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Herói intermediário Hamartía

Capítulo 5 O Herói trágico

5.1 Herói intermediário Hamartía

Resta portanto a situação intermediária. É a do homem que não se distingue muito pela virtude e pela justiça; se cai no infortúnio, tal acontece não porque seja vil e malvado, mas por força de algum erro; e esse homem há de ser algum daqueles que gozam de grande reputação e fortuna, como Édipo e Tiestes ou outros insignes representantes de famílias ilustres. 108

A qual situação intermediária Aristóteles estaria se referindo? As situações de extremo de bondade e maldade já foram de antemão descartadas. Também não

se trata de conceber aqui nenhum homem médio ou “mediania humana”. De qualquer forma, o herói trágico é sempre um homem melhor que os demais. Não se trata portanto, do cidadão comum que participa dos debates da ágora. Ainda aqui estamos frente aos heróis socialmente ligados à nobreza, conforme Auerbach já havia assinalado, mas que também se distinguem pela sua aretê. A mutação da fortuna nesse caso, se dá não por maldade mas em decorrência de um erro – hamartía. Não se trata aqui de uma “culpa moral”, mas bem mais de um “erro de cálculo”. Desse modo, não pode ser pensada como parte do caráter do herói trágico. Uma das grandes descobertas de Gerard Else, apontada por Eudoro de Souza em sua tradução da Poética, é o da “verdadeira natureza” da hamartía, como “uma parte estrutural do mito complexo, é o correlato da agnórisis (“ reconhecimento “)”109. É de se admirar no entanto, que Aristóteles não atribua à hamartía a mesma importância que tenha concedido ao reconhecimento e à peripécia, por exemplo. Como, para Aristóteles, as emoções próprias da tragédia (da boa tragédia) devem ser obtidas apenas pelo encadeamento dos fatos, à hamartía, que pode ocorrer fora do drama (o melhor exemplo é o da tragédia de Édipo que começa depois de o tirano haver matado seu pai, casado com sua mãe, ter tido filhos que são seus irmãos), Aristóteles não dedica muita atenção. A hamartía está na base da metabolé, da reviravolta. A ausência da falha trágica impediria a reversão da felicidade em infelicidade. A hamartía é pois causa da ação trágica.

É pois necessário que um mito bem estruturado seja antes simples do que duplo, como alguns pretendem; que nele se não passe da infelicidade para a felicidade, mas, pelo contrário,da dita para a desdita; e não por malvadez, mas por algum erro de uma personagem, a qual, como dissemos, antes propenda para melhor do que para pior. 110

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SOUZA,1980,p.132

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O herói trágico então não será nem o mais justo, nem o mais perverso. Ele deve entretanto, propender mais para o bem do que para o mal. Sua mudança de fortuna se dará por uma falta, um erro, que revelam exatamente o caráter de falibilidade de tal herói. E essa falibilidade é “o quantum ético mínimo que deve separar o herói da perfeição moral e que portanto, define necessária e suficientemente, seu estatuto intermediário”111. E assim constituir a condição necessária para despertar as emoções de terror e piedade.

A falta trágica, sobre a qual tanto se tem especulado, aparece portanto claramente como tendo um teor moral. É nisso que caracteriza e justifica sua menção no capítulo 13 da Poética, onde ela cumpre precisamente uma função de verossimilhança na ordem ética: se, em face da desgraça do justo que se exclui do trágico, fundamentalmente pela sua inverossimilhança, a desgraça do homem intermediário nos fornece um sujeito trágico aceitável sem reservas – é porque a falta torna a desgraça plausível, dissipa o escândalo que a repugnância provoca.112

De tudo o que foi dito até aqui cumpre agora apontar o que Aristóteles considera como sendo o melhor para o enredo trágico, o que o torna mais eficiente para que provoque as emoções que lhe são próprias: primeiro que, se a reviravolta de situação (metabolé) é um dos atributos que garantem a qualidade trágica, a mudança da boa para a má sorte é seguramente a melhor de todas; segundo, que tal mudança de situação deve ocorrer devido a uma falta (hamartía), essa falta deve ser grande; e terceiro, que o herói que comete a falta deve ter uma condição ética intermediária, não deve ser nem bom em demasia, nem mau, porém, deve tender mais para melhor que para pior. Esses três pontos parecem resumir o que Aristóteles considera ser mais adequado a uma tragédia, isto é, a tragédia será tanto melhor na medida em que responder às exigências formuladas até aqui. E se, para Aristóteles, a melhor reviravolta é a que conduz o homem intermediário da boa para a má fortuna, é de se admitir também que a tragédia deva ter então um desenlace fatal. A preferência de Aristóteles pela saída fatal

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deve residir no fato de ser ela a mais verossímil, encaixando-se mais adequadamente à economia dramática, ou então porque responderia às exigências éticas que fazem recair sobre o herói intermediário o posto de herói trágico por excelência.

