respeito Lucas (1990) afirma que, ou o regime de isenções é suficientemente vasto e protege um grande leque da população limitando o papel deste co-pagamento enquanto fonte de receita, ou o regime de isenções é mais restrito e obriga indivíduos de menores rendimentos a pagar, dilatando o seu papel enquanto fonte de receita.

Desta forma, o objectivo principal deste trabalho é conhecer, na opinião dos profissionais de saúde, qual o papel das taxas moderadoras no actual SNS. Também se pretende explorar se as mesmas garantem a efectivação dos valores de equidade e solidariedade patentes no nosso sistema de saúde português.

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PARTE I

REVISÃO DA LITERATURA

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Capítulo 1 – Justiça Distributiva

CAPÍTULO 1

JUSTIÇA DISTRIBUTIVA

1.1 Conceito e Teorias da Justiça

O conceito de justiça tem sido utilizado com diversos sentidos. Platão oferece uma visão da justiça como virtude universal, com dimensões psicológicas, éticas, políticas e jurídicas;

sendo que, a justiça exprime a “sujeição das distintas partes da alma e das várias classes sociais da polis ao todo”. Assim, a justiça platónica é, tanto no indivíduo humano (micropolis), como na sociedade política (macroanthropos), a conjugação e somatório das várias virtudes morais (prudência, temperança e fortaleza) (Chorão 1991).

Por sua vez, Aristóteles apresenta um conceito de justiça considerando-a como uma virtude particular ou universal de natureza exclusivamente social que diz respeito à repartição de bens entre os homens, ou seja, pretende atribuir a cada um aquilo que lhe pertence segundo um critério de igualdade. O Direito Romano consagrou o pensamento de Aristóteles definindo a justiça como a constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi (“

constante e perpétua vontade de dar a cada um o que lhe é devido”). Tal definição de justiça é também defendida por S. Tomás de Aquino (Chorão 1991).

Podemos assim afirmar que Platão tinha um conceito de justiça amplo, recobrindo virtudes como a fortaleza, a prudência e a temperança. Por sua vez Aristóteles atribui-lhe um significado mais restrito, concebendo-a como a virtude do “igual” com um cariz fortemente social. Da matriz de pensamento aristotélica resulta o facto de facilmente associarmos os conceitos de justiça e igualdade (Chorão 1991).

Na matriz aristotélica encontramos três conceitos de justiça: a distributiva, a comutativa ou correctiva e a legal ou geral. A justiça distributiva regula as actuações da sociedade, ou da autoridade que a representa, em relação aos indivíduos. Aristóteles afirma que este tipo de justiça é a que se pratica na distribuição de honras, dinheiro ou qualquer outra coisa que se reparta (Chorão 1991).

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Capítulo 1 – Justiça Distributiva

Rosseau (1986) na sua teoria do Contrato Social, manifesta uma clara preocupação com as desigualdades sociais introduzidas pelo processo de socialização. Assim o autor, visando a igualdade, defende, como critério de justiça distributiva, “a cada um segundo o seu próprio trabalho”, superando os critérios já apresentados por pensadores da época, tais como “a cada um segundo o seu status” e “a cada um segundo o seu mérito”.

Segundo Hsu et al (2008) a justiça distributiva consiste na maneira como os indivíduos e as sociedades distribuem os benefícios e as obrigações de forma justa ou moral.

Facilmente verificamos que o conceito de justiça é um conceito amplo e vago e para lhe dar “forma” várias correntes ideológicas propuseram os princípios materiais da justiça (Nunes 2003b):

 Princípio igualitarista: Afectação de bens em partes iguais a todas as pessoas. Por exemplo a educação é um bem ao qual todos têm direito;

 Princípio da necessidade: O acesso a determinados bens é realizado consoante as necessidades individuais. Por exemplo a realização de uma ressonância magnética é prescrita a indivíduos que apresentem necessidade de realização deste exame de diagnóstico;

 Princípio do mérito: O acesso a determinados lugares ou bens é efectuado de acordo com o mérito próprio, tal aspecto pode ser verificado no acesso a um lugar de chefia numa determinada empresa, em que o indivíduo é seleccionado pelo bom desempenho

 O esforço, trabalho: A repartição de bens é realizada de acordo com o trabalho, o esforço, neste aspecto podemos englobar os indivíduos que trabalham em mais que um local e que têm por tal motivo maiores rendimentos.

 Contribuição social: Neste princípio é tida em conta a contribuição de cada cidadão para a sociedade;

 O mercado e a concorrência: As regras de mercado condicionam a repartição de bens económicos e sociais.

No que se refere à saúde e à prestação de cuidados de saúde, além de se recorrer aos princípios materiais da justiça, é também pertinente recorrer às teorias da justiça que

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Capítulo 1 – Justiça Distributiva

apresentam uma doutrina de pensamento bem formulada e com coerência interna (Nunes 2003b). De seguida serão exploradas algumas teorias da justiça distributiva, o igualitarismo qualificado, o utilitarismo e a teoria libertária.

