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Capítulo 5 O Herói trágico

5.3 Caracteres

Tendo já discorrido sobre as relações entre as personagens, passemos agora – como faz Aristóteles -, aos caracteres. Com efeito, como assinalam os comentadores Dupont-Roc e Lallot, a criação das emoções trágicas – indispensáveis para a reviravolta de situação – “implica personagens dotados de caráter e esses caracteres não são indiferentes ao sucesso mesmo do efeito trágico”119. Como assinalam os tradutores franceses, a definição de caráter remonta ao capítulo VI onde Aristóteles diz “caráter é que revela certa decisão ou, em caso de dúvida, o fim preferido ou evitado” (50 b 8). É algo que manifesta certa escolha e tal escolha assumirá determinações morais específicas. Assim, de acordo com Aristóteles, no que diz respeito ao caráter, quatro são as qualidades que dele se esperam: a primeira qualidade é a bondade; a segunda é a conveniência; a terceira é a semelhança; e a quarta é a coerência. Da primeira das qualidades, a bondade, Aristóteles assim nos fala:

Primeiro e mais importante é que devem ser bons. E se, como dissemos, há caráter quando as palavras e as ações derem a conhecer alguma propensão, se esta for boa, é bom o caráter. Tal bondade é possível em toda categoria de pessoas; com efeito, há uma bondade de mulher e uma bondade de escravo, se bem que o (caráter de mulher) seja inferior, e o [de escravos], genericamente insignificante.120 119 DUPONT-ROC e LALLOT, p. 253. 120 Poet.1454 a20

A forma como Aristóteles descreve a bondade já nos indica a preponderância dessa qualidade sobre as demais. A bondade aqui não deve ser encarada como uma oposição pura e simples a maldade, mas deve revelar certa qualidade do herói trágico que o distinga dos demais - Dupont-Roc e Lallot indicam que o termo empregado por Aristóteles aqui é “khrèstos” = de qualidade. É o que o torna superior a nós e, ao mesmo tempo, denota também sua falibilidade. É por essa razão que a bondade de uma mulher é considerada inferior e a do escravo irrelevante. A bem da verdade, mulheres e escravos não são considerados na sociedade grega antiga, não gozam dos privilégios da cidadania ficando claro portanto, que a bondade a que se refere Aristóteles é um atributo do cidadão. A qualidade é expressa em relação ao alcance da ação. A maldade ou vilania por seu turno, não chega a ser condenada por Aristóteles. A reprovação que o estagirita expressa com relação ao Menelau do Orestes refere-se ao fato de que tal vilania soa desnecessária, estando implicado aí que o caráter, da mesma forma como tudo o mais no mito, deve seguir também as regras da verossimilhança e da necessidade. Em suma: a necessidade de que as emoções próprias da tragédia sejam despertadas exclusivamente pelo encadeamento dos fatos, exige que o herói trágico possua um duplo estatuto: por um lado, ele deve ser suficientemente falível, para que se assemelhe a nós e, dessa forma, possa proporcionar a identificação público/herói; e, por outro, que ele seja também suficientemente bom para que seja identificado como superior aos demais e, só assim, servir de exemplo.

A segunda qualidade, a conveniência, se refere à adequação da ação. De fato, não parece adequado que um personagem do porte de Ulisses se comporte de forma pouco viril como na Cila, do mesmo modo que, sendo a virilidade uma qualidade desejável, não seja entretanto, adequada a uma mulher. A conveniência é uma qualidade que se ajusta a uma determinada faixa de expectativas: as personagens devem convir com os tipos éticos fixados pela tradição. Por seu turno, esses tipos expressam determinados comportamentos retóricos que

expressam o seu pensamento. Pensamento que é definido como “o poder dizer sobre tal assunto o que lhe é inerente e a esse convém” 121.