Mas, mais essencialmente que a verossimilhança ética, é a lógica da proposta teórica que parece justificar a preferência dada à saída fatal. Nascida de uma exigência funcional precisa – tornar a desgraça verossímil – a falta se encontra ordenada à desgraça. O herói falível será portanto um herói destinado à desgraça – e não o será pelo destino mas, por uma determinação estrutural interna.113

Fica claro então porque a falta trágica deve ser grande. Uma vez que a sorte do herói, no mito trágico, não é decidida pelo destino mas pela estrutura interna do mito então, a amplitude dessa falta deve ser suficientemente grande para que possa desencadear – de maneira verossímil – a reviravolta de situação (metabolé). Entende-se por fim, o sentido social dos heróis trágicos, o motivo pelo qual a escolha do herói trágico recai invariavelmente sobre os elementos extraídos da nobreza. Tal escolha se dá pela amplitude da sua falta.

Antes de falarmos do reconhecimento e seguindo os passos do próprio Aristóteles que, na Poética, percorre tal caminho, vamos nos deter nas relações existentes entre as personagens e suas respectivas mudanças, objeto do capítulo XIV e, até como desdobramento das análises desenvolvidas aqui, uma análise sobre a composição dos caracteres que é o objeto do capítulo XV. Tal interrupção de percurso (se é que se trata de uma interrupção) percebe-se necessária pela sua estreita vinculação com a peripécia de um lado e, como no desenvolvimento da argumentação a ignorância será colocada como elemento fundamental na economia da ação, está se preparando também o terreno para o reconhecimento que será tratado no capítulo XVI. Ora, se a peripécia é a própria mudança de situação (metabolé), é necessário que se compreenda qual deva ser a relação

112 DUPONT-ROC e LALLOT,1980, p. 245. 113

entre as personagens e, dentro delas, qual a mais adequada para que a peripécia ocorra. Do mesmo modo, se existem relações entre as personagens, é necessário também que se investigue quais são os caracteres mais adequados para a situação trágica. Toda a preocupação de Aristóteles reside no fato de que, para que a tragédia provoque os efeitos que lhe são próprios, isto é a piedade e o terror e apenas esses dois, é necessário que decorram exclusivamente da trama dos fatos e não de nenhum outro recurso externo. A questão do espetáculo cênico, uma das seis partes da tragédia enunciadas no capítulo VI da Poética, é novamente trazida a baila enquanto restrição. Aristóteles é intransigente nesse aspecto: do mesmo modo que a tragédia deve suscitar as emoções que lhe são próprias e não outras emoções, tais emoções não podem ser alcançadas pelo concurso do espetáculo teatral, “encarado aqui no seu caráter acessório e periférico”114. O espetáculo teatral não é um fazer do poeta, mas da coregia. Não se trata de ver o espetáculo, de alcançar as emoções de terror e piedade pela simples visão do que é cênico mas, talvez, de ouvir atentamente o que se desenrola no palco, os diálogos que denunciam a trama dos fatos e ouvindo, se antecipar aos acontecimentos. A audição talvez tenha muito mais afinidade com a relação pedagógica - que a tragédia possa admitir - que a visão e talvez também Aristóteles esteja ainda se referindo a eficácia de uma cultura que, apesar de todos os progressos da escrita, ainda possuía um profundo sentido oral – a questão da oralidade da cultura grega é sustentada, por exemplo, por Havelock. Se o efeito trágico deve ser buscado fora do espetáculo cênico, entende-se porque Aristóteles, já no capítulo XV, reprova a utilização do deus-ex machina - recurso largamente utilizado por exemplo, por Eurípides -, uma vez que se trata de um recurso externo e que proporciona um desfecho que não advém da trama dos fatos. O recurso do deus ex machina só deve ser utilizado para representar os acontecimentos que se passam ou fora do drama, ou que tiveram seu lugar no passado ou que terão seu lugar no futuro. De maneira semelhante, Aristóteles

também reprova a entrada do irracional no desenvolvimento dramático, a não ser que ele tenha seu lugar fora da ação como, por exemplo, em Édipo Rei.