1.1.1 Igualitarismo Qualificado

O igualitarismo qualificado é uma teoria da justiça que comporta uma grande influência do contratualismo de Rosseau e cuja lógica da aceitação da justiça como equidade deriva do pensamento de Kant (Melo 2001).

John Rawls, um filósofo da justiça política e autor desta corrente de pensamento, propõe uma ética política ao sugerir uma estrutura básica da sociedade em que se encontrem distribuídos equitativamente os direitos e deveres. Para este autor, a justiça é tão importante para a sociedade, como a verdade para a ciência, sendo a justiça definida como equidade ou imparcialidade. Rawls (1993) considera que entre os indivíduos existem conflitos de interesses, derivando daí a necessidade de se encontrar consenso, sendo que os mesmos podem ser resolvidos com a ideia de “justice as fairness”. O igualitarismo defende que o bem supremo é o cidadão, então há direitos individuais que não podem ser sacrificados em prol da maioria. Assim John Rawls, no seu livro Uma Teoria da Justiça, afirma: “cada membro da sociedade é concebido como possuindo uma inviolabilidade baseada na justiça ou, como alguns dizem, nos direitos naturais que nem sequer em nome do bem-estar de todos os outros poderá ser afectada”. A sociedade é concebida como um empreendimento cooperativo, em que se procuram obter vantagens mútuas para os cidadãos (Rawls 1993). O autor apoia a posição de Kant, pois o homem é visto como um fim em si mesmo e não um meio.

Na sua teoria da justiça, Rawls apresenta dois princípios-chave:

1. Cada pessoa tem um igual direito a um sistema plenamente adequado de liberdade e de direitos fundamentais;

2. As desigualdades sociais e económicas devem cumprir duas condições para poderem ser admissíveis, devem estar ligadas a funções e posições abertas a todos

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Capítulo 1 – Justiça Distributiva

em condições de justa igualdade de oportunidades e devem servir para maior benefício dos menos desfavorecidos (Ferreira 1992).

O primeiro princípio enunciado é o de igual liberdade e salvaguarda a liberdade de expressão, consciência, associação, propriedade pessoal, proibição arbitrária, expropriação, os quais são igualmente protegidos pelo Estado de Direito. Então este princípio, designado princípio da liberdade, é assim a afirmação de uma cidadania autónoma, consciente de si e dos limites do seu exercício e sob o domínio da Lei (Santos 2004).

O segundo princípio é designado princípio da igualdade e da diferença ou princípio maximin pois há uma procura para a maximização da parte minimal. Rawls advoga este segundo princípio apresentando argumentação nas linhas intuitiva e contratual. Com a argumentação intuitiva afirma que as desigualdades só nos parecem justas se resultarem de uma competição justa e, para tal, é necessário existir igualdade de circunstâncias. Na linha contratual o autor apresenta a fábula filosófica, ou a posição hipotética intitulada “véu da ignorância” (Melo 2001).

A posição hipotética ou posição original não é evidentemente pensada como uma história concreta, muito menos como uma condição cultural primitiva. A posição original representa uma situação imaginária que pressupõe que os indivíduos não têm qualquer informação sobre a sua situação na sociedade, como por exemplo, a classe social ou o poder económico (Santos 2004). Esta posição original ou hipotética diz que qualquer cidadão aceitaria uma situação de partilha, se pensasse que poderia ser ele a pertencer a uma classe mais desfavorecida. É aqui que entra a concepção contratualista da sociedade, o

“colocar-se no lugar do outro”. O “véu da ignorância” é um marco fundamental desta teoria, pois coloca todos os indivíduos como uma espécie de “sujeitos universais” em que seriam isentos de uma história ou interesses particulares e que chegam a um acordo amplamente partilhado acerca dos princípios da justiça (Melo 2001).

O sistema visa assim atingir um “equilíbrio reflexivo”, definido por alguns autores como o círculo virtuoso e segundo outros como o ciclo vicioso. Este equílibrio representa uma síntese real e eficaz das convicções sobre a justiça e permite estabelecer os princípios de

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Capítulo 1 – Justiça Distributiva

justiça de uma sociedade bem ordenada, identificável com as democracias contemporâneas dinamicamente perspectivadas (Ferreira 1992).

A teoria de Rawls tem recebido críticas, sendo uma delas a que afirma que esta apresenta uma influência utilitarista9. Assim, se à partida se pensar que o pensamento rawlsiano sustenta um conceito de equidade que permite uma discriminação positiva dos mais desfavorecidos, este segundo postulado é atenuado por um realismo utilitarista. Esta influência utilitarista revela-se no facto de que para Rawls não parece ser injusto o facto de uma minoria (os mais desfavorecidos) obter vantagens superiores à média, convicto que desta forma a sua situação seja melhorada (Santos 2004).