A terceira qualidade, a semelhança, dela Aristóteles não nos dá exemplo. Diz apenas que se trata de uma qualidade distinta da bondade e da conveniência, da forma como essas foram explicadas. Em seu comentário da Poética, Eudoro de Souza apresenta a solução encontrada por Gerard Else para a questão. Segundo Else, a exemplificação e o desenvolvimento do termo semelhança encontra-se na verdade, no final do capítulo XV :

Se a tragédia é imitação de homens melhores que nós, importa seguir o exemplo dos bons retratistas, os quais, ao reproduzir a forma peculiar dos modelos, respeitando embora a semelhança, os embelezam. Assim também, imitando homens violentos ou fracos, ou com tais outros defeitos de caráter, devem os poetas sublimá- los, sem que deixem de ser o que são: assim procederam Agatão e Homero para com Aquiles, paradigma de rudeza.122

Else, segundo Eudoro de Souza, ao analisar tal passagem propõe a seguinte tradução: “assim procedeu Homero, (que fez) bom e “semelhante a nós” Aquiles [paradigma de rudeza].”123 Conforme já foi definido anteriormente, a emoção trágica, principalmente o terror, está assentada sob uma possibilidade de identificação do espectador com o herói. A arte de Homero teria sido, nesse caso, tornar Aquiles semelhante a nós sem perder no entanto, a sua bondade específica, isto é, sua adequação ao código da “aretê” heróica, “pois de contrário, jamais suas “páthe” viriam despertar em nós as emoções trágicas de terror e piedade”124. Eudoro de Souza nos alerta entretanto, que, se aceitarmos tal leitura (bastante verossímil na sua opinião), não será mais possível aceitar a opinião dos antigos, notadamente a de Horácio, que concebia a semelhança como sendo uma

121 Poét. 50b 5. 122 Poét.1454b 10. 123 Poét.1454b 10. 124 Poét.1454b 10.

“semelhança das personagens trágicas para com seus modelos épicos tradicionais”125.

Resta ainda analisar aqui o sentido da expressão: importa seguir o exemplo dos bons retratistas, os quais, ao reproduzir a forma peculiar dos modelos, respeitando embora a semelhança, os embelezam126 . Aqui duas atividades em si diferentes mas que guardam um sentido comum e, talvez por isso, se encontram justapostas. A primeira é que o retratista deve reproduzir a forma peculiar do modelo, ou seja, não se trata aqui de imitação pura e simples, a imitação é imitação de certos elementos (não todos) que ressaltem a peculiaridade do modelo imitado. É uma relação de redução a elementos mínimos. A segunda é que o retratista deve, respeitando o limite imposto pela semelhança, embelezar a imitação, ou seja, acrescentar a ele outros elementos que a tornem mais agradável à nossa percepção. É nitidamente uma relação oposta a primeira pois é uma relação de acréscimo. A primeira atividade é direcionada ao reconhecimento pois: “o bom pintor é portanto aquele que, porque retém o traço distintivo e restitui a forma própria, realiza um retrato semelhante e assegura ao espectador o prazer do reconhecimento” 127. A segunda atividade é destinada a nos oferecer um modelo que seja melhor do que nós. O embelezamento vem em socorro de anterior afirmação do estagirita que diz que o herói não deve ser nem muito bom, nem muito mau, mas que seja melhor que pior.

A quarta e última qualidade mencionada por Aristóteles é a da coerência. Nesse caso, a personagem deve ter uma coerência interna, até mesmo a personagem que, na trama dos fatos, seja incoerente deve-o ser com a mais absoluta coerência. Até a inconstância da personagem deve ser fiel a ela mesma em atendimento às mesmas exigências de necessidade e de verossimilhança que norteiam toda a construção trágica. De fato, a personagem que seja, na trama, incoerente e sua incoerência não se justifique, estaria muito mais próxima do

125 Poét.1454b 10. 126 Poét.1454b 10. 127 DUPONT-ROC e LALLOT, 1980, p. 267.

irracional, o que, como já foi dito, é algo indesejável no mito trágico. O exemplo empregado por Aristóteles é o da Ifigênia em Áulida de Eurípides. Com efeito, a Ifigênia que aparece suplicante no princípio da trama é muito diversa da que se mostra no fim quando assume ares de heroína. A passagem de um estado a outro não parece nem verossímil, muito menos necessário.

Todas as exigências feitas por Aristóteles até agora dizem respeito a uma outra, primeira e fundamental: os prazeres que são próprios da tragédia, piedade e terror, devem ser suscitados no espectador por intermédio da trama mesma dos fatos e, em conseqüência, a tudo o que a ela se liga de maneira indissociável. O desenlace de qualquer mito deve resultar do próprio mito. Também com os caracteres não será diferente. Os caracteres podem ser compreendidos como os propulsores lógicos fundamentais da ação. Com efeito, o tipo de ação e de fala está diretamente ligado ao tipo de caráter. Dessa forma, os caracteres estão estreitamente subordinados ao mito e, em função disso, encontram-se também submetidos às mesmas exigências de verossimilhança e necessidade.