No que respeita à aplicação do segundo postulado à área da saúde, Le Grand10 (1988 cit Porto 1995) considera que o próprio Rawls a teria rejeitado. Isto porque, apesar da saúde ser incluída na lista dos bens essenciais, este é para Rawls um bem “material”, que não pode ser distribuído da mesma forma que os bens “sociais” (rendimento, riqueza). Mais ainda, o princípio maximin é um macro critério e não um micro critério, logo não deveria ser aplicado à saúde, que é considerada uma área de nível micro. Todavia, e segundo Porto (1995), o que se aceita é que a saúde é tão susceptível de uma política de distribuição de recursos como o rendimento e a riqueza, e, por outro lado, que os critérios de justiça devem ser aplicados a micro e macro situações, não existindo fundamentos para considerar a saúde como uma microárea.

Assim, apesar das críticas mencionadas, a teoria da justiça de John Rawls aporta bases fundamentais à busca de uma conceptualização do termo equidade. Basta destacar a incorporação dos interesses colectivos e a preocupação com a diminuição das desigualdades através das políticas de discriminação positiva em favor dos menos favorecidos (Porto 1995).

9 A teoria utilitarista será abordada no próximo ponto. Esta teoria defende, de uma maneira geral, que a distribuição de bens é correcta, e portanto justa, quando beneficia um maior número de indivíduos possível. Ver a este propósito Cabral S R: Utilitarismo. Logos, Encicolpédia Luso- Brasileira de Filosofia 5; Verbo, 1992: 362-65.

10 Ver a este propósito Porto S M: Justiça Social, Equidade e Necessidade em Saúde In Piola S, Vianna S M: Economia da Saúde, Conceito e Contribuição para a Gestão da Saúde. IPEA, Brasília, 1995:123-140.

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Capítulo 1 – Justiça Distributiva

Para Rawls igualdade e liberdade resumem a humanidade, sendo um elemento imprescindível ao outro. Estes valores, apesar de terem nascido de uma situação hipotética, existem. E, apesar de ser difícil colocar em prática este consenso, é no regime democrático que nos encontramos mais perto deste equilíbrio referido por Rawls, que chama a atenção para a cidadania, peça fundamental no jogo democrático e na defesa da justiça como teoria integral (Melo 2001).

1.1.2 Utilitarismo

O utilitarismo é uma corrente ética que engloba diversas doutrinas, defendidas quase exclusivamente por autores anglo-saxónicos, e que têm em comum o facto de avaliarem as acções segundo o carácter vantajoso ou não das suas consequências (Cabral 2003).

Podemos assim afirmar que o utilitarismo se apresenta como uma corrente de pensamento teleológica ou consequencialista. Benthan é considerado o fundador desta corrente de pensamento social e político, sendo a mesma posteriormente desenvolvida por John Stuart Mill. A ideia central do utilitarismo é o princípio da utilidade ou o princípio da maior felicidade, sendo que as acções são então definidas como boas ou más segundo o seu efeito. Uma boa acção é aquela que proporciona utilidade ou felicidade para um maior número de indivíduos (Kenny 1999, Mill 1991, Cabral 2003). Esta corrente consequencialista, que tem por objectivo básico a distribuição de recursos de modo a maximizar a utilidade agregada, considera que uma sociedade é correctamente ordenada, e portanto justa, quando obtém a maior soma de satisfação para um maior número de indivíduos, independentemente da sua distribuição entre os indivíduos pertencentes a esta sociedade (Figueiredo 1996).

No utilitarismo a intenção moral do sujeito é ignorada, assim como a moralidade dos meios de que se serve o sujeito para efectuar o acto, pois ao que unicamente se atende é à consequência da acção (Cabral 1992, Cabral 2003). Nesta corrente de pensamento, que tem como princípio fundamental the greater happiness of the greatest number, podemos inscrever claramente a expressão “os fins justificam os meios”. Contudo, nem todos os meios disponíveis são eticamente aceitáveis para se alcançar determinado objectivo, nem a

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Capítulo 1 – Justiça Distributiva

intenção do sujeito deve ser descurada. Outra das dificuldades encontrada por esta teoria é o facto de, por vezes, se tornar difícil quantificar o bem ou felicidade fornecida por determinado acto. Isto é facilmente perceptível pois a medição e comparação de utilidades individuais é bastante difícil, visto que há variáveis altamente subjectivas e, portanto, difíceis de quantificar (Botelho 1997, Cabral 2003).

Esta corrente teleológica encontra também problemas na sua antropologia que lhe está subjacente e que a leva a adoptar a posição eudemonista e temporal ou ainda hedonista: “o autêntico bem do Homem não consiste exclusiva ou principalmente no prazer, nem a felicidade se pode definir prescindindo da plena razoabilidade do agir” (Cabral 2003).

Mais ainda, o utilitarismo não fornece quaisquer critérios para a justa distribuição de bens e para a salvaguarda dos direitos legítimos das pessoas (Cabral 1992, Cabral 2003), não configurando assim um verdadeiro objectivo de equidade. Porto (1995) afirma ainda que o utilitarismo pouco pode aportar como teoria sustentadora do conceito de equidade.

Como defesa às críticas apontadas nos parágrafos anteriores, John C. Harsanyi11 afirma que, quando se pretende a maximização da satisfação ou utilidade para um maior número de indivíduos, este critério não é tão subjectivo como alguns autores apontam. Pelo contrário, a comparação das funções de utilidade são o resultado da necessidade moral de nos colocarmos no ponto de vista de um qualquer outro, pois requer que qualquer pessoa, fazendo um juízo de valor moral básico, tente visualizar o que seria estar no lugar de um outro membro da sociedade. Assim, ao admitirmos o que é mais útil para uma sociedade ou para uma maioria, assumimos que as outras pessoas são tão reais como nós e que partilham connosco uma humanidade comum12 apesar, das inegáveis diferenças individuais que no específico pormenor existem entre nós.

Apesar das críticas, o utilitarismo é uma corrente de pensamento de grande influência na justiça distributiva, cujos principais valores são então a eficiência e o bem público (Nunes

11 Ver a este propósito Santos P V: Consenso e Conflito no Pensamento de John Rawls, a Perversa Ingenuidade do Liberalismo. Edição Colibri, Lisboa, 2004.

12 Segundo Harsanyi as preferências e funções de utilidade de todos os indivíduos humanos são governadas pelas mesmas leis psicológicas básicas. Ver a este propósito Santos P V: Consenso e Conflito no Pensamento de John Rawls, a Perversa Ingenuidade do Liberalismo. Edição Colibri, Lisboa, 2004.

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Capítulo 1 – Justiça Distributiva

2003b). No que diz respeito à área da saúde, as estratégias utilitaristas estão presentes, por exemplo, no rastreio do cancro da mama onde se visa o benefício (utilidade) de um vasto número de indivíduos. Segundo o pensamento utilitarista e perante recursos que se apresentam escassos, um sistema de saúde deve adoptar medidas que favoreçam largos segmentos da população em detrimento de medidas que tenham como alvo grupos restritos da população (Nunes 2003b). Esta doutrina permite justificar a penalização e exclusão de indivíduos para obtenção de uma soma maior, cujos benefícios, em última instância, serão apropriados pelos indivíduos que se encontrem numa situação favorável ao aumento da utilidade marginal a ser obtida (Porto 1995).

1.1.3 Teoria Libertária

Nozick, na sua doutrina, ampara o imperativo categórico de Kant: “age para que cada indivíduo, seja tratado como um fim em si mesmo e não como um meio” (Nozick 1988). A ideia de que o ser humano é um ser racional, livre e com a possibilidade de formular um plano de vida e com a inerente dignidade humana enquadra-se na teoria libertária (Nozick 1995).

A teoria libertária apresenta-se como uma corrente de pensamento que se opõe ao utilitarismo, rejeitando o preceito da maximização da utilidade pela sociedade, e acusa mesmo os utilitaristas de cometerem o erro metafísico de suporem que a sociedade é uma entidade que experiencia “prazeres e dores” e que o seu bem estar deve ser maximizado (Wolff 1996).

Opõe-se também ao igualitarismo de Rawls, na medida em que rejeita o pressuposto do

“véu da ignorância”, afirmando que a sociedade se desenvolve a partir do que já existe, ou seja, os indivíduos vivem numa sociedade com uma cultura, história e tradição pré- estabelecidas (Figueiredo 2006).

Assim a teoria libertária, que apresenta Nozick como o seu expoente máximo, defende que cada indivíduo tem direito ao que possui, desde que a sua aquisição tenha sido legítima

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Capítulo 1 – Justiça Distributiva

(Nozick 1988). O direito à propriedade privada e a liberdade ética constituem os valores nucleares desta teoria da justiça (Nunes 2002, Wolff 1996). Para os libertários a participação do Estado deverá ser minimalista, ou seja, propõem um Estado mínimo ultraliberal que tenha como função principal assegurar as liberdades individuais e dos mercados (Porto 1995). Nozick (1988) na sua obra “Anarquia, Estado y Utopia” afirma que o Estado mínimo ou mesmo ultramínimo é moralmente legítimo, sendo que qualquer Estado mais extenso violará os direitos dos indivíduos. Este Estado mínimo trata os indivíduos como detentores de direitos invioláveis com a dignidade que os constitui e não observa os indivíduos como meios ou ferramentas que podem ser usados de determinada maneira (Nozick 1988). Do mesmo modo, Nozick entende que a própria racionalidade é uma componente crucial da imagem que a espécie humana possui, e não simplesmente uma ferramenta para adquirir conhecimentos e aperfeiçoar as nossas vidas e a nossa sociedade (Nozick 1995).

Nesta linha de pensamento podemos referir que os impostos só se justificam para bens que a pessoa individualmente não pode realizar, como por exemplo, a defesa nacional. Neste sentido, o pagamento de impostos para a educação ou saúde de terceiros é percepcionada pelos libertários como ilegítima e moralmente inaceitável (Nunes 2003b), sendo que a participação do Estado na saúde apenas se processa para os programas de saúde pública.

Assim, é utópico pensarmos que o Estado poderia redistribuir a riqueza, impedindo a formação de uma classe social detentora de maior poder económico. Isto porque ao impor mecanismos que permitam a transferência de rendimentos para as classes sociais mais desfavorecidas economicamente, poder-se-á levar ao aflorar de outros problemas sociais como o desemprego oculto, desmotivação para procurar trabalho e desmotivação da poupança (Nunes 2004). Nozick (1988) defende que não há nenhuma entidade com faculdade para controlar todos os recursos e definir como devem ser repartidos pelos indivíduos da sociedade. O mesmo é salientado por Wolff (1996) ao afirmar que quando se fala em justiça distributiva parece que pressupomos que existe uma grande quantidade de recursos sociais num “pote social” à espera de serem distribuídos racionalmente por uma autoridade. E na verdade tal “pote” não existe, apenas temos pessoas e associações de pessoas, o mundo natural e o que as pessoas produzem.

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Capítulo 1 – Justiça Distributiva

Os EUA são adeptos desta doutrina de justiça distributiva no que se refere às políticas de saúde. Assim nesta área existe um mercado de livre escolha e de competição do próprio mercado; havendo uma clara separação entre prestadores e financiadores. Nesta linha de actuação cada indivíduo deve integrar-se num seguro de saúde. Um desses programas foi o Medicare, introduzido em 1966 para assegurar a cobertura da população idosa (Barros 2006). Além deste, cerca de metade da população de baixos recursos ficou coberta pelo Medicaid, programa financiado pelos governos federal e estadual. Apesar disto, cerca de 12% dos americanos não estão cobertos por qualquer seguro, sendo que deste grande grupo fazem parte operários de baixos salários, empregados em tempo parcial e os seus dependentes. Tal situação é preocupante, pois a saúde é para quem pode, ou seja, o poder está no utilizador (Dunlop 199513 cit. Escoval 1999).

Facilmente verificamos que esta teoria sustentadora de um conceito de justiça distributiva é demasiado penalizadora para aqueles que pela sua condição genética ou socio-económica

“ganharam” uma situação de doença ou pobreza.

13 Ver a este propósito Escoval A: Sistemas de Financiamento da Saúde, Análise e Tendências.

Edição de Associação Portuguesa de Economia da Saúde, Lisboa, 1999.

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Capítulo 2 – Direito da Saúde e Caracterização do SNS

CAPÍTULO 2

DIREITO DA SAÚDE E CARACTERIZAÇÃO DO SNS

2.1 Direito Constitucional da Saúde em Portugal

São vários os conceitos de saúde que têm surgido ao longo do tempo; desde organizações a peritos na matéria, todos têm apresentado conceitos que se podem dividir genericamente em negativistas e positivistas. As definições negativistas surgem por oposição à doença, estando cientificamente ligadas à biomedicina e ao modelo médico de intervenção14. Por outro lado despontam as visões positivistas15, mais actuais e que perspectivam a saúde como algo mais que a ausência de doença ou enfermidade. É o caso da OMS (Organização Mundial de Saúde) que define a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não a mera ausência de doença ou enfermidade”. Esta visão é, como facilmente verificamos, utópica e inatingível. Apesar da enorme vantagem de ser abrangente, é, no entanto, excessivamente generalista, não permitindo aos profissionais da saúde uma base para a prática clínica. Segundo o conceito da OMS, só em pequenos estados de beaticidade e felicidade é que teríamos saúde. Contudo, esta é a definição de saúde mais aceite actualmente (Larson 1991).

Esperança Pina (2003) considera que a saúde é um factor essencial à vida e um valor que supera todos os outros ao longo da existência de cada indivíduo na criação de bem-estar, de capacidade de trabalho e de felicidade pessoal.

14 O modelo médico define a saúde como a ausência de doença e não é sensível à saúde social e à interacção saudável com os outros. Este modelo ignora as causas sociais das doenças e os costumes sociais na definição de doença. O modelo médico negligencia também o impacto da Medicina Preventiva. Ver a este propósito Larson J S: The Measurement of Health – Concepts and Indicators. Greenwood Press, 1991.

15 O modelo holístico define a saúde de um indivíduo tendo em conta não só o aspecto físico, mas também os aspectos mental e social da saúde. Neste modelo podemos enquadrar o axioma “O todo é maior que a soma das partes”. A definição holística da saúde tornou-se quase sinónima da definição de saúde avançada pela OMS. Ver a este propósito Larson J S: The Measurement of Health – Concepts and Indicators. Greenwood Press, 1991.

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Capítulo 2 – Direito da Saúde e Caracterização do SNS

Podemos afirmar que o conceito de saúde é um conceito historicamente situado, e que nele reflecte “os conhecimentos biológicos da época, a relação da pessoa com o corpo e o grau de representação de cada função do corpo, bem como o entendimento da morte” (Parecer 14/CNECV/95).

O ser humano é frágil e finito, sendo a fragilidade circunstancial e temporal, a doença é uma realidade inerente à condição humana. Como afirma Daniel Serrão (2003), “o homem é hoje um ser social e vive num mundo que é artefacto da inteligência humana, sendo que aqui radicam as mais importantes ameaças à saúde corporal”.

Perante sociedades fragmentadas, torna-se relevante que os direitos fundamentais sejam consagrados na Constituição. Assim, o artigo 64º da Constituição da República Portuguesa revela a presença do “direito à saúde”, afirmando: “Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover”16. Este direito é uma expressão da dignidade humana e está inscrito no quadro dos direitos positivos, na medida em que o próprio Estado o deve incrementar e promover (Costa 2003). A dignidade humana é, pois, o princípio fundador que, conduzindo à implementação dos direitos fundamentais (Gruskin e Daniels 2008), se afigura como pedra angular da bioconstituição.

Podemos também expor que, perante o direito à protecção da saúde, existe um dever de prestação (por parte do Estado) e um dever de defesa e promoção17 (por parte do indivíduo). Há, pois, o dever e a responsabilidade dos cidadãos de promover e salvaguardar a sua saúde (Serrão 2003, Esperança Pina 2003, Nunes 2005).

A Convenção Sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina18, no artigo 3º, ressalva a existência deste direito defendendo a existência de um “acesso equitativo aos cuidados de saúde”. No seu Acto Constitutivo, também a OMS situa a saúde dentro do quadro dos

16 Constituição da República Portuguesa, 5ª Revisão, 2001. Assembleia da República - Divisão de Edições. (Publicação: Diário da República, nº 286 – I Série – A de 12.12.2001).

17 A este respeito, a Lei de Bases da Saúde afirma que “Os cidadãos são os primeiros responsáveis pela sua própria saúde, individual e colectiva, tendo o dever de a defender e promover” (Base V).

Ver a este propósito Lei nº 48/90: Lei de Bases da Saúde. Diário da República, I série, 24 de Agosto, 1990. Esta Lei foi alterada pela Lei nº27/2002, de 8 de Novembro, que também aprova o novo regime jurídico da gestão hospitalar. Consultar os anexos deste trabalho.

18 Aprovada em Diário da República, nº 286 – I Série – A, nº2 de 03.01.2001.

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Capítulo 2 – Direito da Saúde e Caracterização do SNS

direitos humanos da paz e da segurança, defendendo que “o poder gozar do mais elevado nível de saúde possível é um dos direitos fundamentais de cada ser humano sem distinção de raça, religião, convicções políticas, condições económicas e sociais. A saúde de todos os povos é fundamental para se alcançar a paz e a segurança e depende da plena cooperação entre os indivíduos e os Estados” (Parecer 14/CNECV/95).

O “direito à saúde” é também invocado em documentos normativos como no Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Económicos e Culturais19 na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial20 na Convenção sobre os Direitos da Criança21, entre outros. Mais recentemente, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos22 no seu artigo 14º (Responsabilidade Social e Saúde) afirma que “A promoção da saúde e do desenvolvimento social em benefício dos respectivos povos é um objectivo fundamental dos governos que envolve todos os sectores da sociedade”.

A problemática da consagração do direito supramencionado surge com a crise do Estado de bem-estar social. Em muitos países, o conceito de “Welfare State” de Bismark emergiu após a 2ª Guerra Mundial23 e defende que a saúde não é apenas um direito individual, mas

19Adoptada e aberta à assinatura, ratificação e adesão pela resolução 2200A (XXI) da Assembleia- Geral da ONU, de 16 de Dezembro de 1966. Aprovada para ratificação, pela Lei nº45/78, de 11 de Julho. O artigo 12º deste Pacto refere que “Os Estados-Signatários no presente Pacto reconhecem o direito da pessoa de gozar das melhores condições possíveis de saúde física e mental.”.

20Adoptada e aberta à assinatura, ratificação e adesão pela resolução 2106 (XX) da Assembleia- Geral da ONU, de 21 de Dezembro de 1965. Aprovada para adesão, pela Lei nº7/82, de 29 de Abril. Numa das alíneas do artigo 5º são referidos os “direitos à saúde pública, a tratamento médico, à previdência social e aos serviços sociais”.

21Adoptada e aberta à assinatura, ratificação e adesão pela resolução nº44/25 da Assembleia Geral da ONU, de 20 de Novembro de 1986. Aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República nº20/90, de 12 de Setembro. O artigo 3º desta Convenção refere que “Os Estados Partes garantem que o funcionamento de instituições, serviços e estabelecimentos que têm crianças a seu cargo e asseguram que a sua protecção seja conforme às normas fixadas pelas autoridades competentes, nomeadamente nos domínios da segurança e saúde, relativamente ao número e qualificação do seu pessoal, bem como quanto à existência de uma adequada fiscalização.”.

22UNESCO: Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, 2006. In www.unesco.pt

23No período pós-guerra ocorreu um crescimento económico elevado que permitiu uma inigualável expansão da despesa pública, contudo, o primeiro choque petrolífero dos anos 70 foi um bruto despertar para uma infindável recessão económica. A este propósito ver Botelho L M: Equidade na utilização de cuidados de saúde - estudo da lista de espera para a consulta externa de ginecologia no Hospital Distrital de Aveiro. “Fórum dos Alunos”, Revista Portuguesa de Saúde Pública, vol.

15, n.º 2, Abril/Junho; 1997: 45-71.

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Capítulo 2 – Direito da Saúde e Caracterização do SNS

também um investimento social, já que a melhoria da saúde pública conduz a uma melhor coesão social (Botelho 1997).

Por outro lado, os avanços tecnológicos e o envelhecimento da população favoreceram uma procura de cuidados de saúde cada vez maior e mais exigente, o que deprimiu ainda mais o “welfare state” (Rego et al 2002). O aparecimento de medidas de racionamento está intimamente relacionada com este crescente aumento de gastos com a saúde.

Contudo, o “direito à saúde” é hoje, em conjunto com o “direito à educação”, um elemento decisivo da democracia e do desenvolvimento. Em cada sociedade a sua salvaguarda é tão importante como foi a liberdade em períodos de ditadura ou a igualdade entre os homens perante a escravatura (Parecer 14/CNECV/95).

O direito constitucional da saúde é em Portugal garantido através do Serviço Nacional de Saúde, de carácter universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos tendencialmente gratuito. O mesmo direito é também realizado pela criação de condições económicas, sociais, culturais, e ambientais que garantam, designadamente, a protecção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável (Artigo 64º da Constituição da República24).

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) é um conjunto ordenado e hierarquizado de instituições e de serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde, funcionando sob a tutela do Ministro da Saúde (Estatuto do SNS 1993)25 e que apresenta uma gestão descentralizada e participada (Artigo 64º da Constituição da República Portuguesa26).

24 Constituição da República Portuguesa, 5ª Revisão, 2001. Assembleia da República - Divisão de Edições. (Publicação: Diário da República, nº 286 – I Série – A de 12.12.2001).

25 Decreto-Lei nº 11/93: Estatuto do Serviço Nacional de Saúde. Diário da República, Série I-A, nº12, de 15 de Janeiro de 1993. A este Decreto foram introduzidas alterações pelos Decretos-Lei nºs 276-A/2007, Suplemento de 31 de Julho 2007; 223/2004, de 3 de Dezembro; 185/2002, de 20 de Agosto; 68/2000, de 26 de Abril; 157/99, de 10 de Maio; 401/98, de 17 de Dezembro; 97/98, de 11 de Março e 77/96, de 18 de Junho.

26 Constituição da República Portuguesa, 5ª Revisão, 2001. Assembleia da República - Divisão de Edições. (Publicação: Diário da República, nº 286 – I Série – A de 12.12.2001).

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Capítulo 2 – Direito da Saúde e Caracterização do SNS

O SNS, criado em Portugal em 1979 e que se associa ao artigo 64º da Constituição Portuguesa, sofreu em 1989 uma revisão que substituiu a gratuitidade original pelo

“tendencialmente gratuito”. Tal alteração relaciona-se com o aparecimento das taxas moderadoras que, aquando do seu advento, foram acusadas por muitos de inconstitucionalidade. Em Portugal, com vista a assegurar o “direito à saúde”, incumbe prioritariamente ao Estado (artigo 64º da Constituição da República):

 “Garantir o acesso a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação;

 Garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde;

 Orientar a sua acção com vista à socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos;

 Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando- as com o Serviço Nacional de Saúde, de forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade;

 Disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico;

 Estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência”.

Sendo os recursos para a saúde limitados e sabendo-se que o que é possível oferecer tecnicamente aos cidadãos de um país ultrapassa largamente os recursos disponíveis, torna- se inevitável a realização de opções (Gruskin e Daniels 2008). Torna-se assim um imperativo ético a realização de escolhas, escolhas essas que têm de ser fundamentadas de modo a conseguir a exequibilidade deste direito. A resolução desta problemática apresenta um carácter fortemente ético, na medida em que exige um processo reflexivo fundamentado num conjunto de valores respeitantes à vida, ao bem-estar, à liberdade, à não discriminação e à igualdade de oportunidades para todo e qualquer cidadão (Ramos 1994, Gruskin e Daniels 2008).

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Capítulo 2 – Direito da Saúde e Caracterização do SNS

A alocação de recursos para a saúde, sendo um problema de natureza política, pertence igualmente ao universo da justiça distributiva. Ao longo da evolução da humanidade tem- se desenvolvido diferentes teorias de justiça para a afectação de recursos que visam o bem comum e a partilha justa de bens.

O “direito à saúde” é considerado um direito civilizacional que garante a universalidade de acesso a um “anel básico” de cuidados de saúde (Nunes 2003b). A existência do SNS de carácter universal e geral consagra então o direito à protecção na saúde salvaguardado na Constituição da República Portuguesa. Contudo, o Estado promove o acesso aos cuidados de saúde tendo em conta os seus recursos humanos, técnicos e financeiros. A este respeito a Base I, da Lei de Bases da Saúde27, afirma que “O Estado promove e garante o acesso a todos os cidadãos aos cuidados de saúde nos limites dos recursos humanos, técnicos e financeiros disponíveis”. Aqui enquadramos o célere axioma anglo-saxónico: “some health for all than all health for some”. Assim, para a construção do “anel básico” é importante a distinção entre necessidades (fundamentais) e preferências (comodidades), sendo que só as primeiras deverão ter inclusão no mesmo de modo a construir um “anel” ao qual todos tenham acesso (Nunes 2005).

2.2 A Natureza Mista do SNS Português

Todos os sistemas de saúde dos países da Europa ocidental permitem a coexistência do sector público e do sector privado, adquirindo assim um carácter misto (Bentes et al 2004, Campos 1986b). Matias (1995) refere que na prática a existência destes dois sectores permite que se reúnam um sistema de cobertura universal e de maior eficácia na resolução de problemas, o público, e um sistema de maior eficiência económica mas que permite a exclusão social, o privado.

27Lei nº 48/90: Lei de Bases da Saúde. Diário da República, I série, 24 de Agosto, 1990. Esta Lei foi alterada pela Lei nº27/2002, de 8 de Novembro, que também aprova o novo regime jurídico da gestão hospitalar. Esta Lei encontra-se nos anexos deste trabalho.

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Capítulo 2 – Direito da Saúde e Caracterização do SNS

O sistema de saúde português é, em termos de constituição, “segmentado, laminado e estratificado” (Nunes 2003b). Um sistema de saúde segmentado é um sistema global onde coexistem dois ou mais níveis de prestação de cuidados havendo a garantia de que o

“mínimo básico” de cuidados é assegurado. Em Portugal temos subsistemas de saúde como o caso da ADSE (Assistência na Doença aos Servidores do Estado) ou da ADMG (Assistência na Doença aos Militares da Guarda) e ainda seguros de saúde (Multicare, Advance Care, Medis). Pereira el al (2001) e Bentes et al (2004) referem que cerca de um quarto da população tem acesso a uma segunda via de cobertura na saúde (seguros ou subsistemas). Em 1998, 10% da população possuía já um seguro privado (Bentes et al 2004), sendo que esta percentagem tem aumentado nos últimos anos.

Os subsistemas são entidades que podem estabelecer com as unidades do SNS uma concorrência saudável (Carreira 1999). Segundo Nunes (2003b), tal facto é desejável pois quer os subsistemas quer a medicina liberal descomprimem o SNS, sendo que desta forma poderá ser melhorada a eficiência global do SNS.

Porém, o documento 4/9728 apresentado pela Associação Portuguesa de Economia da Saúde apresenta uma visão oposta ao afirmar que os subsistemas constituem uma organização que vive nas franjas do SNS e que promove a discriminação, sendo que os casos mais graves são remetidos de para o SNS. Consideram a existência de subsistemas indesejável e sugerem mesmo uma alteração. Actualmente, as tendências mostram a tentativa de não inclusão de novos trabalhadores nos subsistemas, como por exemplo na ADSE, ficando estes apenas vinculados ao SNS.

Barros (2006) revela que os indivíduos que possuem cobertura por um subsistema, em complemento do SNS, apresentam um melhor nível de saúde. De uma forma geral, os indivíduos pertencentes a subsistemas têm uma maior utilização de consultas. Porém, torna-se pertinente admitir também a presença de outros factores, como por exemplo, o

28O documento 4/97 da Associação Portuguesa de Economia da Saúde “Financiamento da Saúde em Portugal” é um resumo de um debate organizado pela referida associação que pretendia dar resposta a um pedido de esclarecimento do Conselho de Reflexão sobre a Saúde. Neste documento é abordado o tema do financiamento da saúde em Portugal.

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